Especialistas comentam a longevidade de William Shakespeare


Histórias arquetípicas sobre amor e vingança e seu senso agudo de psicologia humana são apontados por Rebbeca Lemon e Arthur Marotti para obra do bardo ter sobrevivido

Por Ubiratan Brasil

A americana Rebecca Lemon, da University of Southern California, é uma das maiores especialistas em Shakespeare na atualidade. Na semana passada, ela fez uma palestra na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas sobre a relação entre Shakespeare, Direito e Teoria Política. O evento contou também com a participação de Arthur Marotti, da Wayne State University, outro especialista na obra do bardo. Juntos, eles responderam as mesmas perguntas formuladas pelo Estado.

O que Shakespeare tem que o fez sobreviver tão gloriosamente? Como explicam sua capacidade de interessar pessoas de níveis de educação e envolvimento tão distintos? 

Rebecca Lemon: Uma razão para Shakespeare interessar tantas pessoas é que ele herda e inventa histórias que são arquetípicas: histórias de amor, mortalidade, ciúme e vingança. Essas histórias encontram interessados em várias línguas e culturas. Penso que vemos isso no projeto Global Shakespeare, que compila encenações de Shakespeare por todo o globo, em muitas línguas - algumas dessas encenações traduzem o inglês original, enquanto outras se livram do texto de Shakespeare, mas conservam a história central. E a gama dessas encenações revela a longevidade de suas histórias porque essas histórias tocam em questões-chave da vida. Essas histórias também apresentam um amplo leque de pessoas. Shakespeare nos mostra (ou nos dá a ilusão de mostrar) as vidas interiores de homens e mulheres, de pessoas de várias raças; de pessoas aristocráticas e da classe trabalhadora. E, em sua forma dramática, as peças de Shakespeare investigam problemas da vida como o amor, o ciúme e a tirania, mas ele nunca nos dá uma resposta direta.

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Ele não é dogmático. Aliás, ele é meio que invisível - sua mão autoral não nos (induz) a nenhuma crença. O que temos não é a vida de um autor particular que tinha uma visão particular, mas um conjunto de peças que podemos encenar, interpretar e ler como quisermos. Outra razão porque Shakespeare sobrevive é que suas peças existem tanto em texto como em encenação: ele escreve uma poesia gloriosa, e ela aparece viva no palco. Assim, sua poesia aparece ante grandes plateias, e isso é estimulante. Há mais razões técnicas porque Shakespeare sobrevive.

Foram os críticos românticos que garantiram de fato sua reputação, e ele se tornou obrigatório em escolas por todo o globo no auge do Império Britânico. Mas eu acredito que a verdadeira razão agora tem a ver com a sua abertura a interpretações, e a maneira como ele escreve histórias memoráveis numa linguagem tão memorável.

Um dos sinais do apelo duradouro de Shakespeare - e uma das coisas que me surpreende em Shakespeare - foi revelada na semana passada na Direito da GV (Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas). Esse evento reuniu acadêmicos e alunos de direito de todo o Brasil.Esses acadêmicos e alunos são especialistas em direito - mas nossa conversou versou sobre Shakespeare. As obras de Shakespeare tocaram cada um na sala - tivemos conversas sobre vingança, tirania, sucessão, amor, fé, religião e uma grande variedade de outros tópicos.

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E todas essas conversas reconheceram o quão profundamente Shakespeare nos pede para pensar sobre essas questões - suas obras se recusam a oferecer uma reposta fácil. De modo que passamos horas debatendo Hamlet e Henrique V, pensando em como os apelos da Lei Sálica, ou do Velho Testamento à vingança são questionados nas peças. Exploramos como as peças de Shakespeare expõem a mudança das concepções medievais de soberania para as modernas. Exploramos como suas peças expõem os temores sobre a vulnerabilidade da jurisprudência e dos costumes à invasão estrangeira. Fiquei muito impressionada com o nível da conversa e do debate - e também comovida pela maneira como os alunos estavam envolvidos em Shakespeare, não apenas como um grande artista, mas como um pensador que os ajudou a meditar sobre questões legais importantes.

Isso é fantástico.

Arthur Marotti: Há muitas razões para a durabilidade de Shakespeare: sua linguagem maravilhosa, seu senso agudo de psicologia humana e as nuances de comportamento, sua capacidade de engajar os públicos em seu o próprio tempo e depois - pessoas de diferentes níveis sociais, diferentes competências intelectuais, diferentes pressupostos culturais. Muito de sua durabilidade advém de sua capacidade de escrever textos “abertos” que permitem que os públicos de seu próprio tempo e futuros ajudem a criar uma experiência imaginativa em cada peça. Essa abertura permite uma adaptação flexível de suas peças em diferentes tempos e diferentes países para tratar de novas circunstancias históricas e preocupações culturais. O subtítulo de sua peça Noite de Reis é Como Queiram Chamar. Ele escreve uma comédia chamada Assim é se lhe Parece; o título alternativo de Henrique VIII é Tudo é Verdade. Todos esses exemplos indicam a maneira como ele convida seus públicos a colaborarem com ele e a fazerem de seus dramas uma experiência que sirva a suas próprias necessidades e interesses.

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Somente um verdadeiro artista confiante poderia fazer esse tipo de gesto de abertura. Isso não significa que toda peça de Shakespeare sirva a qualquer circunstancia cultural. Historicamente, houve períodos em que Hamlet era encenado com muito mais frequência que Rei Lear, e outros em que ocorreu o oposto. Uma comédia de humor negro como Medida por Medida se adapta melhor à sensibilidade do século 21 que à do século 19. Plateias multiculturais reagem fortemente a uma peça como Otelo. Grandes atores e atrizes ficam famosos por papéis particulares e as peças em que atuam são encenadas.

Outra maneira de definir a durabilidade de Shakespeare é em termos da maneira como ele nos permite experimentar diversas consciências, apreciar simultaneamente diferentes pontos de vista sobre questões como autoridade política e a luta entre o velho e o novo com respeito a amor e casamento. Como a educação na sua época se apoiava no debate e na disputa e se esperava dos alunos que fossem capazes de argumentar por ambos os lados de uma questão controversa, os públicos de seu tempo tinham um gosto por conflitos encenados em que posições (em última instância, insolúveis), atitudes, ideias e crenças poderiam ser confrontadas mediante uma ação progressiva. Produções posteriores puderam pegar esses conflitos e torná-los relevantes para novas situações históricas. Shakespeare não prega, nem entrega significados desenvolvidos, mas encoraja membros do público a compreenderem o que ele oferece, a reagirem pessoalmente às complexidades de ação e personagem.

Muitos críticos tentaram abstrair o teatro da obra de Shakespeare e apresentá-la como se fosse poesia pura, e não como parte de uma forma de arte realmente efêmera. O que pensam a esse respeito? 

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Lemon: Shakespeare escreveu poemas comoventes e maravilhosos: seus sonetos e seus poemas longos. Ele é inquestionavelmente um poeta de primeira grandeza. E seu talento poético se faz presente em muitas de suas peças, em especial nas canções e solilóquios. Eu sugiro, portanto, com toda confiança, que podemos ler as peças de Shakespeare como poesia pura e tirar muito delas. Mas também é evidente que Shakespeare é um dramaturgo profundamente envolvido em teatro. Aliás, ele com frequência tematiza o teatro por meio de peças dentro de peças, como em Hamlet, Sonho de uma Noite de Verão e A Tempestade. Ele também fala dos seres humanos como personagens teatrais - ele mostra como nós “nos afligimos e nos pavoneamos nossa hora sobre o palco” ou “todo o mundo é um palco”. De modo que suas peças insistem em que nós as vejamos como peças, como dramas, que ganham vida no palco. De mais a mais, a escrita de Shakespeare era feita para ser fruída comunitariamente - esse é o grande papel do teatro. Assistir ao dilema de Hamlet, ou o amor de Otelo por Desdêmona, num contexto de grupo muda a maneira como experimentamos o texto, e é uma parte fundamental do que significa compreender e desfrutar de Shakespeare.

Marotti: As peças de Shakespeare não se mostram “efêmeras”, mas certamente estavam afinadas com o momento de sua composição e produção. Elas contêm poesia agradável que prende nossa atenção, mas também têm uma progressão narrativa que engaja nosso interesse no desfecho. Por ser escritor muito bom (com um vocabulário enorme para seu tempo com o qual ele brincava alegremente), por ser tão sensível às nuances da psicologia humana, por saber como as estruturas e fantasias narrativas poderiam trazer as audiências para a experiência do drama (embora, com frequência, as lembrasse, em determinadas peças, que o que estavam experimentando era ficcional), ele conseguia escrever textos de real durabilidade.

O que diriam ao leitor que fruiu alguma coisa de Shakespeare, mas não está absolutamente familiarizado com as montanhas de trabalhos acadêmicos e os debates intermináveis, e não tem background teórico? 

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Lemon: Eu diria, ótimo! Há muitas maneiras de se aproximar de Shakespeare. Claro, é importante haver especialistas pesquisando Shakespeare - estudiosos que estão sempre fazendo novas descobertas e contribuindo para o conhecimento e interpretação de sua obra. A erudição afeta a maneira como vemos Shakespeare - afeta encenações de sua obra no palco ( aprendamos cada vez mais sobre a pronúncia original e as práticas originais no teatro isabelino); e isso afeta também como vemos Shakespeare - na construção do teatro Globe em Londres, por exemplo. De modo que eu diria para alguém que não está familiarizado com o conhecimento erudito, é ótimo, porque quem vai ver as peças de Shakespeare ou assiste a Shakespeare em um filme provavelmente está recebendo algum conhecimento especializado sem percebê-lo. E diria também que Shakespeare é para todos! Não há razão para um leitor precisar ser um especialista para amar suas obras, no palco ou na página. Apenas desfrute.

Marotti: Os prazeres do teatro vivo são o ideal: Shakespeare escreveu peças para serem representadas, não principalmente para serem lidas (embora estudiosos recentes tenham demonstrado que ele produzia versões para leitura de suas peças para a circulação de manuscritos, e alguns textos impressos de suas peças eram populares junto aos leitores).

Os prazeres da interpretação, seja erudita ou apenas pessoal, são de ordem diferente - embora Shakespeare amiúde convide seus públicos a refletir no que estão experimentando no momento da experiência e também pouco depois de a peça terminar: quando Hamlet e Otelo pedem para o público narrar a história do que lhes sucedeu, Shakespeare está pedindo para o público começar a refletir no que acabou de ver e de ouvir. A boa erudição e uma interpretação penetrante nos ajudam a fazer isso: elas não devem estragar o prazer da arte, mas sim contribuir para ele.

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Das conclusões sobre a obra de Shakespeare, quais foram as que mais os impressionaram? 

Lemon: Shakespeare estava profundamente envolvido em questões políticas de seu tempo. Isso me surpreendeu, porque me ensinaram Shakespeare como uma forma de poesia, como uma forma de arte elevada.

Ensinaram-me Shakespeare em relação ao gênero, às formas clássicas, e a outros autores. Nos últimos vinte anos, porém, trabalhando com outros estudiosos e fazendo minha própria pesquisa, percebi que Shakespeare é muito preciso em seu engajamento com várias questões políticas diferentes: tirania, usurpação, sucessão e traição. Creio que isso ajuda a explicar o interesse constante que ele desperta - ele medita sobre questões do poder do Estado que ainda nos preocupam. É por isso que Shakespeare foi muitas vezes proibido por regimes tirânicos. Os nazistas proibiram encenações de Shakespeare em Praga quando ocuparam a cidade; depois, os soviéticos proibiram Shakespeare em Praga quando governaram. Shakespeare é radical, e potencialmente perigoso - e isso me surpreendeu.

Marotti: Eu dei cursos sobre Shakespeare por 45 anos e cada vez que ensino uma peça noto coisas novas sobre ela. Fiquei surpreso, imagino, pela diferença como olho peças como Sonhos de uma Noite de Verão, Romeu e Julieta e Rei Lear em minha maturidade em relação a como as olhava quando era jovem. A idade, o gênero, a experiência de vida da pessoa reformula constantemente a maneira como ela percebe esses textos e os compreende de maneira diferente.

Minhas conclusões sobre Shakespeare são mais um aprofundamento de convicções sobre ele que eu formei anteriormente - que não há escritor melhor em inglês, nem melhor observador da cena humana, e não há dramaturgo mais habilidoso.

É verdade que Shakespeare tinha uma natureza essencialmente bissexual (percebendo, é claro, que toda a ideia de orientação sexual é uma construção muito posterior)? 

Lemon: Não posso especular sobre a orientação sexual de Shakespeare, e realmente não quero fazê-lo. Eu direi que Shakespeare apresenta muitas formas de amor, de amizades profundas a atrações passageiras a ligações libidinosas. E mostra essas formas de amor entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, e homens e homens. Ele é ecumênico assim. Todo o mundo tem direito ao amor.

Marotti: Eu considero essa pergunta improdutiva. Especular ociosamente sobre a sexualidade ou identidade sexual de um escritor cujos detalhes biográficos são tão poucos não é muito útil, em última análise. Nos desvia das complexidades maravilhosas de suas peças e poemas, bem como impõe anacronicamente a ele e seu tempo noções de identidade sexual que lhes são estranhas. Na Renascença, havia práticas sexuais (mesmo sexo ou sexos opostos), mas a noção moderna de identidade ou identidade sexuais (gay, heterossexual, bi-, trans-, etc.) não faria sentido.

A maioria dos primeiros editores retirou cinco linhas de Romeu e Julieta em nome da decência comum. Que linhas causaram tanto escândalo? 

(Rebecca Lemon não respondeu a essa pergunta).

Marotti: Não tenho minhas obras completas de Shakespeare comigo e não posso precisar as linhas a que se refere, mas noto que o que era censurado nos dramas na época de Shakespeare não era o conteúdo sexual, mas o conteúdo político e religioso: os dramaturgos não podiam escrever sobre figuras políticas contemporâneas ou sobre polêmicas religiosas.

Evidentemente, eles encontravam maneiras indiretas de fazê-lo, ambientando suas peças em outros países e outras épocas. 

A americana Rebecca Lemon, da University of Southern California, é uma das maiores especialistas em Shakespeare na atualidade. Na semana passada, ela fez uma palestra na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas sobre a relação entre Shakespeare, Direito e Teoria Política. O evento contou também com a participação de Arthur Marotti, da Wayne State University, outro especialista na obra do bardo. Juntos, eles responderam as mesmas perguntas formuladas pelo Estado.

O que Shakespeare tem que o fez sobreviver tão gloriosamente? Como explicam sua capacidade de interessar pessoas de níveis de educação e envolvimento tão distintos? 

Rebecca Lemon: Uma razão para Shakespeare interessar tantas pessoas é que ele herda e inventa histórias que são arquetípicas: histórias de amor, mortalidade, ciúme e vingança. Essas histórias encontram interessados em várias línguas e culturas. Penso que vemos isso no projeto Global Shakespeare, que compila encenações de Shakespeare por todo o globo, em muitas línguas - algumas dessas encenações traduzem o inglês original, enquanto outras se livram do texto de Shakespeare, mas conservam a história central. E a gama dessas encenações revela a longevidade de suas histórias porque essas histórias tocam em questões-chave da vida. Essas histórias também apresentam um amplo leque de pessoas. Shakespeare nos mostra (ou nos dá a ilusão de mostrar) as vidas interiores de homens e mulheres, de pessoas de várias raças; de pessoas aristocráticas e da classe trabalhadora. E, em sua forma dramática, as peças de Shakespeare investigam problemas da vida como o amor, o ciúme e a tirania, mas ele nunca nos dá uma resposta direta.

Ele não é dogmático. Aliás, ele é meio que invisível - sua mão autoral não nos (induz) a nenhuma crença. O que temos não é a vida de um autor particular que tinha uma visão particular, mas um conjunto de peças que podemos encenar, interpretar e ler como quisermos. Outra razão porque Shakespeare sobrevive é que suas peças existem tanto em texto como em encenação: ele escreve uma poesia gloriosa, e ela aparece viva no palco. Assim, sua poesia aparece ante grandes plateias, e isso é estimulante. Há mais razões técnicas porque Shakespeare sobrevive.

Foram os críticos românticos que garantiram de fato sua reputação, e ele se tornou obrigatório em escolas por todo o globo no auge do Império Britânico. Mas eu acredito que a verdadeira razão agora tem a ver com a sua abertura a interpretações, e a maneira como ele escreve histórias memoráveis numa linguagem tão memorável.

Um dos sinais do apelo duradouro de Shakespeare - e uma das coisas que me surpreende em Shakespeare - foi revelada na semana passada na Direito da GV (Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas). Esse evento reuniu acadêmicos e alunos de direito de todo o Brasil.Esses acadêmicos e alunos são especialistas em direito - mas nossa conversou versou sobre Shakespeare. As obras de Shakespeare tocaram cada um na sala - tivemos conversas sobre vingança, tirania, sucessão, amor, fé, religião e uma grande variedade de outros tópicos.

E todas essas conversas reconheceram o quão profundamente Shakespeare nos pede para pensar sobre essas questões - suas obras se recusam a oferecer uma reposta fácil. De modo que passamos horas debatendo Hamlet e Henrique V, pensando em como os apelos da Lei Sálica, ou do Velho Testamento à vingança são questionados nas peças. Exploramos como as peças de Shakespeare expõem a mudança das concepções medievais de soberania para as modernas. Exploramos como suas peças expõem os temores sobre a vulnerabilidade da jurisprudência e dos costumes à invasão estrangeira. Fiquei muito impressionada com o nível da conversa e do debate - e também comovida pela maneira como os alunos estavam envolvidos em Shakespeare, não apenas como um grande artista, mas como um pensador que os ajudou a meditar sobre questões legais importantes.

Isso é fantástico.

Arthur Marotti: Há muitas razões para a durabilidade de Shakespeare: sua linguagem maravilhosa, seu senso agudo de psicologia humana e as nuances de comportamento, sua capacidade de engajar os públicos em seu o próprio tempo e depois - pessoas de diferentes níveis sociais, diferentes competências intelectuais, diferentes pressupostos culturais. Muito de sua durabilidade advém de sua capacidade de escrever textos “abertos” que permitem que os públicos de seu próprio tempo e futuros ajudem a criar uma experiência imaginativa em cada peça. Essa abertura permite uma adaptação flexível de suas peças em diferentes tempos e diferentes países para tratar de novas circunstancias históricas e preocupações culturais. O subtítulo de sua peça Noite de Reis é Como Queiram Chamar. Ele escreve uma comédia chamada Assim é se lhe Parece; o título alternativo de Henrique VIII é Tudo é Verdade. Todos esses exemplos indicam a maneira como ele convida seus públicos a colaborarem com ele e a fazerem de seus dramas uma experiência que sirva a suas próprias necessidades e interesses.

Somente um verdadeiro artista confiante poderia fazer esse tipo de gesto de abertura. Isso não significa que toda peça de Shakespeare sirva a qualquer circunstancia cultural. Historicamente, houve períodos em que Hamlet era encenado com muito mais frequência que Rei Lear, e outros em que ocorreu o oposto. Uma comédia de humor negro como Medida por Medida se adapta melhor à sensibilidade do século 21 que à do século 19. Plateias multiculturais reagem fortemente a uma peça como Otelo. Grandes atores e atrizes ficam famosos por papéis particulares e as peças em que atuam são encenadas.

Outra maneira de definir a durabilidade de Shakespeare é em termos da maneira como ele nos permite experimentar diversas consciências, apreciar simultaneamente diferentes pontos de vista sobre questões como autoridade política e a luta entre o velho e o novo com respeito a amor e casamento. Como a educação na sua época se apoiava no debate e na disputa e se esperava dos alunos que fossem capazes de argumentar por ambos os lados de uma questão controversa, os públicos de seu tempo tinham um gosto por conflitos encenados em que posições (em última instância, insolúveis), atitudes, ideias e crenças poderiam ser confrontadas mediante uma ação progressiva. Produções posteriores puderam pegar esses conflitos e torná-los relevantes para novas situações históricas. Shakespeare não prega, nem entrega significados desenvolvidos, mas encoraja membros do público a compreenderem o que ele oferece, a reagirem pessoalmente às complexidades de ação e personagem.

Muitos críticos tentaram abstrair o teatro da obra de Shakespeare e apresentá-la como se fosse poesia pura, e não como parte de uma forma de arte realmente efêmera. O que pensam a esse respeito? 

Lemon: Shakespeare escreveu poemas comoventes e maravilhosos: seus sonetos e seus poemas longos. Ele é inquestionavelmente um poeta de primeira grandeza. E seu talento poético se faz presente em muitas de suas peças, em especial nas canções e solilóquios. Eu sugiro, portanto, com toda confiança, que podemos ler as peças de Shakespeare como poesia pura e tirar muito delas. Mas também é evidente que Shakespeare é um dramaturgo profundamente envolvido em teatro. Aliás, ele com frequência tematiza o teatro por meio de peças dentro de peças, como em Hamlet, Sonho de uma Noite de Verão e A Tempestade. Ele também fala dos seres humanos como personagens teatrais - ele mostra como nós “nos afligimos e nos pavoneamos nossa hora sobre o palco” ou “todo o mundo é um palco”. De modo que suas peças insistem em que nós as vejamos como peças, como dramas, que ganham vida no palco. De mais a mais, a escrita de Shakespeare era feita para ser fruída comunitariamente - esse é o grande papel do teatro. Assistir ao dilema de Hamlet, ou o amor de Otelo por Desdêmona, num contexto de grupo muda a maneira como experimentamos o texto, e é uma parte fundamental do que significa compreender e desfrutar de Shakespeare.

Marotti: As peças de Shakespeare não se mostram “efêmeras”, mas certamente estavam afinadas com o momento de sua composição e produção. Elas contêm poesia agradável que prende nossa atenção, mas também têm uma progressão narrativa que engaja nosso interesse no desfecho. Por ser escritor muito bom (com um vocabulário enorme para seu tempo com o qual ele brincava alegremente), por ser tão sensível às nuances da psicologia humana, por saber como as estruturas e fantasias narrativas poderiam trazer as audiências para a experiência do drama (embora, com frequência, as lembrasse, em determinadas peças, que o que estavam experimentando era ficcional), ele conseguia escrever textos de real durabilidade.

O que diriam ao leitor que fruiu alguma coisa de Shakespeare, mas não está absolutamente familiarizado com as montanhas de trabalhos acadêmicos e os debates intermináveis, e não tem background teórico? 

Lemon: Eu diria, ótimo! Há muitas maneiras de se aproximar de Shakespeare. Claro, é importante haver especialistas pesquisando Shakespeare - estudiosos que estão sempre fazendo novas descobertas e contribuindo para o conhecimento e interpretação de sua obra. A erudição afeta a maneira como vemos Shakespeare - afeta encenações de sua obra no palco ( aprendamos cada vez mais sobre a pronúncia original e as práticas originais no teatro isabelino); e isso afeta também como vemos Shakespeare - na construção do teatro Globe em Londres, por exemplo. De modo que eu diria para alguém que não está familiarizado com o conhecimento erudito, é ótimo, porque quem vai ver as peças de Shakespeare ou assiste a Shakespeare em um filme provavelmente está recebendo algum conhecimento especializado sem percebê-lo. E diria também que Shakespeare é para todos! Não há razão para um leitor precisar ser um especialista para amar suas obras, no palco ou na página. Apenas desfrute.

Marotti: Os prazeres do teatro vivo são o ideal: Shakespeare escreveu peças para serem representadas, não principalmente para serem lidas (embora estudiosos recentes tenham demonstrado que ele produzia versões para leitura de suas peças para a circulação de manuscritos, e alguns textos impressos de suas peças eram populares junto aos leitores).

Os prazeres da interpretação, seja erudita ou apenas pessoal, são de ordem diferente - embora Shakespeare amiúde convide seus públicos a refletir no que estão experimentando no momento da experiência e também pouco depois de a peça terminar: quando Hamlet e Otelo pedem para o público narrar a história do que lhes sucedeu, Shakespeare está pedindo para o público começar a refletir no que acabou de ver e de ouvir. A boa erudição e uma interpretação penetrante nos ajudam a fazer isso: elas não devem estragar o prazer da arte, mas sim contribuir para ele.

Das conclusões sobre a obra de Shakespeare, quais foram as que mais os impressionaram? 

Lemon: Shakespeare estava profundamente envolvido em questões políticas de seu tempo. Isso me surpreendeu, porque me ensinaram Shakespeare como uma forma de poesia, como uma forma de arte elevada.

Ensinaram-me Shakespeare em relação ao gênero, às formas clássicas, e a outros autores. Nos últimos vinte anos, porém, trabalhando com outros estudiosos e fazendo minha própria pesquisa, percebi que Shakespeare é muito preciso em seu engajamento com várias questões políticas diferentes: tirania, usurpação, sucessão e traição. Creio que isso ajuda a explicar o interesse constante que ele desperta - ele medita sobre questões do poder do Estado que ainda nos preocupam. É por isso que Shakespeare foi muitas vezes proibido por regimes tirânicos. Os nazistas proibiram encenações de Shakespeare em Praga quando ocuparam a cidade; depois, os soviéticos proibiram Shakespeare em Praga quando governaram. Shakespeare é radical, e potencialmente perigoso - e isso me surpreendeu.

Marotti: Eu dei cursos sobre Shakespeare por 45 anos e cada vez que ensino uma peça noto coisas novas sobre ela. Fiquei surpreso, imagino, pela diferença como olho peças como Sonhos de uma Noite de Verão, Romeu e Julieta e Rei Lear em minha maturidade em relação a como as olhava quando era jovem. A idade, o gênero, a experiência de vida da pessoa reformula constantemente a maneira como ela percebe esses textos e os compreende de maneira diferente.

Minhas conclusões sobre Shakespeare são mais um aprofundamento de convicções sobre ele que eu formei anteriormente - que não há escritor melhor em inglês, nem melhor observador da cena humana, e não há dramaturgo mais habilidoso.

É verdade que Shakespeare tinha uma natureza essencialmente bissexual (percebendo, é claro, que toda a ideia de orientação sexual é uma construção muito posterior)? 

Lemon: Não posso especular sobre a orientação sexual de Shakespeare, e realmente não quero fazê-lo. Eu direi que Shakespeare apresenta muitas formas de amor, de amizades profundas a atrações passageiras a ligações libidinosas. E mostra essas formas de amor entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, e homens e homens. Ele é ecumênico assim. Todo o mundo tem direito ao amor.

Marotti: Eu considero essa pergunta improdutiva. Especular ociosamente sobre a sexualidade ou identidade sexual de um escritor cujos detalhes biográficos são tão poucos não é muito útil, em última análise. Nos desvia das complexidades maravilhosas de suas peças e poemas, bem como impõe anacronicamente a ele e seu tempo noções de identidade sexual que lhes são estranhas. Na Renascença, havia práticas sexuais (mesmo sexo ou sexos opostos), mas a noção moderna de identidade ou identidade sexuais (gay, heterossexual, bi-, trans-, etc.) não faria sentido.

A maioria dos primeiros editores retirou cinco linhas de Romeu e Julieta em nome da decência comum. Que linhas causaram tanto escândalo? 

(Rebecca Lemon não respondeu a essa pergunta).

Marotti: Não tenho minhas obras completas de Shakespeare comigo e não posso precisar as linhas a que se refere, mas noto que o que era censurado nos dramas na época de Shakespeare não era o conteúdo sexual, mas o conteúdo político e religioso: os dramaturgos não podiam escrever sobre figuras políticas contemporâneas ou sobre polêmicas religiosas.

Evidentemente, eles encontravam maneiras indiretas de fazê-lo, ambientando suas peças em outros países e outras épocas. 

A americana Rebecca Lemon, da University of Southern California, é uma das maiores especialistas em Shakespeare na atualidade. Na semana passada, ela fez uma palestra na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas sobre a relação entre Shakespeare, Direito e Teoria Política. O evento contou também com a participação de Arthur Marotti, da Wayne State University, outro especialista na obra do bardo. Juntos, eles responderam as mesmas perguntas formuladas pelo Estado.

O que Shakespeare tem que o fez sobreviver tão gloriosamente? Como explicam sua capacidade de interessar pessoas de níveis de educação e envolvimento tão distintos? 

Rebecca Lemon: Uma razão para Shakespeare interessar tantas pessoas é que ele herda e inventa histórias que são arquetípicas: histórias de amor, mortalidade, ciúme e vingança. Essas histórias encontram interessados em várias línguas e culturas. Penso que vemos isso no projeto Global Shakespeare, que compila encenações de Shakespeare por todo o globo, em muitas línguas - algumas dessas encenações traduzem o inglês original, enquanto outras se livram do texto de Shakespeare, mas conservam a história central. E a gama dessas encenações revela a longevidade de suas histórias porque essas histórias tocam em questões-chave da vida. Essas histórias também apresentam um amplo leque de pessoas. Shakespeare nos mostra (ou nos dá a ilusão de mostrar) as vidas interiores de homens e mulheres, de pessoas de várias raças; de pessoas aristocráticas e da classe trabalhadora. E, em sua forma dramática, as peças de Shakespeare investigam problemas da vida como o amor, o ciúme e a tirania, mas ele nunca nos dá uma resposta direta.

Ele não é dogmático. Aliás, ele é meio que invisível - sua mão autoral não nos (induz) a nenhuma crença. O que temos não é a vida de um autor particular que tinha uma visão particular, mas um conjunto de peças que podemos encenar, interpretar e ler como quisermos. Outra razão porque Shakespeare sobrevive é que suas peças existem tanto em texto como em encenação: ele escreve uma poesia gloriosa, e ela aparece viva no palco. Assim, sua poesia aparece ante grandes plateias, e isso é estimulante. Há mais razões técnicas porque Shakespeare sobrevive.

Foram os críticos românticos que garantiram de fato sua reputação, e ele se tornou obrigatório em escolas por todo o globo no auge do Império Britânico. Mas eu acredito que a verdadeira razão agora tem a ver com a sua abertura a interpretações, e a maneira como ele escreve histórias memoráveis numa linguagem tão memorável.

Um dos sinais do apelo duradouro de Shakespeare - e uma das coisas que me surpreende em Shakespeare - foi revelada na semana passada na Direito da GV (Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas). Esse evento reuniu acadêmicos e alunos de direito de todo o Brasil.Esses acadêmicos e alunos são especialistas em direito - mas nossa conversou versou sobre Shakespeare. As obras de Shakespeare tocaram cada um na sala - tivemos conversas sobre vingança, tirania, sucessão, amor, fé, religião e uma grande variedade de outros tópicos.

E todas essas conversas reconheceram o quão profundamente Shakespeare nos pede para pensar sobre essas questões - suas obras se recusam a oferecer uma reposta fácil. De modo que passamos horas debatendo Hamlet e Henrique V, pensando em como os apelos da Lei Sálica, ou do Velho Testamento à vingança são questionados nas peças. Exploramos como as peças de Shakespeare expõem a mudança das concepções medievais de soberania para as modernas. Exploramos como suas peças expõem os temores sobre a vulnerabilidade da jurisprudência e dos costumes à invasão estrangeira. Fiquei muito impressionada com o nível da conversa e do debate - e também comovida pela maneira como os alunos estavam envolvidos em Shakespeare, não apenas como um grande artista, mas como um pensador que os ajudou a meditar sobre questões legais importantes.

Isso é fantástico.

Arthur Marotti: Há muitas razões para a durabilidade de Shakespeare: sua linguagem maravilhosa, seu senso agudo de psicologia humana e as nuances de comportamento, sua capacidade de engajar os públicos em seu o próprio tempo e depois - pessoas de diferentes níveis sociais, diferentes competências intelectuais, diferentes pressupostos culturais. Muito de sua durabilidade advém de sua capacidade de escrever textos “abertos” que permitem que os públicos de seu próprio tempo e futuros ajudem a criar uma experiência imaginativa em cada peça. Essa abertura permite uma adaptação flexível de suas peças em diferentes tempos e diferentes países para tratar de novas circunstancias históricas e preocupações culturais. O subtítulo de sua peça Noite de Reis é Como Queiram Chamar. Ele escreve uma comédia chamada Assim é se lhe Parece; o título alternativo de Henrique VIII é Tudo é Verdade. Todos esses exemplos indicam a maneira como ele convida seus públicos a colaborarem com ele e a fazerem de seus dramas uma experiência que sirva a suas próprias necessidades e interesses.

Somente um verdadeiro artista confiante poderia fazer esse tipo de gesto de abertura. Isso não significa que toda peça de Shakespeare sirva a qualquer circunstancia cultural. Historicamente, houve períodos em que Hamlet era encenado com muito mais frequência que Rei Lear, e outros em que ocorreu o oposto. Uma comédia de humor negro como Medida por Medida se adapta melhor à sensibilidade do século 21 que à do século 19. Plateias multiculturais reagem fortemente a uma peça como Otelo. Grandes atores e atrizes ficam famosos por papéis particulares e as peças em que atuam são encenadas.

Outra maneira de definir a durabilidade de Shakespeare é em termos da maneira como ele nos permite experimentar diversas consciências, apreciar simultaneamente diferentes pontos de vista sobre questões como autoridade política e a luta entre o velho e o novo com respeito a amor e casamento. Como a educação na sua época se apoiava no debate e na disputa e se esperava dos alunos que fossem capazes de argumentar por ambos os lados de uma questão controversa, os públicos de seu tempo tinham um gosto por conflitos encenados em que posições (em última instância, insolúveis), atitudes, ideias e crenças poderiam ser confrontadas mediante uma ação progressiva. Produções posteriores puderam pegar esses conflitos e torná-los relevantes para novas situações históricas. Shakespeare não prega, nem entrega significados desenvolvidos, mas encoraja membros do público a compreenderem o que ele oferece, a reagirem pessoalmente às complexidades de ação e personagem.

Muitos críticos tentaram abstrair o teatro da obra de Shakespeare e apresentá-la como se fosse poesia pura, e não como parte de uma forma de arte realmente efêmera. O que pensam a esse respeito? 

Lemon: Shakespeare escreveu poemas comoventes e maravilhosos: seus sonetos e seus poemas longos. Ele é inquestionavelmente um poeta de primeira grandeza. E seu talento poético se faz presente em muitas de suas peças, em especial nas canções e solilóquios. Eu sugiro, portanto, com toda confiança, que podemos ler as peças de Shakespeare como poesia pura e tirar muito delas. Mas também é evidente que Shakespeare é um dramaturgo profundamente envolvido em teatro. Aliás, ele com frequência tematiza o teatro por meio de peças dentro de peças, como em Hamlet, Sonho de uma Noite de Verão e A Tempestade. Ele também fala dos seres humanos como personagens teatrais - ele mostra como nós “nos afligimos e nos pavoneamos nossa hora sobre o palco” ou “todo o mundo é um palco”. De modo que suas peças insistem em que nós as vejamos como peças, como dramas, que ganham vida no palco. De mais a mais, a escrita de Shakespeare era feita para ser fruída comunitariamente - esse é o grande papel do teatro. Assistir ao dilema de Hamlet, ou o amor de Otelo por Desdêmona, num contexto de grupo muda a maneira como experimentamos o texto, e é uma parte fundamental do que significa compreender e desfrutar de Shakespeare.

Marotti: As peças de Shakespeare não se mostram “efêmeras”, mas certamente estavam afinadas com o momento de sua composição e produção. Elas contêm poesia agradável que prende nossa atenção, mas também têm uma progressão narrativa que engaja nosso interesse no desfecho. Por ser escritor muito bom (com um vocabulário enorme para seu tempo com o qual ele brincava alegremente), por ser tão sensível às nuances da psicologia humana, por saber como as estruturas e fantasias narrativas poderiam trazer as audiências para a experiência do drama (embora, com frequência, as lembrasse, em determinadas peças, que o que estavam experimentando era ficcional), ele conseguia escrever textos de real durabilidade.

O que diriam ao leitor que fruiu alguma coisa de Shakespeare, mas não está absolutamente familiarizado com as montanhas de trabalhos acadêmicos e os debates intermináveis, e não tem background teórico? 

Lemon: Eu diria, ótimo! Há muitas maneiras de se aproximar de Shakespeare. Claro, é importante haver especialistas pesquisando Shakespeare - estudiosos que estão sempre fazendo novas descobertas e contribuindo para o conhecimento e interpretação de sua obra. A erudição afeta a maneira como vemos Shakespeare - afeta encenações de sua obra no palco ( aprendamos cada vez mais sobre a pronúncia original e as práticas originais no teatro isabelino); e isso afeta também como vemos Shakespeare - na construção do teatro Globe em Londres, por exemplo. De modo que eu diria para alguém que não está familiarizado com o conhecimento erudito, é ótimo, porque quem vai ver as peças de Shakespeare ou assiste a Shakespeare em um filme provavelmente está recebendo algum conhecimento especializado sem percebê-lo. E diria também que Shakespeare é para todos! Não há razão para um leitor precisar ser um especialista para amar suas obras, no palco ou na página. Apenas desfrute.

Marotti: Os prazeres do teatro vivo são o ideal: Shakespeare escreveu peças para serem representadas, não principalmente para serem lidas (embora estudiosos recentes tenham demonstrado que ele produzia versões para leitura de suas peças para a circulação de manuscritos, e alguns textos impressos de suas peças eram populares junto aos leitores).

Os prazeres da interpretação, seja erudita ou apenas pessoal, são de ordem diferente - embora Shakespeare amiúde convide seus públicos a refletir no que estão experimentando no momento da experiência e também pouco depois de a peça terminar: quando Hamlet e Otelo pedem para o público narrar a história do que lhes sucedeu, Shakespeare está pedindo para o público começar a refletir no que acabou de ver e de ouvir. A boa erudição e uma interpretação penetrante nos ajudam a fazer isso: elas não devem estragar o prazer da arte, mas sim contribuir para ele.

Das conclusões sobre a obra de Shakespeare, quais foram as que mais os impressionaram? 

Lemon: Shakespeare estava profundamente envolvido em questões políticas de seu tempo. Isso me surpreendeu, porque me ensinaram Shakespeare como uma forma de poesia, como uma forma de arte elevada.

Ensinaram-me Shakespeare em relação ao gênero, às formas clássicas, e a outros autores. Nos últimos vinte anos, porém, trabalhando com outros estudiosos e fazendo minha própria pesquisa, percebi que Shakespeare é muito preciso em seu engajamento com várias questões políticas diferentes: tirania, usurpação, sucessão e traição. Creio que isso ajuda a explicar o interesse constante que ele desperta - ele medita sobre questões do poder do Estado que ainda nos preocupam. É por isso que Shakespeare foi muitas vezes proibido por regimes tirânicos. Os nazistas proibiram encenações de Shakespeare em Praga quando ocuparam a cidade; depois, os soviéticos proibiram Shakespeare em Praga quando governaram. Shakespeare é radical, e potencialmente perigoso - e isso me surpreendeu.

Marotti: Eu dei cursos sobre Shakespeare por 45 anos e cada vez que ensino uma peça noto coisas novas sobre ela. Fiquei surpreso, imagino, pela diferença como olho peças como Sonhos de uma Noite de Verão, Romeu e Julieta e Rei Lear em minha maturidade em relação a como as olhava quando era jovem. A idade, o gênero, a experiência de vida da pessoa reformula constantemente a maneira como ela percebe esses textos e os compreende de maneira diferente.

Minhas conclusões sobre Shakespeare são mais um aprofundamento de convicções sobre ele que eu formei anteriormente - que não há escritor melhor em inglês, nem melhor observador da cena humana, e não há dramaturgo mais habilidoso.

É verdade que Shakespeare tinha uma natureza essencialmente bissexual (percebendo, é claro, que toda a ideia de orientação sexual é uma construção muito posterior)? 

Lemon: Não posso especular sobre a orientação sexual de Shakespeare, e realmente não quero fazê-lo. Eu direi que Shakespeare apresenta muitas formas de amor, de amizades profundas a atrações passageiras a ligações libidinosas. E mostra essas formas de amor entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, e homens e homens. Ele é ecumênico assim. Todo o mundo tem direito ao amor.

Marotti: Eu considero essa pergunta improdutiva. Especular ociosamente sobre a sexualidade ou identidade sexual de um escritor cujos detalhes biográficos são tão poucos não é muito útil, em última análise. Nos desvia das complexidades maravilhosas de suas peças e poemas, bem como impõe anacronicamente a ele e seu tempo noções de identidade sexual que lhes são estranhas. Na Renascença, havia práticas sexuais (mesmo sexo ou sexos opostos), mas a noção moderna de identidade ou identidade sexuais (gay, heterossexual, bi-, trans-, etc.) não faria sentido.

A maioria dos primeiros editores retirou cinco linhas de Romeu e Julieta em nome da decência comum. Que linhas causaram tanto escândalo? 

(Rebecca Lemon não respondeu a essa pergunta).

Marotti: Não tenho minhas obras completas de Shakespeare comigo e não posso precisar as linhas a que se refere, mas noto que o que era censurado nos dramas na época de Shakespeare não era o conteúdo sexual, mas o conteúdo político e religioso: os dramaturgos não podiam escrever sobre figuras políticas contemporâneas ou sobre polêmicas religiosas.

Evidentemente, eles encontravam maneiras indiretas de fazê-lo, ambientando suas peças em outros países e outras épocas. 

A americana Rebecca Lemon, da University of Southern California, é uma das maiores especialistas em Shakespeare na atualidade. Na semana passada, ela fez uma palestra na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas sobre a relação entre Shakespeare, Direito e Teoria Política. O evento contou também com a participação de Arthur Marotti, da Wayne State University, outro especialista na obra do bardo. Juntos, eles responderam as mesmas perguntas formuladas pelo Estado.

O que Shakespeare tem que o fez sobreviver tão gloriosamente? Como explicam sua capacidade de interessar pessoas de níveis de educação e envolvimento tão distintos? 

Rebecca Lemon: Uma razão para Shakespeare interessar tantas pessoas é que ele herda e inventa histórias que são arquetípicas: histórias de amor, mortalidade, ciúme e vingança. Essas histórias encontram interessados em várias línguas e culturas. Penso que vemos isso no projeto Global Shakespeare, que compila encenações de Shakespeare por todo o globo, em muitas línguas - algumas dessas encenações traduzem o inglês original, enquanto outras se livram do texto de Shakespeare, mas conservam a história central. E a gama dessas encenações revela a longevidade de suas histórias porque essas histórias tocam em questões-chave da vida. Essas histórias também apresentam um amplo leque de pessoas. Shakespeare nos mostra (ou nos dá a ilusão de mostrar) as vidas interiores de homens e mulheres, de pessoas de várias raças; de pessoas aristocráticas e da classe trabalhadora. E, em sua forma dramática, as peças de Shakespeare investigam problemas da vida como o amor, o ciúme e a tirania, mas ele nunca nos dá uma resposta direta.

Ele não é dogmático. Aliás, ele é meio que invisível - sua mão autoral não nos (induz) a nenhuma crença. O que temos não é a vida de um autor particular que tinha uma visão particular, mas um conjunto de peças que podemos encenar, interpretar e ler como quisermos. Outra razão porque Shakespeare sobrevive é que suas peças existem tanto em texto como em encenação: ele escreve uma poesia gloriosa, e ela aparece viva no palco. Assim, sua poesia aparece ante grandes plateias, e isso é estimulante. Há mais razões técnicas porque Shakespeare sobrevive.

Foram os críticos românticos que garantiram de fato sua reputação, e ele se tornou obrigatório em escolas por todo o globo no auge do Império Britânico. Mas eu acredito que a verdadeira razão agora tem a ver com a sua abertura a interpretações, e a maneira como ele escreve histórias memoráveis numa linguagem tão memorável.

Um dos sinais do apelo duradouro de Shakespeare - e uma das coisas que me surpreende em Shakespeare - foi revelada na semana passada na Direito da GV (Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas). Esse evento reuniu acadêmicos e alunos de direito de todo o Brasil.Esses acadêmicos e alunos são especialistas em direito - mas nossa conversou versou sobre Shakespeare. As obras de Shakespeare tocaram cada um na sala - tivemos conversas sobre vingança, tirania, sucessão, amor, fé, religião e uma grande variedade de outros tópicos.

E todas essas conversas reconheceram o quão profundamente Shakespeare nos pede para pensar sobre essas questões - suas obras se recusam a oferecer uma reposta fácil. De modo que passamos horas debatendo Hamlet e Henrique V, pensando em como os apelos da Lei Sálica, ou do Velho Testamento à vingança são questionados nas peças. Exploramos como as peças de Shakespeare expõem a mudança das concepções medievais de soberania para as modernas. Exploramos como suas peças expõem os temores sobre a vulnerabilidade da jurisprudência e dos costumes à invasão estrangeira. Fiquei muito impressionada com o nível da conversa e do debate - e também comovida pela maneira como os alunos estavam envolvidos em Shakespeare, não apenas como um grande artista, mas como um pensador que os ajudou a meditar sobre questões legais importantes.

Isso é fantástico.

Arthur Marotti: Há muitas razões para a durabilidade de Shakespeare: sua linguagem maravilhosa, seu senso agudo de psicologia humana e as nuances de comportamento, sua capacidade de engajar os públicos em seu o próprio tempo e depois - pessoas de diferentes níveis sociais, diferentes competências intelectuais, diferentes pressupostos culturais. Muito de sua durabilidade advém de sua capacidade de escrever textos “abertos” que permitem que os públicos de seu próprio tempo e futuros ajudem a criar uma experiência imaginativa em cada peça. Essa abertura permite uma adaptação flexível de suas peças em diferentes tempos e diferentes países para tratar de novas circunstancias históricas e preocupações culturais. O subtítulo de sua peça Noite de Reis é Como Queiram Chamar. Ele escreve uma comédia chamada Assim é se lhe Parece; o título alternativo de Henrique VIII é Tudo é Verdade. Todos esses exemplos indicam a maneira como ele convida seus públicos a colaborarem com ele e a fazerem de seus dramas uma experiência que sirva a suas próprias necessidades e interesses.

Somente um verdadeiro artista confiante poderia fazer esse tipo de gesto de abertura. Isso não significa que toda peça de Shakespeare sirva a qualquer circunstancia cultural. Historicamente, houve períodos em que Hamlet era encenado com muito mais frequência que Rei Lear, e outros em que ocorreu o oposto. Uma comédia de humor negro como Medida por Medida se adapta melhor à sensibilidade do século 21 que à do século 19. Plateias multiculturais reagem fortemente a uma peça como Otelo. Grandes atores e atrizes ficam famosos por papéis particulares e as peças em que atuam são encenadas.

Outra maneira de definir a durabilidade de Shakespeare é em termos da maneira como ele nos permite experimentar diversas consciências, apreciar simultaneamente diferentes pontos de vista sobre questões como autoridade política e a luta entre o velho e o novo com respeito a amor e casamento. Como a educação na sua época se apoiava no debate e na disputa e se esperava dos alunos que fossem capazes de argumentar por ambos os lados de uma questão controversa, os públicos de seu tempo tinham um gosto por conflitos encenados em que posições (em última instância, insolúveis), atitudes, ideias e crenças poderiam ser confrontadas mediante uma ação progressiva. Produções posteriores puderam pegar esses conflitos e torná-los relevantes para novas situações históricas. Shakespeare não prega, nem entrega significados desenvolvidos, mas encoraja membros do público a compreenderem o que ele oferece, a reagirem pessoalmente às complexidades de ação e personagem.

Muitos críticos tentaram abstrair o teatro da obra de Shakespeare e apresentá-la como se fosse poesia pura, e não como parte de uma forma de arte realmente efêmera. O que pensam a esse respeito? 

Lemon: Shakespeare escreveu poemas comoventes e maravilhosos: seus sonetos e seus poemas longos. Ele é inquestionavelmente um poeta de primeira grandeza. E seu talento poético se faz presente em muitas de suas peças, em especial nas canções e solilóquios. Eu sugiro, portanto, com toda confiança, que podemos ler as peças de Shakespeare como poesia pura e tirar muito delas. Mas também é evidente que Shakespeare é um dramaturgo profundamente envolvido em teatro. Aliás, ele com frequência tematiza o teatro por meio de peças dentro de peças, como em Hamlet, Sonho de uma Noite de Verão e A Tempestade. Ele também fala dos seres humanos como personagens teatrais - ele mostra como nós “nos afligimos e nos pavoneamos nossa hora sobre o palco” ou “todo o mundo é um palco”. De modo que suas peças insistem em que nós as vejamos como peças, como dramas, que ganham vida no palco. De mais a mais, a escrita de Shakespeare era feita para ser fruída comunitariamente - esse é o grande papel do teatro. Assistir ao dilema de Hamlet, ou o amor de Otelo por Desdêmona, num contexto de grupo muda a maneira como experimentamos o texto, e é uma parte fundamental do que significa compreender e desfrutar de Shakespeare.

Marotti: As peças de Shakespeare não se mostram “efêmeras”, mas certamente estavam afinadas com o momento de sua composição e produção. Elas contêm poesia agradável que prende nossa atenção, mas também têm uma progressão narrativa que engaja nosso interesse no desfecho. Por ser escritor muito bom (com um vocabulário enorme para seu tempo com o qual ele brincava alegremente), por ser tão sensível às nuances da psicologia humana, por saber como as estruturas e fantasias narrativas poderiam trazer as audiências para a experiência do drama (embora, com frequência, as lembrasse, em determinadas peças, que o que estavam experimentando era ficcional), ele conseguia escrever textos de real durabilidade.

O que diriam ao leitor que fruiu alguma coisa de Shakespeare, mas não está absolutamente familiarizado com as montanhas de trabalhos acadêmicos e os debates intermináveis, e não tem background teórico? 

Lemon: Eu diria, ótimo! Há muitas maneiras de se aproximar de Shakespeare. Claro, é importante haver especialistas pesquisando Shakespeare - estudiosos que estão sempre fazendo novas descobertas e contribuindo para o conhecimento e interpretação de sua obra. A erudição afeta a maneira como vemos Shakespeare - afeta encenações de sua obra no palco ( aprendamos cada vez mais sobre a pronúncia original e as práticas originais no teatro isabelino); e isso afeta também como vemos Shakespeare - na construção do teatro Globe em Londres, por exemplo. De modo que eu diria para alguém que não está familiarizado com o conhecimento erudito, é ótimo, porque quem vai ver as peças de Shakespeare ou assiste a Shakespeare em um filme provavelmente está recebendo algum conhecimento especializado sem percebê-lo. E diria também que Shakespeare é para todos! Não há razão para um leitor precisar ser um especialista para amar suas obras, no palco ou na página. Apenas desfrute.

Marotti: Os prazeres do teatro vivo são o ideal: Shakespeare escreveu peças para serem representadas, não principalmente para serem lidas (embora estudiosos recentes tenham demonstrado que ele produzia versões para leitura de suas peças para a circulação de manuscritos, e alguns textos impressos de suas peças eram populares junto aos leitores).

Os prazeres da interpretação, seja erudita ou apenas pessoal, são de ordem diferente - embora Shakespeare amiúde convide seus públicos a refletir no que estão experimentando no momento da experiência e também pouco depois de a peça terminar: quando Hamlet e Otelo pedem para o público narrar a história do que lhes sucedeu, Shakespeare está pedindo para o público começar a refletir no que acabou de ver e de ouvir. A boa erudição e uma interpretação penetrante nos ajudam a fazer isso: elas não devem estragar o prazer da arte, mas sim contribuir para ele.

Das conclusões sobre a obra de Shakespeare, quais foram as que mais os impressionaram? 

Lemon: Shakespeare estava profundamente envolvido em questões políticas de seu tempo. Isso me surpreendeu, porque me ensinaram Shakespeare como uma forma de poesia, como uma forma de arte elevada.

Ensinaram-me Shakespeare em relação ao gênero, às formas clássicas, e a outros autores. Nos últimos vinte anos, porém, trabalhando com outros estudiosos e fazendo minha própria pesquisa, percebi que Shakespeare é muito preciso em seu engajamento com várias questões políticas diferentes: tirania, usurpação, sucessão e traição. Creio que isso ajuda a explicar o interesse constante que ele desperta - ele medita sobre questões do poder do Estado que ainda nos preocupam. É por isso que Shakespeare foi muitas vezes proibido por regimes tirânicos. Os nazistas proibiram encenações de Shakespeare em Praga quando ocuparam a cidade; depois, os soviéticos proibiram Shakespeare em Praga quando governaram. Shakespeare é radical, e potencialmente perigoso - e isso me surpreendeu.

Marotti: Eu dei cursos sobre Shakespeare por 45 anos e cada vez que ensino uma peça noto coisas novas sobre ela. Fiquei surpreso, imagino, pela diferença como olho peças como Sonhos de uma Noite de Verão, Romeu e Julieta e Rei Lear em minha maturidade em relação a como as olhava quando era jovem. A idade, o gênero, a experiência de vida da pessoa reformula constantemente a maneira como ela percebe esses textos e os compreende de maneira diferente.

Minhas conclusões sobre Shakespeare são mais um aprofundamento de convicções sobre ele que eu formei anteriormente - que não há escritor melhor em inglês, nem melhor observador da cena humana, e não há dramaturgo mais habilidoso.

É verdade que Shakespeare tinha uma natureza essencialmente bissexual (percebendo, é claro, que toda a ideia de orientação sexual é uma construção muito posterior)? 

Lemon: Não posso especular sobre a orientação sexual de Shakespeare, e realmente não quero fazê-lo. Eu direi que Shakespeare apresenta muitas formas de amor, de amizades profundas a atrações passageiras a ligações libidinosas. E mostra essas formas de amor entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, e homens e homens. Ele é ecumênico assim. Todo o mundo tem direito ao amor.

Marotti: Eu considero essa pergunta improdutiva. Especular ociosamente sobre a sexualidade ou identidade sexual de um escritor cujos detalhes biográficos são tão poucos não é muito útil, em última análise. Nos desvia das complexidades maravilhosas de suas peças e poemas, bem como impõe anacronicamente a ele e seu tempo noções de identidade sexual que lhes são estranhas. Na Renascença, havia práticas sexuais (mesmo sexo ou sexos opostos), mas a noção moderna de identidade ou identidade sexuais (gay, heterossexual, bi-, trans-, etc.) não faria sentido.

A maioria dos primeiros editores retirou cinco linhas de Romeu e Julieta em nome da decência comum. Que linhas causaram tanto escândalo? 

(Rebecca Lemon não respondeu a essa pergunta).

Marotti: Não tenho minhas obras completas de Shakespeare comigo e não posso precisar as linhas a que se refere, mas noto que o que era censurado nos dramas na época de Shakespeare não era o conteúdo sexual, mas o conteúdo político e religioso: os dramaturgos não podiam escrever sobre figuras políticas contemporâneas ou sobre polêmicas religiosas.

Evidentemente, eles encontravam maneiras indiretas de fazê-lo, ambientando suas peças em outros países e outras épocas. 

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