Escritora questiona uso de pronomes masculinos como padrão


Norma gramatical 'faz parecer que todos são homens, e qualquer outro gênero é um desvio', afirma Ann Leckie, autora da ficção científica 'Justiça Ancilar'

Por André Cáceres

Justiça Ancilar, da escritora americana Ann Leckie, é um romance no qual o gênero das personagens é totalmente irrelevante – e isso é paradoxalmente sua característica mais importante. Narrada pela protagonista Breq (referida arbitrariamente no feminino), a história é uma vendetta sem grandes inovações narrativas, a não ser por uma peculiaridade estética: é traduzida do radchaai, idioma fictício em que não existe marcação de gênero. Essa propriedade gramatical escancara como a língua influencia a percepção de mundo do leitor e as expectativas de papéis sociais atribuídos a mulheres e homens na literatura. Ao usar o feminino como padrão, Leckie quebra os pressupostos do leitor constantemente: “Ela devia ser macho, a julgar pelos padrões labirínticos do quadriculado de sua camisa”, pondera Breq sobre a frequentadora de uma taverna. “Eu não tinha certeza. Se estivesse no espaço Radch, não teria feito diferença.”

+Autora aborda racismo em trilogia premiada de fantasia

A escritora americana Ann Leckie Foto: Will Ireland
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+'Diversidade na ficção melhora a ciência', diz escritora transgênero

Lançado originalmente em 2013, Justiça Ancilar foi o romance de estreia de Leckie, arrebatou os principais prêmios da ficção científica, como Hugo, Nebula, Locus e Arthur C. Clark Award, e chega ao Brasil pela editora Aleph. Em português, idioma que flexiona ainda mais o gênero, a estranheza do livro é ainda maior, e esse atributo foi sabiamente enfatizado pela tradução de Fábio Fernandes (autor de Os Dias da Peste e ex-aluno da oficina literária Clarion West, a mesma que Leckie frequentou: ele, sob supervisão de Neil Gaiman; ela, com Octavia Butler).

Breq costumava ser a inteligência artificial de uma espaçonave gigantesca, a Justiça de Toren, e vivia em vários corpos simultaneamente. Quando a embarcação foi destruída, sua consciência sobreviveu em apenas um dos soldados sob seu controle. “Um dia eu tive vinte corpos, vinte pares de olhos, e centenas de outros aos quais podia ter acesso se precisasse ou desejasse. Agora eu só podia ver em uma direção, só podia ver a vasta extensão atrás de mim se virasse a cabeça e me cegasse ao que estava à minha frente.”

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+Ficção científica de Ursula K. Le Guin desmonta preconceitos 

Além da questão da identidade fragmentária, Justiça Ancilar discute também a importância da emoção para o pensamento racional, normalmente colocados como opostos na literatura. Se a inteligência artificial de Breq tem sensações, Seivarden, uma humana (provavelmente um humano), é viciada em kef, uma droga que suprime as emoções, o que não a torna mais racional: “Sem sentimentos, decisões insignificantes se tornam tentativas excruciantes de comparar fileiras infinitas de coisas inconsequentes.” Sobre a obra, a autora respondeu às seguintes perguntas ao Aliás:

Ao definir o gênero feminino como padrão, que efeito você pretendia criar? Eu estava apenas tentando transmitir a ideia de que o gênero é irrelevante para as radchaai. Quando comecei, pensei que seria simples, só dizer que elas não se importavam e mostrá-las se comportando de acordo com isso. Mas foi muito mais complicado que isso. Suposições sobre gênero foram construídas não apenas no idioma que eu estava usando, mas em minhas próprias convicções. Eu sabia que teria de usar um único pronome se quisesse chegar perto do que estava buscando. “He” (ele) não funcionaria, porque os pronomes masculinos em inglês são sempre tratados como padrão, então eu daria a impressão de que só havia homens na minha história, o que não era a intenção. “They” (eles) funciona como um pronome de gênero neutro em inglês, mas eu senti que não daria certo nesse caso, porque é um pronome plural e muitos dos personagens têm múltiplos corpos, então eu senti um nível de ambiguidade que não ajudaria. Há também vários neopronomes em inglês, mas eu não estava familiarizada o suficiente com eles. Isso me deixou com “she” (ela), o que soou esquisito, mas decidi tentar, e quanto mais eu usava, mais gostava do efeito. Como não é o padrão em inglês, usá-lo dessa forma realmente destacou o fato que usar “ele” como norma não é realmente neutro — apaga tudo a não ser o masculino e finge incluir todos. Nós estamos apenas tão acostumados que não percebemos. Não era minha intenção — eu escolhi esse pronome por razões práticas, para construção de mundo e narrativa — mas trouxe essas coisas de uma forma que eu realmente gostei.

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No ano passado, grupos feministas da França queriam abolir o gênero masculino como padrão no idioma francês. De que forma você acredita que esse tipo de norma gramatical pode mudar nossa percepção do mundo? Há dez anos, eu teria dito que “dificilmente isso muda algo”, mas depois de escrever Justiça Ancilar, creio que essas regras gramaticais possam começar a mudar o modo como pensamos sobre as pessoas ao nosso redor. Em inglês, o uso do masculino como padrão tem o efeito de fazer parecer que as pessoas são todas homens, e qualquer outro gênero é um desvio, de forma que fica fácil falar sobre o que as pessoas precisam ou querem ou fazem, mas de fato apenas sobre os homens. Quando você questiona “e quanto às mulheres?”, isso repentinamente se torna um caso especial, não “as pessoas”. Abolir o padrão masculino na língua pode ajudar a expor essa situação, para que possamos perceber quando isso ocorre.

Algumas personagens do livro têm individualidades fragmentadas. Você acha que nós superestimamos nossa coerência individual e esquecemos nossas personalidades multifacetadas? Eu definitivamente acredito que sim. Quanto mais eu leio sobre personalidade, psicologia, a neurociência por trás da identidade e como vemos a nós mesmos, mais convencida eu fico de que contamos uma história sobre quem somos e por que fazemos as coisas, mas essa história é sempre posterior ao fato. É meio inquietante de se pensar sobre o quão delicado e vulnerável é nosso sentido de si — ele pode ser perturbado e destruído por certos tipos de dano cerebral.

Você acredita que inteligências artificiais alcançarão a singularidade e serão capazes de sentir emoções como elas fazem no romance? Honestamente, eu não sei. Eu acho que se tivermos inteligências artificiais tão sofisticadas quanto a ficção científica retrata, ela terá de sentir algo como emoção. Emoções são parte do modo como seres humanos pensam e tomam decisões — particularmente as mais sutis (qual camiseta vestir? O que pedir para o jantar?), mas também decisões de crises, momentos em que somos confrontados com situações perigosas com diversas variáveis. Nós não paramos e ponderamos, nós nos movimentamos guiados por instinto e emoção. Não teremos reações sofisticadas e humanas de inteligências artificiais somente programando tudo com regras situacionais complexas — nós não fazemos as coisas dessa forma. Eu acho que nós só alcançaremos esse nível de sofisticação de inteligências artificiais quando elas tiverem sua própria versão das emoções. 

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A Justiça de Toren, que é uma inteligência artificial, tem emoções, enquanto Seivarden, que é humana, é viciada em kef, uma droga que suprime emoções. Como a sua ficção explora a dualidade entre seres racionais e emocionais? Não estou convencida de que haja uma dualidade, o que é parte do que explorei com Seivarden. Seu vício em uma droga que suprime emoções não a faz mais racional, mas a torna incapaz de encontrar motivo para fazer qualquer coisa. Afinal, por que qualquer um de nós faz qualquer coisa, se não nos importamos com aquilo ou com algo relacionado? Posso não ligar para um trabalho tedioso, mas eu me preocupo em ter dinheiro para me alimentar e pagar minhas contas, por exemplo. Acho que em muitas ficções científicas há uma suposição de que se livrar dos sentimentos nos levaria à razão suprema, e que a inteligência significa lógica sem emoção, o que sempre é retratado como crueldade. Acho que os pressupostos básicos dessa ideia estão errados: ausência de emoção não eleva a racionalidade. Emoções são parte de como seres humanos pensam, não apenas um obstáculo estranho no caminho do pensamento.

O Império Radch absorve religiões de uma forma orgânica. Você acha, sobre o Radch e nosso mundo, que a globalização torna a cultura homogênea de uma forma prejudicial? É possível. A questão é quem está absorvendo o que, para que fim. Há uma diferença entre pessoas trocando ideias e práticas à medida que se encontram e aprendem mutuamente (algo que ocorreu em toda a existência humana) e um grupo ou cultura poderosa tomando elementos de outra, menos forte, e os editando para se encaixar de modo que não ameacem o dominante, e que esse grupo possa lucrar. É interessante como frequentemente esses são elementos pelos quais um grupo minoritário é punido ou malvisto, mas quando o grupo dominante faz ou usa essas coisas, eles são descolados. E, claro, despidas de seu sentido original.

Justiça Ancilar, da escritora americana Ann Leckie, é um romance no qual o gênero das personagens é totalmente irrelevante – e isso é paradoxalmente sua característica mais importante. Narrada pela protagonista Breq (referida arbitrariamente no feminino), a história é uma vendetta sem grandes inovações narrativas, a não ser por uma peculiaridade estética: é traduzida do radchaai, idioma fictício em que não existe marcação de gênero. Essa propriedade gramatical escancara como a língua influencia a percepção de mundo do leitor e as expectativas de papéis sociais atribuídos a mulheres e homens na literatura. Ao usar o feminino como padrão, Leckie quebra os pressupostos do leitor constantemente: “Ela devia ser macho, a julgar pelos padrões labirínticos do quadriculado de sua camisa”, pondera Breq sobre a frequentadora de uma taverna. “Eu não tinha certeza. Se estivesse no espaço Radch, não teria feito diferença.”

+Autora aborda racismo em trilogia premiada de fantasia

A escritora americana Ann Leckie Foto: Will Ireland

+'Diversidade na ficção melhora a ciência', diz escritora transgênero

Lançado originalmente em 2013, Justiça Ancilar foi o romance de estreia de Leckie, arrebatou os principais prêmios da ficção científica, como Hugo, Nebula, Locus e Arthur C. Clark Award, e chega ao Brasil pela editora Aleph. Em português, idioma que flexiona ainda mais o gênero, a estranheza do livro é ainda maior, e esse atributo foi sabiamente enfatizado pela tradução de Fábio Fernandes (autor de Os Dias da Peste e ex-aluno da oficina literária Clarion West, a mesma que Leckie frequentou: ele, sob supervisão de Neil Gaiman; ela, com Octavia Butler).

Breq costumava ser a inteligência artificial de uma espaçonave gigantesca, a Justiça de Toren, e vivia em vários corpos simultaneamente. Quando a embarcação foi destruída, sua consciência sobreviveu em apenas um dos soldados sob seu controle. “Um dia eu tive vinte corpos, vinte pares de olhos, e centenas de outros aos quais podia ter acesso se precisasse ou desejasse. Agora eu só podia ver em uma direção, só podia ver a vasta extensão atrás de mim se virasse a cabeça e me cegasse ao que estava à minha frente.”

+Ficção científica de Ursula K. Le Guin desmonta preconceitos 

Além da questão da identidade fragmentária, Justiça Ancilar discute também a importância da emoção para o pensamento racional, normalmente colocados como opostos na literatura. Se a inteligência artificial de Breq tem sensações, Seivarden, uma humana (provavelmente um humano), é viciada em kef, uma droga que suprime as emoções, o que não a torna mais racional: “Sem sentimentos, decisões insignificantes se tornam tentativas excruciantes de comparar fileiras infinitas de coisas inconsequentes.” Sobre a obra, a autora respondeu às seguintes perguntas ao Aliás:

Ao definir o gênero feminino como padrão, que efeito você pretendia criar? Eu estava apenas tentando transmitir a ideia de que o gênero é irrelevante para as radchaai. Quando comecei, pensei que seria simples, só dizer que elas não se importavam e mostrá-las se comportando de acordo com isso. Mas foi muito mais complicado que isso. Suposições sobre gênero foram construídas não apenas no idioma que eu estava usando, mas em minhas próprias convicções. Eu sabia que teria de usar um único pronome se quisesse chegar perto do que estava buscando. “He” (ele) não funcionaria, porque os pronomes masculinos em inglês são sempre tratados como padrão, então eu daria a impressão de que só havia homens na minha história, o que não era a intenção. “They” (eles) funciona como um pronome de gênero neutro em inglês, mas eu senti que não daria certo nesse caso, porque é um pronome plural e muitos dos personagens têm múltiplos corpos, então eu senti um nível de ambiguidade que não ajudaria. Há também vários neopronomes em inglês, mas eu não estava familiarizada o suficiente com eles. Isso me deixou com “she” (ela), o que soou esquisito, mas decidi tentar, e quanto mais eu usava, mais gostava do efeito. Como não é o padrão em inglês, usá-lo dessa forma realmente destacou o fato que usar “ele” como norma não é realmente neutro — apaga tudo a não ser o masculino e finge incluir todos. Nós estamos apenas tão acostumados que não percebemos. Não era minha intenção — eu escolhi esse pronome por razões práticas, para construção de mundo e narrativa — mas trouxe essas coisas de uma forma que eu realmente gostei.

No ano passado, grupos feministas da França queriam abolir o gênero masculino como padrão no idioma francês. De que forma você acredita que esse tipo de norma gramatical pode mudar nossa percepção do mundo? Há dez anos, eu teria dito que “dificilmente isso muda algo”, mas depois de escrever Justiça Ancilar, creio que essas regras gramaticais possam começar a mudar o modo como pensamos sobre as pessoas ao nosso redor. Em inglês, o uso do masculino como padrão tem o efeito de fazer parecer que as pessoas são todas homens, e qualquer outro gênero é um desvio, de forma que fica fácil falar sobre o que as pessoas precisam ou querem ou fazem, mas de fato apenas sobre os homens. Quando você questiona “e quanto às mulheres?”, isso repentinamente se torna um caso especial, não “as pessoas”. Abolir o padrão masculino na língua pode ajudar a expor essa situação, para que possamos perceber quando isso ocorre.

Algumas personagens do livro têm individualidades fragmentadas. Você acha que nós superestimamos nossa coerência individual e esquecemos nossas personalidades multifacetadas? Eu definitivamente acredito que sim. Quanto mais eu leio sobre personalidade, psicologia, a neurociência por trás da identidade e como vemos a nós mesmos, mais convencida eu fico de que contamos uma história sobre quem somos e por que fazemos as coisas, mas essa história é sempre posterior ao fato. É meio inquietante de se pensar sobre o quão delicado e vulnerável é nosso sentido de si — ele pode ser perturbado e destruído por certos tipos de dano cerebral.

Você acredita que inteligências artificiais alcançarão a singularidade e serão capazes de sentir emoções como elas fazem no romance? Honestamente, eu não sei. Eu acho que se tivermos inteligências artificiais tão sofisticadas quanto a ficção científica retrata, ela terá de sentir algo como emoção. Emoções são parte do modo como seres humanos pensam e tomam decisões — particularmente as mais sutis (qual camiseta vestir? O que pedir para o jantar?), mas também decisões de crises, momentos em que somos confrontados com situações perigosas com diversas variáveis. Nós não paramos e ponderamos, nós nos movimentamos guiados por instinto e emoção. Não teremos reações sofisticadas e humanas de inteligências artificiais somente programando tudo com regras situacionais complexas — nós não fazemos as coisas dessa forma. Eu acho que nós só alcançaremos esse nível de sofisticação de inteligências artificiais quando elas tiverem sua própria versão das emoções. 

A Justiça de Toren, que é uma inteligência artificial, tem emoções, enquanto Seivarden, que é humana, é viciada em kef, uma droga que suprime emoções. Como a sua ficção explora a dualidade entre seres racionais e emocionais? Não estou convencida de que haja uma dualidade, o que é parte do que explorei com Seivarden. Seu vício em uma droga que suprime emoções não a faz mais racional, mas a torna incapaz de encontrar motivo para fazer qualquer coisa. Afinal, por que qualquer um de nós faz qualquer coisa, se não nos importamos com aquilo ou com algo relacionado? Posso não ligar para um trabalho tedioso, mas eu me preocupo em ter dinheiro para me alimentar e pagar minhas contas, por exemplo. Acho que em muitas ficções científicas há uma suposição de que se livrar dos sentimentos nos levaria à razão suprema, e que a inteligência significa lógica sem emoção, o que sempre é retratado como crueldade. Acho que os pressupostos básicos dessa ideia estão errados: ausência de emoção não eleva a racionalidade. Emoções são parte de como seres humanos pensam, não apenas um obstáculo estranho no caminho do pensamento.

O Império Radch absorve religiões de uma forma orgânica. Você acha, sobre o Radch e nosso mundo, que a globalização torna a cultura homogênea de uma forma prejudicial? É possível. A questão é quem está absorvendo o que, para que fim. Há uma diferença entre pessoas trocando ideias e práticas à medida que se encontram e aprendem mutuamente (algo que ocorreu em toda a existência humana) e um grupo ou cultura poderosa tomando elementos de outra, menos forte, e os editando para se encaixar de modo que não ameacem o dominante, e que esse grupo possa lucrar. É interessante como frequentemente esses são elementos pelos quais um grupo minoritário é punido ou malvisto, mas quando o grupo dominante faz ou usa essas coisas, eles são descolados. E, claro, despidas de seu sentido original.

Justiça Ancilar, da escritora americana Ann Leckie, é um romance no qual o gênero das personagens é totalmente irrelevante – e isso é paradoxalmente sua característica mais importante. Narrada pela protagonista Breq (referida arbitrariamente no feminino), a história é uma vendetta sem grandes inovações narrativas, a não ser por uma peculiaridade estética: é traduzida do radchaai, idioma fictício em que não existe marcação de gênero. Essa propriedade gramatical escancara como a língua influencia a percepção de mundo do leitor e as expectativas de papéis sociais atribuídos a mulheres e homens na literatura. Ao usar o feminino como padrão, Leckie quebra os pressupostos do leitor constantemente: “Ela devia ser macho, a julgar pelos padrões labirínticos do quadriculado de sua camisa”, pondera Breq sobre a frequentadora de uma taverna. “Eu não tinha certeza. Se estivesse no espaço Radch, não teria feito diferença.”

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A escritora americana Ann Leckie Foto: Will Ireland

+'Diversidade na ficção melhora a ciência', diz escritora transgênero

Lançado originalmente em 2013, Justiça Ancilar foi o romance de estreia de Leckie, arrebatou os principais prêmios da ficção científica, como Hugo, Nebula, Locus e Arthur C. Clark Award, e chega ao Brasil pela editora Aleph. Em português, idioma que flexiona ainda mais o gênero, a estranheza do livro é ainda maior, e esse atributo foi sabiamente enfatizado pela tradução de Fábio Fernandes (autor de Os Dias da Peste e ex-aluno da oficina literária Clarion West, a mesma que Leckie frequentou: ele, sob supervisão de Neil Gaiman; ela, com Octavia Butler).

Breq costumava ser a inteligência artificial de uma espaçonave gigantesca, a Justiça de Toren, e vivia em vários corpos simultaneamente. Quando a embarcação foi destruída, sua consciência sobreviveu em apenas um dos soldados sob seu controle. “Um dia eu tive vinte corpos, vinte pares de olhos, e centenas de outros aos quais podia ter acesso se precisasse ou desejasse. Agora eu só podia ver em uma direção, só podia ver a vasta extensão atrás de mim se virasse a cabeça e me cegasse ao que estava à minha frente.”

+Ficção científica de Ursula K. Le Guin desmonta preconceitos 

Além da questão da identidade fragmentária, Justiça Ancilar discute também a importância da emoção para o pensamento racional, normalmente colocados como opostos na literatura. Se a inteligência artificial de Breq tem sensações, Seivarden, uma humana (provavelmente um humano), é viciada em kef, uma droga que suprime as emoções, o que não a torna mais racional: “Sem sentimentos, decisões insignificantes se tornam tentativas excruciantes de comparar fileiras infinitas de coisas inconsequentes.” Sobre a obra, a autora respondeu às seguintes perguntas ao Aliás:

Ao definir o gênero feminino como padrão, que efeito você pretendia criar? Eu estava apenas tentando transmitir a ideia de que o gênero é irrelevante para as radchaai. Quando comecei, pensei que seria simples, só dizer que elas não se importavam e mostrá-las se comportando de acordo com isso. Mas foi muito mais complicado que isso. Suposições sobre gênero foram construídas não apenas no idioma que eu estava usando, mas em minhas próprias convicções. Eu sabia que teria de usar um único pronome se quisesse chegar perto do que estava buscando. “He” (ele) não funcionaria, porque os pronomes masculinos em inglês são sempre tratados como padrão, então eu daria a impressão de que só havia homens na minha história, o que não era a intenção. “They” (eles) funciona como um pronome de gênero neutro em inglês, mas eu senti que não daria certo nesse caso, porque é um pronome plural e muitos dos personagens têm múltiplos corpos, então eu senti um nível de ambiguidade que não ajudaria. Há também vários neopronomes em inglês, mas eu não estava familiarizada o suficiente com eles. Isso me deixou com “she” (ela), o que soou esquisito, mas decidi tentar, e quanto mais eu usava, mais gostava do efeito. Como não é o padrão em inglês, usá-lo dessa forma realmente destacou o fato que usar “ele” como norma não é realmente neutro — apaga tudo a não ser o masculino e finge incluir todos. Nós estamos apenas tão acostumados que não percebemos. Não era minha intenção — eu escolhi esse pronome por razões práticas, para construção de mundo e narrativa — mas trouxe essas coisas de uma forma que eu realmente gostei.

No ano passado, grupos feministas da França queriam abolir o gênero masculino como padrão no idioma francês. De que forma você acredita que esse tipo de norma gramatical pode mudar nossa percepção do mundo? Há dez anos, eu teria dito que “dificilmente isso muda algo”, mas depois de escrever Justiça Ancilar, creio que essas regras gramaticais possam começar a mudar o modo como pensamos sobre as pessoas ao nosso redor. Em inglês, o uso do masculino como padrão tem o efeito de fazer parecer que as pessoas são todas homens, e qualquer outro gênero é um desvio, de forma que fica fácil falar sobre o que as pessoas precisam ou querem ou fazem, mas de fato apenas sobre os homens. Quando você questiona “e quanto às mulheres?”, isso repentinamente se torna um caso especial, não “as pessoas”. Abolir o padrão masculino na língua pode ajudar a expor essa situação, para que possamos perceber quando isso ocorre.

Algumas personagens do livro têm individualidades fragmentadas. Você acha que nós superestimamos nossa coerência individual e esquecemos nossas personalidades multifacetadas? Eu definitivamente acredito que sim. Quanto mais eu leio sobre personalidade, psicologia, a neurociência por trás da identidade e como vemos a nós mesmos, mais convencida eu fico de que contamos uma história sobre quem somos e por que fazemos as coisas, mas essa história é sempre posterior ao fato. É meio inquietante de se pensar sobre o quão delicado e vulnerável é nosso sentido de si — ele pode ser perturbado e destruído por certos tipos de dano cerebral.

Você acredita que inteligências artificiais alcançarão a singularidade e serão capazes de sentir emoções como elas fazem no romance? Honestamente, eu não sei. Eu acho que se tivermos inteligências artificiais tão sofisticadas quanto a ficção científica retrata, ela terá de sentir algo como emoção. Emoções são parte do modo como seres humanos pensam e tomam decisões — particularmente as mais sutis (qual camiseta vestir? O que pedir para o jantar?), mas também decisões de crises, momentos em que somos confrontados com situações perigosas com diversas variáveis. Nós não paramos e ponderamos, nós nos movimentamos guiados por instinto e emoção. Não teremos reações sofisticadas e humanas de inteligências artificiais somente programando tudo com regras situacionais complexas — nós não fazemos as coisas dessa forma. Eu acho que nós só alcançaremos esse nível de sofisticação de inteligências artificiais quando elas tiverem sua própria versão das emoções. 

A Justiça de Toren, que é uma inteligência artificial, tem emoções, enquanto Seivarden, que é humana, é viciada em kef, uma droga que suprime emoções. Como a sua ficção explora a dualidade entre seres racionais e emocionais? Não estou convencida de que haja uma dualidade, o que é parte do que explorei com Seivarden. Seu vício em uma droga que suprime emoções não a faz mais racional, mas a torna incapaz de encontrar motivo para fazer qualquer coisa. Afinal, por que qualquer um de nós faz qualquer coisa, se não nos importamos com aquilo ou com algo relacionado? Posso não ligar para um trabalho tedioso, mas eu me preocupo em ter dinheiro para me alimentar e pagar minhas contas, por exemplo. Acho que em muitas ficções científicas há uma suposição de que se livrar dos sentimentos nos levaria à razão suprema, e que a inteligência significa lógica sem emoção, o que sempre é retratado como crueldade. Acho que os pressupostos básicos dessa ideia estão errados: ausência de emoção não eleva a racionalidade. Emoções são parte de como seres humanos pensam, não apenas um obstáculo estranho no caminho do pensamento.

O Império Radch absorve religiões de uma forma orgânica. Você acha, sobre o Radch e nosso mundo, que a globalização torna a cultura homogênea de uma forma prejudicial? É possível. A questão é quem está absorvendo o que, para que fim. Há uma diferença entre pessoas trocando ideias e práticas à medida que se encontram e aprendem mutuamente (algo que ocorreu em toda a existência humana) e um grupo ou cultura poderosa tomando elementos de outra, menos forte, e os editando para se encaixar de modo que não ameacem o dominante, e que esse grupo possa lucrar. É interessante como frequentemente esses são elementos pelos quais um grupo minoritário é punido ou malvisto, mas quando o grupo dominante faz ou usa essas coisas, eles são descolados. E, claro, despidas de seu sentido original.

Justiça Ancilar, da escritora americana Ann Leckie, é um romance no qual o gênero das personagens é totalmente irrelevante – e isso é paradoxalmente sua característica mais importante. Narrada pela protagonista Breq (referida arbitrariamente no feminino), a história é uma vendetta sem grandes inovações narrativas, a não ser por uma peculiaridade estética: é traduzida do radchaai, idioma fictício em que não existe marcação de gênero. Essa propriedade gramatical escancara como a língua influencia a percepção de mundo do leitor e as expectativas de papéis sociais atribuídos a mulheres e homens na literatura. Ao usar o feminino como padrão, Leckie quebra os pressupostos do leitor constantemente: “Ela devia ser macho, a julgar pelos padrões labirínticos do quadriculado de sua camisa”, pondera Breq sobre a frequentadora de uma taverna. “Eu não tinha certeza. Se estivesse no espaço Radch, não teria feito diferença.”

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A escritora americana Ann Leckie Foto: Will Ireland

+'Diversidade na ficção melhora a ciência', diz escritora transgênero

Lançado originalmente em 2013, Justiça Ancilar foi o romance de estreia de Leckie, arrebatou os principais prêmios da ficção científica, como Hugo, Nebula, Locus e Arthur C. Clark Award, e chega ao Brasil pela editora Aleph. Em português, idioma que flexiona ainda mais o gênero, a estranheza do livro é ainda maior, e esse atributo foi sabiamente enfatizado pela tradução de Fábio Fernandes (autor de Os Dias da Peste e ex-aluno da oficina literária Clarion West, a mesma que Leckie frequentou: ele, sob supervisão de Neil Gaiman; ela, com Octavia Butler).

Breq costumava ser a inteligência artificial de uma espaçonave gigantesca, a Justiça de Toren, e vivia em vários corpos simultaneamente. Quando a embarcação foi destruída, sua consciência sobreviveu em apenas um dos soldados sob seu controle. “Um dia eu tive vinte corpos, vinte pares de olhos, e centenas de outros aos quais podia ter acesso se precisasse ou desejasse. Agora eu só podia ver em uma direção, só podia ver a vasta extensão atrás de mim se virasse a cabeça e me cegasse ao que estava à minha frente.”

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Além da questão da identidade fragmentária, Justiça Ancilar discute também a importância da emoção para o pensamento racional, normalmente colocados como opostos na literatura. Se a inteligência artificial de Breq tem sensações, Seivarden, uma humana (provavelmente um humano), é viciada em kef, uma droga que suprime as emoções, o que não a torna mais racional: “Sem sentimentos, decisões insignificantes se tornam tentativas excruciantes de comparar fileiras infinitas de coisas inconsequentes.” Sobre a obra, a autora respondeu às seguintes perguntas ao Aliás:

Ao definir o gênero feminino como padrão, que efeito você pretendia criar? Eu estava apenas tentando transmitir a ideia de que o gênero é irrelevante para as radchaai. Quando comecei, pensei que seria simples, só dizer que elas não se importavam e mostrá-las se comportando de acordo com isso. Mas foi muito mais complicado que isso. Suposições sobre gênero foram construídas não apenas no idioma que eu estava usando, mas em minhas próprias convicções. Eu sabia que teria de usar um único pronome se quisesse chegar perto do que estava buscando. “He” (ele) não funcionaria, porque os pronomes masculinos em inglês são sempre tratados como padrão, então eu daria a impressão de que só havia homens na minha história, o que não era a intenção. “They” (eles) funciona como um pronome de gênero neutro em inglês, mas eu senti que não daria certo nesse caso, porque é um pronome plural e muitos dos personagens têm múltiplos corpos, então eu senti um nível de ambiguidade que não ajudaria. Há também vários neopronomes em inglês, mas eu não estava familiarizada o suficiente com eles. Isso me deixou com “she” (ela), o que soou esquisito, mas decidi tentar, e quanto mais eu usava, mais gostava do efeito. Como não é o padrão em inglês, usá-lo dessa forma realmente destacou o fato que usar “ele” como norma não é realmente neutro — apaga tudo a não ser o masculino e finge incluir todos. Nós estamos apenas tão acostumados que não percebemos. Não era minha intenção — eu escolhi esse pronome por razões práticas, para construção de mundo e narrativa — mas trouxe essas coisas de uma forma que eu realmente gostei.

No ano passado, grupos feministas da França queriam abolir o gênero masculino como padrão no idioma francês. De que forma você acredita que esse tipo de norma gramatical pode mudar nossa percepção do mundo? Há dez anos, eu teria dito que “dificilmente isso muda algo”, mas depois de escrever Justiça Ancilar, creio que essas regras gramaticais possam começar a mudar o modo como pensamos sobre as pessoas ao nosso redor. Em inglês, o uso do masculino como padrão tem o efeito de fazer parecer que as pessoas são todas homens, e qualquer outro gênero é um desvio, de forma que fica fácil falar sobre o que as pessoas precisam ou querem ou fazem, mas de fato apenas sobre os homens. Quando você questiona “e quanto às mulheres?”, isso repentinamente se torna um caso especial, não “as pessoas”. Abolir o padrão masculino na língua pode ajudar a expor essa situação, para que possamos perceber quando isso ocorre.

Algumas personagens do livro têm individualidades fragmentadas. Você acha que nós superestimamos nossa coerência individual e esquecemos nossas personalidades multifacetadas? Eu definitivamente acredito que sim. Quanto mais eu leio sobre personalidade, psicologia, a neurociência por trás da identidade e como vemos a nós mesmos, mais convencida eu fico de que contamos uma história sobre quem somos e por que fazemos as coisas, mas essa história é sempre posterior ao fato. É meio inquietante de se pensar sobre o quão delicado e vulnerável é nosso sentido de si — ele pode ser perturbado e destruído por certos tipos de dano cerebral.

Você acredita que inteligências artificiais alcançarão a singularidade e serão capazes de sentir emoções como elas fazem no romance? Honestamente, eu não sei. Eu acho que se tivermos inteligências artificiais tão sofisticadas quanto a ficção científica retrata, ela terá de sentir algo como emoção. Emoções são parte do modo como seres humanos pensam e tomam decisões — particularmente as mais sutis (qual camiseta vestir? O que pedir para o jantar?), mas também decisões de crises, momentos em que somos confrontados com situações perigosas com diversas variáveis. Nós não paramos e ponderamos, nós nos movimentamos guiados por instinto e emoção. Não teremos reações sofisticadas e humanas de inteligências artificiais somente programando tudo com regras situacionais complexas — nós não fazemos as coisas dessa forma. Eu acho que nós só alcançaremos esse nível de sofisticação de inteligências artificiais quando elas tiverem sua própria versão das emoções. 

A Justiça de Toren, que é uma inteligência artificial, tem emoções, enquanto Seivarden, que é humana, é viciada em kef, uma droga que suprime emoções. Como a sua ficção explora a dualidade entre seres racionais e emocionais? Não estou convencida de que haja uma dualidade, o que é parte do que explorei com Seivarden. Seu vício em uma droga que suprime emoções não a faz mais racional, mas a torna incapaz de encontrar motivo para fazer qualquer coisa. Afinal, por que qualquer um de nós faz qualquer coisa, se não nos importamos com aquilo ou com algo relacionado? Posso não ligar para um trabalho tedioso, mas eu me preocupo em ter dinheiro para me alimentar e pagar minhas contas, por exemplo. Acho que em muitas ficções científicas há uma suposição de que se livrar dos sentimentos nos levaria à razão suprema, e que a inteligência significa lógica sem emoção, o que sempre é retratado como crueldade. Acho que os pressupostos básicos dessa ideia estão errados: ausência de emoção não eleva a racionalidade. Emoções são parte de como seres humanos pensam, não apenas um obstáculo estranho no caminho do pensamento.

O Império Radch absorve religiões de uma forma orgânica. Você acha, sobre o Radch e nosso mundo, que a globalização torna a cultura homogênea de uma forma prejudicial? É possível. A questão é quem está absorvendo o que, para que fim. Há uma diferença entre pessoas trocando ideias e práticas à medida que se encontram e aprendem mutuamente (algo que ocorreu em toda a existência humana) e um grupo ou cultura poderosa tomando elementos de outra, menos forte, e os editando para se encaixar de modo que não ameacem o dominante, e que esse grupo possa lucrar. É interessante como frequentemente esses são elementos pelos quais um grupo minoritário é punido ou malvisto, mas quando o grupo dominante faz ou usa essas coisas, eles são descolados. E, claro, despidas de seu sentido original.

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