Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

'Culturalmente, não somos muito carinhosos com nossa memória'


Por Sonia Racy

Cantora paulistana tira do baú repertório em seu disco Corpo de Baile, defende uma política de democratização da cultura e aponta diferenças entre arte e indústria

 Foto: Denise Andrade/Estadão
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Com quatro indicações ao Prêmio da Música Brasileira desse ano - que acontece depois de amanhã, no Theatro Municipal do Rio - Mônica Salmaso já se sente vitoriosa. O motivo é simples: está feliz e orgulhosa de seu mais novo disco, Corpo de Baile, feito a várias mãos "competentes e merecedoras", conta. O repertório do disco - composto de parcerias entre Guinga e Paulo César Pinheiro - chegou à cantora há dez anos. Na ocasião, Mônica quase "desidratou de tanto chorar", revelou em entrevista à coluna, em sua casa, no bairro da Aclimação. A cantora foi arrebatada pelas músicas que estavam guardadas havia 40 anos. Entretanto, na época não se sentia pronta para gravá-las. Foi só depois do lançamento de Alma Lírica, em 2011, que revisitou os trabalhos e decidiu encarar o desafio, chamando grandes arranjadores e músicos para acompanhá-la na empreitada de tirar as canções do baú de forma responsável e carinhosa. Esse exercício de aprendizado - sobre a preservação da memória - é para ela uma questão crucial, que exige um engajamento maior: "Tudo brota aqui com tanta espontaneidade, quantidade e diversidade... que acabamos não tendo carinho por preservar". E pondera que, "por um lado, isso se renova", mas por outro "existe uma identidade na qual precisamos nos reconhecer". Abaixo, os melhores trechos da entrevista. Você é a cantora com mais indicações para o Prêmio da Música Brasileira. Como enxerga esse reconhecimento?  Fiquei muito feliz. Esse prêmio é muito importante - e ser indicada já é uma felicidade. E esse trabalho, Corpo de Baile, teve muitos músicos envolvidos, uma produção muito cuidadosa, os arranjos... Essas indicações valorizam esse trabalho feito a várias mãos muito competentes e merecedoras. Pelo visto, foi um longo "namoro" com o repertório, não? Sim. Essas músicas, parcerias do Guinga e do Paulo César Pinheiro, têm mais de 40 anos e muitas delas eram inéditas. Quando esse material chegou às minhas mãos, há dez anos, tomei um susto, fiquei louca. Quase desidratei de tanto chorar (risos). Pensei: "Meu Deus, como isso está dormindo em um baú? Uma densidade e uma qualidade como essa...". Eu vivo de cantar o que os outros fazem, meu ofício é esse. Então, abrir um baú e encontrar esse material quietinho ali foi uma surpresa. Como foi o seu processo?  Longo... Eu tinha uma sensação de responsabilidade e medo. O material era muito importante para fazer uma aposta sem consistência. Depois de dez anos, me vi pronta para fazer o Corpo de Baile. Aí começou outra novela que foi o processo, os tons, os arranjos... Você está em turnê com o disco. Gosta de atuar no palco?  Gosto muito das duas coisas. No estúdio há uma situação que eu adoro muito, de concentração no som. Mas o palco, por sua vez, tem o ofício de oferecimento. É a hora em que se compartilha. Uma coisa que nos liga humanamente. A seu ver, faz sentido a ideia de que a música é algo extremamente misterioso?  É uma arte e a arte transcende. Claro que ela vem de um trabalho concentrado, de disciplina. Não cai de paraquedas. Mas o "turning point" - a coisa que a faz tornar-se arte - é um toque divino. Li uma vez que Zeus, o deus grego, criou as musas, que são as artes, para lembrar os homens da sua natureza divina. Isso independe de religião. E, nisso tudo, o artista?  Não concordo em nada com essa tese de que o artista é um ser iluminado. Ele é apenas o "veículo" disso. Ele não é glória. E ter consciência disso é muito transformador, porque a vida é uma engrenagem de todo mundo. Assim, não adianta o cantor achar que ele é um mito. Acho que se todos dignificassem o que fazem, a vida seria mais legal para todo mundo. Sou contra essa visão do artista como um ser distante. Acredita que os reality shows de música, como SuperStar, The Voice e outros contribuem para essa imagem de celebridade?  Esses programas não têm nada a ver com arte. Talvez algumas dessas pessoas até sejam artistas, mas essa indústria da "celebritização" não tem relação com a arte. É um mercado que cria um foco em uma pessoa para ela vender coisas. Para fazer propaganda, lançar moda, usar uma cor de esmalte. É para criar uma coisa que "vai bombar". É muito raro a partir disso fazer arte. Tem quem faça, mas é raro. Você tem um trabalho de recuperação de composições desde os Afrosambas. Acredita que o Brasil não tem essa preocupação de preservar a memória?  Culturalmente, não somos muito carinhosos com nossa memória. Somos muito abundantes em tudo: cultura, fruta, árvores, comidas, danças populares. Tudo brota com tanta espontaneidade, quantidade e diversidade... que nós todos acabamos não tendo carinho por preservar. Por um lado, isso se renova, mas por outro existe uma identidade na qual precisamos nos reconhecer. Não sei se é guardar em um museu, mas é se reconhecer. Acha que a restrição dos direitos autorais dificulta isso?  Acho que temos um sistema errado no Brasil. Quando quisemos gravar os Afrosambas - que são onze músicas da mesma editora - nem o Baden (Powell) e nem o Vinícius (de Moraes) estavam vivos. Tivemos que falar com a editora e acabamos gravando nos EUA, por um preço de tabela. Acho que a família ou quem detém os direitos não deveria poder bloquear uma obra de arte. Receber por isso, sim, mas não bloquear. Direito autoral é uma coisa, direito sobre a obra é outra. Bloquear obras é matar uma história. E como vê a polêmica da Funarte e a ideia de "descentralizar" a Lei Rouanet?  É uma discussão difícil. Entretanto, acho que o governo pode e deve - já que o dinheiro é dele e não do patrocinador, porque vem via isenção fiscal, criar uma política cultural. Isto é, ferramentas que façam com que o dinheiro seja gasto de maneira mais distribuída. Mas não dá para fazer uma censura e dizer que tal pessoa recebeu patrocínio porque ficou famoso. Como deve ser feito, então?  Veja bem, ter um projeto aprovado e fazer com que ele possa captar recursos são duas etapas diferentes. A primeira delas é só técnica. Tem que estar dentro dos padrões XYZ. Já na captação é você quem vai atrás dos patrocinadores. Aí existe uma lacuna de funcionalidade. Acho que realmente o (ministro da Cultura) Juca Ferreira está tentando buscar uma forma de promover essa democratização. Mas existem problemas sérios. Quais?  É que, às vezes, tem gente que não respeita os critérios da lei mesmo. Por exemplo, os ingressos têm que ser viáveis. Não dá para fazer um show patrocinado com ingressos a R$ 300. Esses critérios têm que ser mais claros. Mas não podemos ter censura e acho perigosa essa discussão de famoso ou não famoso. / MARILIA NEUSTEIN 

Cantora paulistana tira do baú repertório em seu disco Corpo de Baile, defende uma política de democratização da cultura e aponta diferenças entre arte e indústria

 Foto: Denise Andrade/Estadão

Com quatro indicações ao Prêmio da Música Brasileira desse ano - que acontece depois de amanhã, no Theatro Municipal do Rio - Mônica Salmaso já se sente vitoriosa. O motivo é simples: está feliz e orgulhosa de seu mais novo disco, Corpo de Baile, feito a várias mãos "competentes e merecedoras", conta. O repertório do disco - composto de parcerias entre Guinga e Paulo César Pinheiro - chegou à cantora há dez anos. Na ocasião, Mônica quase "desidratou de tanto chorar", revelou em entrevista à coluna, em sua casa, no bairro da Aclimação. A cantora foi arrebatada pelas músicas que estavam guardadas havia 40 anos. Entretanto, na época não se sentia pronta para gravá-las. Foi só depois do lançamento de Alma Lírica, em 2011, que revisitou os trabalhos e decidiu encarar o desafio, chamando grandes arranjadores e músicos para acompanhá-la na empreitada de tirar as canções do baú de forma responsável e carinhosa. Esse exercício de aprendizado - sobre a preservação da memória - é para ela uma questão crucial, que exige um engajamento maior: "Tudo brota aqui com tanta espontaneidade, quantidade e diversidade... que acabamos não tendo carinho por preservar". E pondera que, "por um lado, isso se renova", mas por outro "existe uma identidade na qual precisamos nos reconhecer". Abaixo, os melhores trechos da entrevista. Você é a cantora com mais indicações para o Prêmio da Música Brasileira. Como enxerga esse reconhecimento?  Fiquei muito feliz. Esse prêmio é muito importante - e ser indicada já é uma felicidade. E esse trabalho, Corpo de Baile, teve muitos músicos envolvidos, uma produção muito cuidadosa, os arranjos... Essas indicações valorizam esse trabalho feito a várias mãos muito competentes e merecedoras. Pelo visto, foi um longo "namoro" com o repertório, não? Sim. Essas músicas, parcerias do Guinga e do Paulo César Pinheiro, têm mais de 40 anos e muitas delas eram inéditas. Quando esse material chegou às minhas mãos, há dez anos, tomei um susto, fiquei louca. Quase desidratei de tanto chorar (risos). Pensei: "Meu Deus, como isso está dormindo em um baú? Uma densidade e uma qualidade como essa...". Eu vivo de cantar o que os outros fazem, meu ofício é esse. Então, abrir um baú e encontrar esse material quietinho ali foi uma surpresa. Como foi o seu processo?  Longo... Eu tinha uma sensação de responsabilidade e medo. O material era muito importante para fazer uma aposta sem consistência. Depois de dez anos, me vi pronta para fazer o Corpo de Baile. Aí começou outra novela que foi o processo, os tons, os arranjos... Você está em turnê com o disco. Gosta de atuar no palco?  Gosto muito das duas coisas. No estúdio há uma situação que eu adoro muito, de concentração no som. Mas o palco, por sua vez, tem o ofício de oferecimento. É a hora em que se compartilha. Uma coisa que nos liga humanamente. A seu ver, faz sentido a ideia de que a música é algo extremamente misterioso?  É uma arte e a arte transcende. Claro que ela vem de um trabalho concentrado, de disciplina. Não cai de paraquedas. Mas o "turning point" - a coisa que a faz tornar-se arte - é um toque divino. Li uma vez que Zeus, o deus grego, criou as musas, que são as artes, para lembrar os homens da sua natureza divina. Isso independe de religião. E, nisso tudo, o artista?  Não concordo em nada com essa tese de que o artista é um ser iluminado. Ele é apenas o "veículo" disso. Ele não é glória. E ter consciência disso é muito transformador, porque a vida é uma engrenagem de todo mundo. Assim, não adianta o cantor achar que ele é um mito. Acho que se todos dignificassem o que fazem, a vida seria mais legal para todo mundo. Sou contra essa visão do artista como um ser distante. Acredita que os reality shows de música, como SuperStar, The Voice e outros contribuem para essa imagem de celebridade?  Esses programas não têm nada a ver com arte. Talvez algumas dessas pessoas até sejam artistas, mas essa indústria da "celebritização" não tem relação com a arte. É um mercado que cria um foco em uma pessoa para ela vender coisas. Para fazer propaganda, lançar moda, usar uma cor de esmalte. É para criar uma coisa que "vai bombar". É muito raro a partir disso fazer arte. Tem quem faça, mas é raro. Você tem um trabalho de recuperação de composições desde os Afrosambas. Acredita que o Brasil não tem essa preocupação de preservar a memória?  Culturalmente, não somos muito carinhosos com nossa memória. Somos muito abundantes em tudo: cultura, fruta, árvores, comidas, danças populares. Tudo brota com tanta espontaneidade, quantidade e diversidade... que nós todos acabamos não tendo carinho por preservar. Por um lado, isso se renova, mas por outro existe uma identidade na qual precisamos nos reconhecer. Não sei se é guardar em um museu, mas é se reconhecer. Acha que a restrição dos direitos autorais dificulta isso?  Acho que temos um sistema errado no Brasil. Quando quisemos gravar os Afrosambas - que são onze músicas da mesma editora - nem o Baden (Powell) e nem o Vinícius (de Moraes) estavam vivos. Tivemos que falar com a editora e acabamos gravando nos EUA, por um preço de tabela. Acho que a família ou quem detém os direitos não deveria poder bloquear uma obra de arte. Receber por isso, sim, mas não bloquear. Direito autoral é uma coisa, direito sobre a obra é outra. Bloquear obras é matar uma história. E como vê a polêmica da Funarte e a ideia de "descentralizar" a Lei Rouanet?  É uma discussão difícil. Entretanto, acho que o governo pode e deve - já que o dinheiro é dele e não do patrocinador, porque vem via isenção fiscal, criar uma política cultural. Isto é, ferramentas que façam com que o dinheiro seja gasto de maneira mais distribuída. Mas não dá para fazer uma censura e dizer que tal pessoa recebeu patrocínio porque ficou famoso. Como deve ser feito, então?  Veja bem, ter um projeto aprovado e fazer com que ele possa captar recursos são duas etapas diferentes. A primeira delas é só técnica. Tem que estar dentro dos padrões XYZ. Já na captação é você quem vai atrás dos patrocinadores. Aí existe uma lacuna de funcionalidade. Acho que realmente o (ministro da Cultura) Juca Ferreira está tentando buscar uma forma de promover essa democratização. Mas existem problemas sérios. Quais?  É que, às vezes, tem gente que não respeita os critérios da lei mesmo. Por exemplo, os ingressos têm que ser viáveis. Não dá para fazer um show patrocinado com ingressos a R$ 300. Esses critérios têm que ser mais claros. Mas não podemos ter censura e acho perigosa essa discussão de famoso ou não famoso. / MARILIA NEUSTEIN 

Cantora paulistana tira do baú repertório em seu disco Corpo de Baile, defende uma política de democratização da cultura e aponta diferenças entre arte e indústria

 Foto: Denise Andrade/Estadão

Com quatro indicações ao Prêmio da Música Brasileira desse ano - que acontece depois de amanhã, no Theatro Municipal do Rio - Mônica Salmaso já se sente vitoriosa. O motivo é simples: está feliz e orgulhosa de seu mais novo disco, Corpo de Baile, feito a várias mãos "competentes e merecedoras", conta. O repertório do disco - composto de parcerias entre Guinga e Paulo César Pinheiro - chegou à cantora há dez anos. Na ocasião, Mônica quase "desidratou de tanto chorar", revelou em entrevista à coluna, em sua casa, no bairro da Aclimação. A cantora foi arrebatada pelas músicas que estavam guardadas havia 40 anos. Entretanto, na época não se sentia pronta para gravá-las. Foi só depois do lançamento de Alma Lírica, em 2011, que revisitou os trabalhos e decidiu encarar o desafio, chamando grandes arranjadores e músicos para acompanhá-la na empreitada de tirar as canções do baú de forma responsável e carinhosa. Esse exercício de aprendizado - sobre a preservação da memória - é para ela uma questão crucial, que exige um engajamento maior: "Tudo brota aqui com tanta espontaneidade, quantidade e diversidade... que acabamos não tendo carinho por preservar". E pondera que, "por um lado, isso se renova", mas por outro "existe uma identidade na qual precisamos nos reconhecer". Abaixo, os melhores trechos da entrevista. Você é a cantora com mais indicações para o Prêmio da Música Brasileira. Como enxerga esse reconhecimento?  Fiquei muito feliz. Esse prêmio é muito importante - e ser indicada já é uma felicidade. E esse trabalho, Corpo de Baile, teve muitos músicos envolvidos, uma produção muito cuidadosa, os arranjos... Essas indicações valorizam esse trabalho feito a várias mãos muito competentes e merecedoras. Pelo visto, foi um longo "namoro" com o repertório, não? Sim. Essas músicas, parcerias do Guinga e do Paulo César Pinheiro, têm mais de 40 anos e muitas delas eram inéditas. Quando esse material chegou às minhas mãos, há dez anos, tomei um susto, fiquei louca. Quase desidratei de tanto chorar (risos). Pensei: "Meu Deus, como isso está dormindo em um baú? Uma densidade e uma qualidade como essa...". Eu vivo de cantar o que os outros fazem, meu ofício é esse. Então, abrir um baú e encontrar esse material quietinho ali foi uma surpresa. Como foi o seu processo?  Longo... Eu tinha uma sensação de responsabilidade e medo. O material era muito importante para fazer uma aposta sem consistência. Depois de dez anos, me vi pronta para fazer o Corpo de Baile. Aí começou outra novela que foi o processo, os tons, os arranjos... Você está em turnê com o disco. Gosta de atuar no palco?  Gosto muito das duas coisas. No estúdio há uma situação que eu adoro muito, de concentração no som. Mas o palco, por sua vez, tem o ofício de oferecimento. É a hora em que se compartilha. Uma coisa que nos liga humanamente. A seu ver, faz sentido a ideia de que a música é algo extremamente misterioso?  É uma arte e a arte transcende. Claro que ela vem de um trabalho concentrado, de disciplina. Não cai de paraquedas. Mas o "turning point" - a coisa que a faz tornar-se arte - é um toque divino. Li uma vez que Zeus, o deus grego, criou as musas, que são as artes, para lembrar os homens da sua natureza divina. Isso independe de religião. E, nisso tudo, o artista?  Não concordo em nada com essa tese de que o artista é um ser iluminado. Ele é apenas o "veículo" disso. Ele não é glória. E ter consciência disso é muito transformador, porque a vida é uma engrenagem de todo mundo. Assim, não adianta o cantor achar que ele é um mito. Acho que se todos dignificassem o que fazem, a vida seria mais legal para todo mundo. Sou contra essa visão do artista como um ser distante. Acredita que os reality shows de música, como SuperStar, The Voice e outros contribuem para essa imagem de celebridade?  Esses programas não têm nada a ver com arte. Talvez algumas dessas pessoas até sejam artistas, mas essa indústria da "celebritização" não tem relação com a arte. É um mercado que cria um foco em uma pessoa para ela vender coisas. Para fazer propaganda, lançar moda, usar uma cor de esmalte. É para criar uma coisa que "vai bombar". É muito raro a partir disso fazer arte. Tem quem faça, mas é raro. Você tem um trabalho de recuperação de composições desde os Afrosambas. Acredita que o Brasil não tem essa preocupação de preservar a memória?  Culturalmente, não somos muito carinhosos com nossa memória. Somos muito abundantes em tudo: cultura, fruta, árvores, comidas, danças populares. Tudo brota com tanta espontaneidade, quantidade e diversidade... que nós todos acabamos não tendo carinho por preservar. Por um lado, isso se renova, mas por outro existe uma identidade na qual precisamos nos reconhecer. Não sei se é guardar em um museu, mas é se reconhecer. Acha que a restrição dos direitos autorais dificulta isso?  Acho que temos um sistema errado no Brasil. Quando quisemos gravar os Afrosambas - que são onze músicas da mesma editora - nem o Baden (Powell) e nem o Vinícius (de Moraes) estavam vivos. Tivemos que falar com a editora e acabamos gravando nos EUA, por um preço de tabela. Acho que a família ou quem detém os direitos não deveria poder bloquear uma obra de arte. Receber por isso, sim, mas não bloquear. Direito autoral é uma coisa, direito sobre a obra é outra. Bloquear obras é matar uma história. E como vê a polêmica da Funarte e a ideia de "descentralizar" a Lei Rouanet?  É uma discussão difícil. Entretanto, acho que o governo pode e deve - já que o dinheiro é dele e não do patrocinador, porque vem via isenção fiscal, criar uma política cultural. Isto é, ferramentas que façam com que o dinheiro seja gasto de maneira mais distribuída. Mas não dá para fazer uma censura e dizer que tal pessoa recebeu patrocínio porque ficou famoso. Como deve ser feito, então?  Veja bem, ter um projeto aprovado e fazer com que ele possa captar recursos são duas etapas diferentes. A primeira delas é só técnica. Tem que estar dentro dos padrões XYZ. Já na captação é você quem vai atrás dos patrocinadores. Aí existe uma lacuna de funcionalidade. Acho que realmente o (ministro da Cultura) Juca Ferreira está tentando buscar uma forma de promover essa democratização. Mas existem problemas sérios. Quais?  É que, às vezes, tem gente que não respeita os critérios da lei mesmo. Por exemplo, os ingressos têm que ser viáveis. Não dá para fazer um show patrocinado com ingressos a R$ 300. Esses critérios têm que ser mais claros. Mas não podemos ter censura e acho perigosa essa discussão de famoso ou não famoso. / MARILIA NEUSTEIN 

Cantora paulistana tira do baú repertório em seu disco Corpo de Baile, defende uma política de democratização da cultura e aponta diferenças entre arte e indústria

 Foto: Denise Andrade/Estadão

Com quatro indicações ao Prêmio da Música Brasileira desse ano - que acontece depois de amanhã, no Theatro Municipal do Rio - Mônica Salmaso já se sente vitoriosa. O motivo é simples: está feliz e orgulhosa de seu mais novo disco, Corpo de Baile, feito a várias mãos "competentes e merecedoras", conta. O repertório do disco - composto de parcerias entre Guinga e Paulo César Pinheiro - chegou à cantora há dez anos. Na ocasião, Mônica quase "desidratou de tanto chorar", revelou em entrevista à coluna, em sua casa, no bairro da Aclimação. A cantora foi arrebatada pelas músicas que estavam guardadas havia 40 anos. Entretanto, na época não se sentia pronta para gravá-las. Foi só depois do lançamento de Alma Lírica, em 2011, que revisitou os trabalhos e decidiu encarar o desafio, chamando grandes arranjadores e músicos para acompanhá-la na empreitada de tirar as canções do baú de forma responsável e carinhosa. Esse exercício de aprendizado - sobre a preservação da memória - é para ela uma questão crucial, que exige um engajamento maior: "Tudo brota aqui com tanta espontaneidade, quantidade e diversidade... que acabamos não tendo carinho por preservar". E pondera que, "por um lado, isso se renova", mas por outro "existe uma identidade na qual precisamos nos reconhecer". Abaixo, os melhores trechos da entrevista. Você é a cantora com mais indicações para o Prêmio da Música Brasileira. Como enxerga esse reconhecimento?  Fiquei muito feliz. Esse prêmio é muito importante - e ser indicada já é uma felicidade. E esse trabalho, Corpo de Baile, teve muitos músicos envolvidos, uma produção muito cuidadosa, os arranjos... Essas indicações valorizam esse trabalho feito a várias mãos muito competentes e merecedoras. Pelo visto, foi um longo "namoro" com o repertório, não? Sim. Essas músicas, parcerias do Guinga e do Paulo César Pinheiro, têm mais de 40 anos e muitas delas eram inéditas. Quando esse material chegou às minhas mãos, há dez anos, tomei um susto, fiquei louca. Quase desidratei de tanto chorar (risos). Pensei: "Meu Deus, como isso está dormindo em um baú? Uma densidade e uma qualidade como essa...". Eu vivo de cantar o que os outros fazem, meu ofício é esse. Então, abrir um baú e encontrar esse material quietinho ali foi uma surpresa. Como foi o seu processo?  Longo... Eu tinha uma sensação de responsabilidade e medo. O material era muito importante para fazer uma aposta sem consistência. Depois de dez anos, me vi pronta para fazer o Corpo de Baile. Aí começou outra novela que foi o processo, os tons, os arranjos... Você está em turnê com o disco. Gosta de atuar no palco?  Gosto muito das duas coisas. No estúdio há uma situação que eu adoro muito, de concentração no som. Mas o palco, por sua vez, tem o ofício de oferecimento. É a hora em que se compartilha. Uma coisa que nos liga humanamente. A seu ver, faz sentido a ideia de que a música é algo extremamente misterioso?  É uma arte e a arte transcende. Claro que ela vem de um trabalho concentrado, de disciplina. Não cai de paraquedas. Mas o "turning point" - a coisa que a faz tornar-se arte - é um toque divino. Li uma vez que Zeus, o deus grego, criou as musas, que são as artes, para lembrar os homens da sua natureza divina. Isso independe de religião. E, nisso tudo, o artista?  Não concordo em nada com essa tese de que o artista é um ser iluminado. Ele é apenas o "veículo" disso. Ele não é glória. E ter consciência disso é muito transformador, porque a vida é uma engrenagem de todo mundo. Assim, não adianta o cantor achar que ele é um mito. Acho que se todos dignificassem o que fazem, a vida seria mais legal para todo mundo. Sou contra essa visão do artista como um ser distante. Acredita que os reality shows de música, como SuperStar, The Voice e outros contribuem para essa imagem de celebridade?  Esses programas não têm nada a ver com arte. Talvez algumas dessas pessoas até sejam artistas, mas essa indústria da "celebritização" não tem relação com a arte. É um mercado que cria um foco em uma pessoa para ela vender coisas. Para fazer propaganda, lançar moda, usar uma cor de esmalte. É para criar uma coisa que "vai bombar". É muito raro a partir disso fazer arte. Tem quem faça, mas é raro. Você tem um trabalho de recuperação de composições desde os Afrosambas. Acredita que o Brasil não tem essa preocupação de preservar a memória?  Culturalmente, não somos muito carinhosos com nossa memória. Somos muito abundantes em tudo: cultura, fruta, árvores, comidas, danças populares. Tudo brota com tanta espontaneidade, quantidade e diversidade... que nós todos acabamos não tendo carinho por preservar. Por um lado, isso se renova, mas por outro existe uma identidade na qual precisamos nos reconhecer. Não sei se é guardar em um museu, mas é se reconhecer. Acha que a restrição dos direitos autorais dificulta isso?  Acho que temos um sistema errado no Brasil. Quando quisemos gravar os Afrosambas - que são onze músicas da mesma editora - nem o Baden (Powell) e nem o Vinícius (de Moraes) estavam vivos. Tivemos que falar com a editora e acabamos gravando nos EUA, por um preço de tabela. Acho que a família ou quem detém os direitos não deveria poder bloquear uma obra de arte. Receber por isso, sim, mas não bloquear. Direito autoral é uma coisa, direito sobre a obra é outra. Bloquear obras é matar uma história. E como vê a polêmica da Funarte e a ideia de "descentralizar" a Lei Rouanet?  É uma discussão difícil. Entretanto, acho que o governo pode e deve - já que o dinheiro é dele e não do patrocinador, porque vem via isenção fiscal, criar uma política cultural. Isto é, ferramentas que façam com que o dinheiro seja gasto de maneira mais distribuída. Mas não dá para fazer uma censura e dizer que tal pessoa recebeu patrocínio porque ficou famoso. Como deve ser feito, então?  Veja bem, ter um projeto aprovado e fazer com que ele possa captar recursos são duas etapas diferentes. A primeira delas é só técnica. Tem que estar dentro dos padrões XYZ. Já na captação é você quem vai atrás dos patrocinadores. Aí existe uma lacuna de funcionalidade. Acho que realmente o (ministro da Cultura) Juca Ferreira está tentando buscar uma forma de promover essa democratização. Mas existem problemas sérios. Quais?  É que, às vezes, tem gente que não respeita os critérios da lei mesmo. Por exemplo, os ingressos têm que ser viáveis. Não dá para fazer um show patrocinado com ingressos a R$ 300. Esses critérios têm que ser mais claros. Mas não podemos ter censura e acho perigosa essa discussão de famoso ou não famoso. / MARILIA NEUSTEIN 

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