Intelectuais buscam evitar novas pandemias ao se debruçar sobre a covid-19


Livros recentes tentam decifrar a catástrofe provocada pela peste

Por Martim Vasques da Cunha

O inimigo dele é o universo e ele o encobre no meio da noite com as estrelas que não vão a lugar nenhum, pois o frio o alimenta no meio das florestas que serão devoradas pelo seu ritmo implacável e invisível. Não só as florestas, mas as cidades, as vilas, os bairros, as casas, as famílias – todas trancadas em seus lares, ou todas à espera para que ele enfim as leve para algum quarto na UTI ou algum leito hospitalar ou uma vala que será coberta por terra e cal. Ninguém sabe bem como chamá-lo porque ele pouco se importa com nomes. Às vezes chamam-no de vírus, embora ele goste mesmo de outra denominação – “peste”.

Peste é o tema de 'O Triunfo da Morte', pintura produzida em 1562 pelo pintor belga Pieter Bruegel Foto: Museu do Prado

Uma vez que o seu gênero é igualmente fluído, seja como vírus, seja como peste, é justamente essa amplitude de significados que permite que suas vítimas – futuras e passadas, senão inevitáveis – devorem o tempo que lhes resta ao escreverem diversos livros que tentam decifrar seus mecanismos insondáveis. Desde o início do ano passado, quando ele resolveu ressurgir com força total (com outro nome, similar ao de uma coroa de espinhos), há pelo menos uma centena desses tomos; porém, quatro deles – Apollo’s Arrow, de Nicholas Christakis, The Wake-Up Call, de John Micklethwait e Adrian Woolbridge, The Revenge of the Real, de Benjamin Bratton, e Catástrofe, de Niall Ferguson – chegaram às estantes do globo terrestre como alguma espécie de resposta definitiva ao que o oponente supunha ser na cabeça de cada um desses eruditos. Obviamente, ele riu de cada uma dessas explicações. Na verdade, fez isso não por desprezo, mas sim porque achou-as simplesmente divertidas. O livro de Christakis parte da primeira grande metáfora na literatura ocidental – a seta de Apolo como representante da moléstia que assolou o exército de Agamenon logo no início da Ilíada, de Homero – para criar paralelos entre ele e o modo como a humanidade o confrontou durante os séculos. Como previsto, essas tentativas não deram muito certo porque ele (ou ela?) permaneceu entre os seres humanos. Mas Christakis é um médico que acredita no progresso humano (e também na benevolência de Bill Gates, um dos poucos que previu o surto) e, por isso, assegura que a seta de Apolo é uma exceção na trajetória desta raça que, volta e meia, a peste insiste em eliminar da face da terra. Ela (ou ele?) sabe que o nobre doutor é apenas um iludido, mas gosta de ver essas quimeras bem alimentadas. Afinal de contas, o vírus se alimenta disso. O mesmo ocorre com a dupla Micklethwait e Woolbridge, cientistas políticos que perceberam que o surgimento da praga significava a demolição final daquilo que conhecíamos como “Estado Moderno”. O livro deles tenta ser um alerta contra suas artimanhas, mas é um aviso que já passou do tempo de ser dado. Ela (ou ela?) sorri quando os nobres professores concluem, mesmo que indiretamente, que o Ocidente (seu território favorito) falhou em tudo o que podia para impedir o seu contágio – especialmente neste mundo tão globalizado em intenção, mas fracassado na ação. Ao menos, a doença reconhece que o alerta dos ingleses não chega a ter a arrogância da tal “denúncia” feita pelo americano Bratton sobre o fato de que finalmente a sociedade capitalista encontrou a “vingança do real”. O que seria essa realidade para este infeliz?, ela pergunta a si mesma enquanto ceifa algumas vidas a mais para a sua contabilidade extremamente precisa. Para Bratton, é o reencontro com uma perspectiva materialista, cuja meta é rever a importância do corpo, a ser agora governado por uma instância burocrática global que finalmente resolveria qualquer espécie de problema sanitário – em especial, uma pandemia, como é que agora chamam a última variação da peste.  Ela (ou seria ele?) reconhece nessas ideias algo semelhante ao que um outro sábio, o italiano Giorgio Agamben, já escrevia sobre o “triunfo da biopolítica” (por sua vez, inspirado por Foucault). Por coincidência, foi o mesmo Agamben que escreveu, durante o último surto da moléstia na Itália, que tudo não passava de uma grande ilusão, fabricada pelos estados nacionais, para subjugar ainda mais a população em um permanente “estado de exceção”. O vírus gostou deste raciocínio – menos Benjamin Bratton. Na sua “vingança do real”, a peste gostou de perceber que, na verdade, todo o livro do pensador americano só tinha uma intenção: atacar Agamben.  O que a leva agora ao livro de Niall Ferguson, Catástrofe. De todas as análises, é o seu favorito. O historiador escocês mostra, em detalhes, como qualquer tentativa de compreender a peste – e, sobretudo, de evitá-la – terminará inevitavelmente em fracasso absoluto. E por motivo muito simples: ela (ou ele?) é, por sua própria natureza, inescrutável. Em geral, história e doenças andam de mãos dadas, também acompanhadas pelo acaso. Quando ele (ou ela?) lia a obra de Ferguson, não parava de pensar numa outra seta, semelhante à de Apolo, a ser relembrada por outro grego – no caso o estagirita Aristóteles: “Sorte é a seta que atinge a pessoa que está ao seu lado”. Ele não fica nem um pouco triste ao admitir, como escreve Ferguson, que se você sobreviver a uma catástrofe de proporções épicas (como o que aconteceu em 2020), a única conclusão que lhe resta é que a peste (ou o vírus?) não estava nem aí pela sua pessoa, em todos os sentidos desta expressão. Contudo, há um ponto que o escocês não consegue aprofundar: se tudo não passa de um problema sistêmico, de um panorama de desastres civilizacionais dos quais a humanidade não tem condições técnicas e políticas de resolvê-los – então, não haveria responsabilidade nenhuma por essas ações ou omissões? Ninguém seria culpado? Todos estariam livres para cometerem suas sandices?  A peste dá outra gargalhada. Pois ela (ou seria ele?) sabe que esta é a meta final da sua existência (ou da ausência dela). A confusão é o seu reino, a tragédia é o seu espetáculo. É tudo isso o que ela deseja: o fato de que ninguém saiba mais o que deve ser feito quando ela contamina a todos, inclusive a nossa noção de certo e de errado, do que é verdade e o que é mentira. Apesar de admitir, por exemplo, que líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro foram imprudentes na condução deste desastre contemporâneo, Ferguson cai nessa esparrela, imperdoável para quem faz da história a sua profissão. Ela (ou ele?), se fosse sua amiga (mas espera-se que ninguém anseie por tal preocupação), até o avisaria disso; contudo, o que ganharia? Nada, é claro – apesar de que o “nada” é tudo o que ele (ou seria ela?) planeja. Quando o vírus surgir novamente, sob quaisquer outros disfarces, ele não alertará a ninguém que é óbvio que há uma responsabilidade objetiva em tudo o que o ser humano realiza neste globo terrestre, ao menos enquanto houver algum traço de consciência individual a andar por aqui. Afinal de contas, para quê contar essa verdade? É no reino da mentira que ela (ou seria ele?) prolifera.  Já dizia um outro escriba que narrou os feitos da doença no distante século 17, Daniel Defoe: “Uma peste é um inimigo formidável, e arma-se com terrores que nenhum homem está suficientemente preparado para combater, muito menos lidar com o choque que vem dela”. Nenhum homem pretende assumir o fardo de que ele é, em si mesmo, uma doença a ser extinguida da face da terra. Mas, por outro lado, ninguém quer admitir que, entre catástrofes e falsidades, há um outro reino a nos sustentar, por incrível que pareça. Porém, ao ouvir isso de novo, o vírus (ou seria a peste?) deixa de sorrir e procura outras vítimas para alimentar o vazio que consome o seu inimigo – no caso, o nosso universo. Quem viver, verá.”

O inimigo dele é o universo e ele o encobre no meio da noite com as estrelas que não vão a lugar nenhum, pois o frio o alimenta no meio das florestas que serão devoradas pelo seu ritmo implacável e invisível. Não só as florestas, mas as cidades, as vilas, os bairros, as casas, as famílias – todas trancadas em seus lares, ou todas à espera para que ele enfim as leve para algum quarto na UTI ou algum leito hospitalar ou uma vala que será coberta por terra e cal. Ninguém sabe bem como chamá-lo porque ele pouco se importa com nomes. Às vezes chamam-no de vírus, embora ele goste mesmo de outra denominação – “peste”.

Peste é o tema de 'O Triunfo da Morte', pintura produzida em 1562 pelo pintor belga Pieter Bruegel Foto: Museu do Prado

Uma vez que o seu gênero é igualmente fluído, seja como vírus, seja como peste, é justamente essa amplitude de significados que permite que suas vítimas – futuras e passadas, senão inevitáveis – devorem o tempo que lhes resta ao escreverem diversos livros que tentam decifrar seus mecanismos insondáveis. Desde o início do ano passado, quando ele resolveu ressurgir com força total (com outro nome, similar ao de uma coroa de espinhos), há pelo menos uma centena desses tomos; porém, quatro deles – Apollo’s Arrow, de Nicholas Christakis, The Wake-Up Call, de John Micklethwait e Adrian Woolbridge, The Revenge of the Real, de Benjamin Bratton, e Catástrofe, de Niall Ferguson – chegaram às estantes do globo terrestre como alguma espécie de resposta definitiva ao que o oponente supunha ser na cabeça de cada um desses eruditos. Obviamente, ele riu de cada uma dessas explicações. Na verdade, fez isso não por desprezo, mas sim porque achou-as simplesmente divertidas. O livro de Christakis parte da primeira grande metáfora na literatura ocidental – a seta de Apolo como representante da moléstia que assolou o exército de Agamenon logo no início da Ilíada, de Homero – para criar paralelos entre ele e o modo como a humanidade o confrontou durante os séculos. Como previsto, essas tentativas não deram muito certo porque ele (ou ela?) permaneceu entre os seres humanos. Mas Christakis é um médico que acredita no progresso humano (e também na benevolência de Bill Gates, um dos poucos que previu o surto) e, por isso, assegura que a seta de Apolo é uma exceção na trajetória desta raça que, volta e meia, a peste insiste em eliminar da face da terra. Ela (ou ele?) sabe que o nobre doutor é apenas um iludido, mas gosta de ver essas quimeras bem alimentadas. Afinal de contas, o vírus se alimenta disso. O mesmo ocorre com a dupla Micklethwait e Woolbridge, cientistas políticos que perceberam que o surgimento da praga significava a demolição final daquilo que conhecíamos como “Estado Moderno”. O livro deles tenta ser um alerta contra suas artimanhas, mas é um aviso que já passou do tempo de ser dado. Ela (ou ela?) sorri quando os nobres professores concluem, mesmo que indiretamente, que o Ocidente (seu território favorito) falhou em tudo o que podia para impedir o seu contágio – especialmente neste mundo tão globalizado em intenção, mas fracassado na ação. Ao menos, a doença reconhece que o alerta dos ingleses não chega a ter a arrogância da tal “denúncia” feita pelo americano Bratton sobre o fato de que finalmente a sociedade capitalista encontrou a “vingança do real”. O que seria essa realidade para este infeliz?, ela pergunta a si mesma enquanto ceifa algumas vidas a mais para a sua contabilidade extremamente precisa. Para Bratton, é o reencontro com uma perspectiva materialista, cuja meta é rever a importância do corpo, a ser agora governado por uma instância burocrática global que finalmente resolveria qualquer espécie de problema sanitário – em especial, uma pandemia, como é que agora chamam a última variação da peste.  Ela (ou seria ele?) reconhece nessas ideias algo semelhante ao que um outro sábio, o italiano Giorgio Agamben, já escrevia sobre o “triunfo da biopolítica” (por sua vez, inspirado por Foucault). Por coincidência, foi o mesmo Agamben que escreveu, durante o último surto da moléstia na Itália, que tudo não passava de uma grande ilusão, fabricada pelos estados nacionais, para subjugar ainda mais a população em um permanente “estado de exceção”. O vírus gostou deste raciocínio – menos Benjamin Bratton. Na sua “vingança do real”, a peste gostou de perceber que, na verdade, todo o livro do pensador americano só tinha uma intenção: atacar Agamben.  O que a leva agora ao livro de Niall Ferguson, Catástrofe. De todas as análises, é o seu favorito. O historiador escocês mostra, em detalhes, como qualquer tentativa de compreender a peste – e, sobretudo, de evitá-la – terminará inevitavelmente em fracasso absoluto. E por motivo muito simples: ela (ou ele?) é, por sua própria natureza, inescrutável. Em geral, história e doenças andam de mãos dadas, também acompanhadas pelo acaso. Quando ele (ou ela?) lia a obra de Ferguson, não parava de pensar numa outra seta, semelhante à de Apolo, a ser relembrada por outro grego – no caso o estagirita Aristóteles: “Sorte é a seta que atinge a pessoa que está ao seu lado”. Ele não fica nem um pouco triste ao admitir, como escreve Ferguson, que se você sobreviver a uma catástrofe de proporções épicas (como o que aconteceu em 2020), a única conclusão que lhe resta é que a peste (ou o vírus?) não estava nem aí pela sua pessoa, em todos os sentidos desta expressão. Contudo, há um ponto que o escocês não consegue aprofundar: se tudo não passa de um problema sistêmico, de um panorama de desastres civilizacionais dos quais a humanidade não tem condições técnicas e políticas de resolvê-los – então, não haveria responsabilidade nenhuma por essas ações ou omissões? Ninguém seria culpado? Todos estariam livres para cometerem suas sandices?  A peste dá outra gargalhada. Pois ela (ou seria ele?) sabe que esta é a meta final da sua existência (ou da ausência dela). A confusão é o seu reino, a tragédia é o seu espetáculo. É tudo isso o que ela deseja: o fato de que ninguém saiba mais o que deve ser feito quando ela contamina a todos, inclusive a nossa noção de certo e de errado, do que é verdade e o que é mentira. Apesar de admitir, por exemplo, que líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro foram imprudentes na condução deste desastre contemporâneo, Ferguson cai nessa esparrela, imperdoável para quem faz da história a sua profissão. Ela (ou ele?), se fosse sua amiga (mas espera-se que ninguém anseie por tal preocupação), até o avisaria disso; contudo, o que ganharia? Nada, é claro – apesar de que o “nada” é tudo o que ele (ou seria ela?) planeja. Quando o vírus surgir novamente, sob quaisquer outros disfarces, ele não alertará a ninguém que é óbvio que há uma responsabilidade objetiva em tudo o que o ser humano realiza neste globo terrestre, ao menos enquanto houver algum traço de consciência individual a andar por aqui. Afinal de contas, para quê contar essa verdade? É no reino da mentira que ela (ou seria ele?) prolifera.  Já dizia um outro escriba que narrou os feitos da doença no distante século 17, Daniel Defoe: “Uma peste é um inimigo formidável, e arma-se com terrores que nenhum homem está suficientemente preparado para combater, muito menos lidar com o choque que vem dela”. Nenhum homem pretende assumir o fardo de que ele é, em si mesmo, uma doença a ser extinguida da face da terra. Mas, por outro lado, ninguém quer admitir que, entre catástrofes e falsidades, há um outro reino a nos sustentar, por incrível que pareça. Porém, ao ouvir isso de novo, o vírus (ou seria a peste?) deixa de sorrir e procura outras vítimas para alimentar o vazio que consome o seu inimigo – no caso, o nosso universo. Quem viver, verá.”

O inimigo dele é o universo e ele o encobre no meio da noite com as estrelas que não vão a lugar nenhum, pois o frio o alimenta no meio das florestas que serão devoradas pelo seu ritmo implacável e invisível. Não só as florestas, mas as cidades, as vilas, os bairros, as casas, as famílias – todas trancadas em seus lares, ou todas à espera para que ele enfim as leve para algum quarto na UTI ou algum leito hospitalar ou uma vala que será coberta por terra e cal. Ninguém sabe bem como chamá-lo porque ele pouco se importa com nomes. Às vezes chamam-no de vírus, embora ele goste mesmo de outra denominação – “peste”.

Peste é o tema de 'O Triunfo da Morte', pintura produzida em 1562 pelo pintor belga Pieter Bruegel Foto: Museu do Prado

Uma vez que o seu gênero é igualmente fluído, seja como vírus, seja como peste, é justamente essa amplitude de significados que permite que suas vítimas – futuras e passadas, senão inevitáveis – devorem o tempo que lhes resta ao escreverem diversos livros que tentam decifrar seus mecanismos insondáveis. Desde o início do ano passado, quando ele resolveu ressurgir com força total (com outro nome, similar ao de uma coroa de espinhos), há pelo menos uma centena desses tomos; porém, quatro deles – Apollo’s Arrow, de Nicholas Christakis, The Wake-Up Call, de John Micklethwait e Adrian Woolbridge, The Revenge of the Real, de Benjamin Bratton, e Catástrofe, de Niall Ferguson – chegaram às estantes do globo terrestre como alguma espécie de resposta definitiva ao que o oponente supunha ser na cabeça de cada um desses eruditos. Obviamente, ele riu de cada uma dessas explicações. Na verdade, fez isso não por desprezo, mas sim porque achou-as simplesmente divertidas. O livro de Christakis parte da primeira grande metáfora na literatura ocidental – a seta de Apolo como representante da moléstia que assolou o exército de Agamenon logo no início da Ilíada, de Homero – para criar paralelos entre ele e o modo como a humanidade o confrontou durante os séculos. Como previsto, essas tentativas não deram muito certo porque ele (ou ela?) permaneceu entre os seres humanos. Mas Christakis é um médico que acredita no progresso humano (e também na benevolência de Bill Gates, um dos poucos que previu o surto) e, por isso, assegura que a seta de Apolo é uma exceção na trajetória desta raça que, volta e meia, a peste insiste em eliminar da face da terra. Ela (ou ele?) sabe que o nobre doutor é apenas um iludido, mas gosta de ver essas quimeras bem alimentadas. Afinal de contas, o vírus se alimenta disso. O mesmo ocorre com a dupla Micklethwait e Woolbridge, cientistas políticos que perceberam que o surgimento da praga significava a demolição final daquilo que conhecíamos como “Estado Moderno”. O livro deles tenta ser um alerta contra suas artimanhas, mas é um aviso que já passou do tempo de ser dado. Ela (ou ela?) sorri quando os nobres professores concluem, mesmo que indiretamente, que o Ocidente (seu território favorito) falhou em tudo o que podia para impedir o seu contágio – especialmente neste mundo tão globalizado em intenção, mas fracassado na ação. Ao menos, a doença reconhece que o alerta dos ingleses não chega a ter a arrogância da tal “denúncia” feita pelo americano Bratton sobre o fato de que finalmente a sociedade capitalista encontrou a “vingança do real”. O que seria essa realidade para este infeliz?, ela pergunta a si mesma enquanto ceifa algumas vidas a mais para a sua contabilidade extremamente precisa. Para Bratton, é o reencontro com uma perspectiva materialista, cuja meta é rever a importância do corpo, a ser agora governado por uma instância burocrática global que finalmente resolveria qualquer espécie de problema sanitário – em especial, uma pandemia, como é que agora chamam a última variação da peste.  Ela (ou seria ele?) reconhece nessas ideias algo semelhante ao que um outro sábio, o italiano Giorgio Agamben, já escrevia sobre o “triunfo da biopolítica” (por sua vez, inspirado por Foucault). Por coincidência, foi o mesmo Agamben que escreveu, durante o último surto da moléstia na Itália, que tudo não passava de uma grande ilusão, fabricada pelos estados nacionais, para subjugar ainda mais a população em um permanente “estado de exceção”. O vírus gostou deste raciocínio – menos Benjamin Bratton. Na sua “vingança do real”, a peste gostou de perceber que, na verdade, todo o livro do pensador americano só tinha uma intenção: atacar Agamben.  O que a leva agora ao livro de Niall Ferguson, Catástrofe. De todas as análises, é o seu favorito. O historiador escocês mostra, em detalhes, como qualquer tentativa de compreender a peste – e, sobretudo, de evitá-la – terminará inevitavelmente em fracasso absoluto. E por motivo muito simples: ela (ou ele?) é, por sua própria natureza, inescrutável. Em geral, história e doenças andam de mãos dadas, também acompanhadas pelo acaso. Quando ele (ou ela?) lia a obra de Ferguson, não parava de pensar numa outra seta, semelhante à de Apolo, a ser relembrada por outro grego – no caso o estagirita Aristóteles: “Sorte é a seta que atinge a pessoa que está ao seu lado”. Ele não fica nem um pouco triste ao admitir, como escreve Ferguson, que se você sobreviver a uma catástrofe de proporções épicas (como o que aconteceu em 2020), a única conclusão que lhe resta é que a peste (ou o vírus?) não estava nem aí pela sua pessoa, em todos os sentidos desta expressão. Contudo, há um ponto que o escocês não consegue aprofundar: se tudo não passa de um problema sistêmico, de um panorama de desastres civilizacionais dos quais a humanidade não tem condições técnicas e políticas de resolvê-los – então, não haveria responsabilidade nenhuma por essas ações ou omissões? Ninguém seria culpado? Todos estariam livres para cometerem suas sandices?  A peste dá outra gargalhada. Pois ela (ou seria ele?) sabe que esta é a meta final da sua existência (ou da ausência dela). A confusão é o seu reino, a tragédia é o seu espetáculo. É tudo isso o que ela deseja: o fato de que ninguém saiba mais o que deve ser feito quando ela contamina a todos, inclusive a nossa noção de certo e de errado, do que é verdade e o que é mentira. Apesar de admitir, por exemplo, que líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro foram imprudentes na condução deste desastre contemporâneo, Ferguson cai nessa esparrela, imperdoável para quem faz da história a sua profissão. Ela (ou ele?), se fosse sua amiga (mas espera-se que ninguém anseie por tal preocupação), até o avisaria disso; contudo, o que ganharia? Nada, é claro – apesar de que o “nada” é tudo o que ele (ou seria ela?) planeja. Quando o vírus surgir novamente, sob quaisquer outros disfarces, ele não alertará a ninguém que é óbvio que há uma responsabilidade objetiva em tudo o que o ser humano realiza neste globo terrestre, ao menos enquanto houver algum traço de consciência individual a andar por aqui. Afinal de contas, para quê contar essa verdade? É no reino da mentira que ela (ou seria ele?) prolifera.  Já dizia um outro escriba que narrou os feitos da doença no distante século 17, Daniel Defoe: “Uma peste é um inimigo formidável, e arma-se com terrores que nenhum homem está suficientemente preparado para combater, muito menos lidar com o choque que vem dela”. Nenhum homem pretende assumir o fardo de que ele é, em si mesmo, uma doença a ser extinguida da face da terra. Mas, por outro lado, ninguém quer admitir que, entre catástrofes e falsidades, há um outro reino a nos sustentar, por incrível que pareça. Porém, ao ouvir isso de novo, o vírus (ou seria a peste?) deixa de sorrir e procura outras vítimas para alimentar o vazio que consome o seu inimigo – no caso, o nosso universo. Quem viver, verá.”

O inimigo dele é o universo e ele o encobre no meio da noite com as estrelas que não vão a lugar nenhum, pois o frio o alimenta no meio das florestas que serão devoradas pelo seu ritmo implacável e invisível. Não só as florestas, mas as cidades, as vilas, os bairros, as casas, as famílias – todas trancadas em seus lares, ou todas à espera para que ele enfim as leve para algum quarto na UTI ou algum leito hospitalar ou uma vala que será coberta por terra e cal. Ninguém sabe bem como chamá-lo porque ele pouco se importa com nomes. Às vezes chamam-no de vírus, embora ele goste mesmo de outra denominação – “peste”.

Peste é o tema de 'O Triunfo da Morte', pintura produzida em 1562 pelo pintor belga Pieter Bruegel Foto: Museu do Prado

Uma vez que o seu gênero é igualmente fluído, seja como vírus, seja como peste, é justamente essa amplitude de significados que permite que suas vítimas – futuras e passadas, senão inevitáveis – devorem o tempo que lhes resta ao escreverem diversos livros que tentam decifrar seus mecanismos insondáveis. Desde o início do ano passado, quando ele resolveu ressurgir com força total (com outro nome, similar ao de uma coroa de espinhos), há pelo menos uma centena desses tomos; porém, quatro deles – Apollo’s Arrow, de Nicholas Christakis, The Wake-Up Call, de John Micklethwait e Adrian Woolbridge, The Revenge of the Real, de Benjamin Bratton, e Catástrofe, de Niall Ferguson – chegaram às estantes do globo terrestre como alguma espécie de resposta definitiva ao que o oponente supunha ser na cabeça de cada um desses eruditos. Obviamente, ele riu de cada uma dessas explicações. Na verdade, fez isso não por desprezo, mas sim porque achou-as simplesmente divertidas. O livro de Christakis parte da primeira grande metáfora na literatura ocidental – a seta de Apolo como representante da moléstia que assolou o exército de Agamenon logo no início da Ilíada, de Homero – para criar paralelos entre ele e o modo como a humanidade o confrontou durante os séculos. Como previsto, essas tentativas não deram muito certo porque ele (ou ela?) permaneceu entre os seres humanos. Mas Christakis é um médico que acredita no progresso humano (e também na benevolência de Bill Gates, um dos poucos que previu o surto) e, por isso, assegura que a seta de Apolo é uma exceção na trajetória desta raça que, volta e meia, a peste insiste em eliminar da face da terra. Ela (ou ele?) sabe que o nobre doutor é apenas um iludido, mas gosta de ver essas quimeras bem alimentadas. Afinal de contas, o vírus se alimenta disso. O mesmo ocorre com a dupla Micklethwait e Woolbridge, cientistas políticos que perceberam que o surgimento da praga significava a demolição final daquilo que conhecíamos como “Estado Moderno”. O livro deles tenta ser um alerta contra suas artimanhas, mas é um aviso que já passou do tempo de ser dado. Ela (ou ela?) sorri quando os nobres professores concluem, mesmo que indiretamente, que o Ocidente (seu território favorito) falhou em tudo o que podia para impedir o seu contágio – especialmente neste mundo tão globalizado em intenção, mas fracassado na ação. Ao menos, a doença reconhece que o alerta dos ingleses não chega a ter a arrogância da tal “denúncia” feita pelo americano Bratton sobre o fato de que finalmente a sociedade capitalista encontrou a “vingança do real”. O que seria essa realidade para este infeliz?, ela pergunta a si mesma enquanto ceifa algumas vidas a mais para a sua contabilidade extremamente precisa. Para Bratton, é o reencontro com uma perspectiva materialista, cuja meta é rever a importância do corpo, a ser agora governado por uma instância burocrática global que finalmente resolveria qualquer espécie de problema sanitário – em especial, uma pandemia, como é que agora chamam a última variação da peste.  Ela (ou seria ele?) reconhece nessas ideias algo semelhante ao que um outro sábio, o italiano Giorgio Agamben, já escrevia sobre o “triunfo da biopolítica” (por sua vez, inspirado por Foucault). Por coincidência, foi o mesmo Agamben que escreveu, durante o último surto da moléstia na Itália, que tudo não passava de uma grande ilusão, fabricada pelos estados nacionais, para subjugar ainda mais a população em um permanente “estado de exceção”. O vírus gostou deste raciocínio – menos Benjamin Bratton. Na sua “vingança do real”, a peste gostou de perceber que, na verdade, todo o livro do pensador americano só tinha uma intenção: atacar Agamben.  O que a leva agora ao livro de Niall Ferguson, Catástrofe. De todas as análises, é o seu favorito. O historiador escocês mostra, em detalhes, como qualquer tentativa de compreender a peste – e, sobretudo, de evitá-la – terminará inevitavelmente em fracasso absoluto. E por motivo muito simples: ela (ou ele?) é, por sua própria natureza, inescrutável. Em geral, história e doenças andam de mãos dadas, também acompanhadas pelo acaso. Quando ele (ou ela?) lia a obra de Ferguson, não parava de pensar numa outra seta, semelhante à de Apolo, a ser relembrada por outro grego – no caso o estagirita Aristóteles: “Sorte é a seta que atinge a pessoa que está ao seu lado”. Ele não fica nem um pouco triste ao admitir, como escreve Ferguson, que se você sobreviver a uma catástrofe de proporções épicas (como o que aconteceu em 2020), a única conclusão que lhe resta é que a peste (ou o vírus?) não estava nem aí pela sua pessoa, em todos os sentidos desta expressão. Contudo, há um ponto que o escocês não consegue aprofundar: se tudo não passa de um problema sistêmico, de um panorama de desastres civilizacionais dos quais a humanidade não tem condições técnicas e políticas de resolvê-los – então, não haveria responsabilidade nenhuma por essas ações ou omissões? Ninguém seria culpado? Todos estariam livres para cometerem suas sandices?  A peste dá outra gargalhada. Pois ela (ou seria ele?) sabe que esta é a meta final da sua existência (ou da ausência dela). A confusão é o seu reino, a tragédia é o seu espetáculo. É tudo isso o que ela deseja: o fato de que ninguém saiba mais o que deve ser feito quando ela contamina a todos, inclusive a nossa noção de certo e de errado, do que é verdade e o que é mentira. Apesar de admitir, por exemplo, que líderes como Donald Trump e Jair Bolsonaro foram imprudentes na condução deste desastre contemporâneo, Ferguson cai nessa esparrela, imperdoável para quem faz da história a sua profissão. Ela (ou ele?), se fosse sua amiga (mas espera-se que ninguém anseie por tal preocupação), até o avisaria disso; contudo, o que ganharia? Nada, é claro – apesar de que o “nada” é tudo o que ele (ou seria ela?) planeja. Quando o vírus surgir novamente, sob quaisquer outros disfarces, ele não alertará a ninguém que é óbvio que há uma responsabilidade objetiva em tudo o que o ser humano realiza neste globo terrestre, ao menos enquanto houver algum traço de consciência individual a andar por aqui. Afinal de contas, para quê contar essa verdade? É no reino da mentira que ela (ou seria ele?) prolifera.  Já dizia um outro escriba que narrou os feitos da doença no distante século 17, Daniel Defoe: “Uma peste é um inimigo formidável, e arma-se com terrores que nenhum homem está suficientemente preparado para combater, muito menos lidar com o choque que vem dela”. Nenhum homem pretende assumir o fardo de que ele é, em si mesmo, uma doença a ser extinguida da face da terra. Mas, por outro lado, ninguém quer admitir que, entre catástrofes e falsidades, há um outro reino a nos sustentar, por incrível que pareça. Porém, ao ouvir isso de novo, o vírus (ou seria a peste?) deixa de sorrir e procura outras vítimas para alimentar o vazio que consome o seu inimigo – no caso, o nosso universo. Quem viver, verá.”

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