Juan Pablo Villalobos e a graça da desgraça


Em ‘Se Vivêssemos em Um Lugar Normal’, escritor mexicano mostra a irreverência como arma contra o poder

Por Ubiratan Brasil

As primeiras frases trazem uma saraivada de palavrões, impublicáveis aqui. Se podem ofender o leitor mais desavisado, os impropérios antecipam, na verdade, uma narrativa marcada por um humor corrosivo, cáustico, que se revela uma arma contra o poder – no caso, o mexicano. Em Se Vivêssemos em Um Lugar Normal, que a Companhia das Letras lança no dia 12, Juan Pablo Villalobos segue firme em seu propósito de construir uma trilogia crítica sobre o México. Não pela simples descrição detalhada das mazelas do povo ou das ações de governantes corruptos: Villalobos toca na ferida, mas com uma graça capaz de fazer aquele leitor inicialmente escandalizado sofrer uma síncope de tanto rir.

Se Vivêssemos é a segunda parte da trilogia, iniciada por Festa no Covil, em que a vida íntima de um poderoso chefe do narcotráfico é narrada pelo filho, Tochtli. Agora, o protagonista é um adolescente, Orestes, que, nos anos 1980, vive com uma numerosa família na cidade mexicana de Lagos de Moreno, “onde há mais vacas que pessoas e mais padres que vacas”. Lá, divide a caixa de sapato (como chama o lar) com a ambivalência do pai, professor de educação cívica e profissional do insulto (o que justificam os palavrões no início da história), a dramaticidade da mãe, mulher zelosa na manutenção da família, e ainda uma penca de irmãos, entre eles, gêmeos de mentira (bivitelinos), todos se debatendo diariamente à mesa, na divisão da comida. Como pano de fundo, um país marcado pela hiperinflação e uma situação econômica delirante.

Mexicano de nascimento, Villalobos vive hoje em Campinas e esse olhar distante certamente lapida uma narrativa que beira o tragicômico em grau exponencial, a ponto de transformar o caos em joia da narrativa. Um dos principais convidados da primeira edição da Pauliceia Literária, evento que ocorre entre 19 e 22 de setembro na Associação dos Advogados de São Paulo, ele respondeu às seguintes perguntas por e-mail desde a Inglaterra, onde foi lançar Se Vivêssemos em inglês (lá se chama Quesadillas), versão que ganhou dois prêmios do English Pen Club (para tradução e promoção).

continua após a publicidade

Humor corrosivo é o melhor caminho para se falar de hecatombes sociais e combater o horror? Sou um grande leitor de literatura humorística, desde as comédias de Aristófanes, Quixote ou Tristram Shandy. O que me interessa, no fundo, é a irreverência, detesto a falsa solenidade, prefiro o palhaço ao sábio pedante. O riso é uma maneira de pensar, de se comunicar, até mesmo quando se trata de assuntos trágicos e dolorosos. O riso exige uma suspensão momentânea dos sentimentos; para rir é imprescindível distanciar-se da realidade, e é esse fenômeno que me parece fascinante. Ninguém permanece o mesmo depois de rir. Nossa percepção da realidade mudou. Isso acontece de maneira mais radical quando estamos frente ao tragicômico; estou muito interessado em produzir uma gargalhada que vai ficando meio sufocada e se transforma em uma careta de culpa, de tristeza. Em Se Vivêssemos, além do sarcasmo, a paródia ou o cinismo, os insultos desempenham um papel muito importante.

Por isso o primeiro capítulo se intitula Profissionais do insulto?Sim. Em nossas sociedades, fala-se muito do caráter negativo do insulto – como, muitas vezes, é o primeiro passo para a violência física, o que é certo. Querem nos vender a ideia de uma linguagem asséptica, “limpa”, “politicamente correta”. Mas também há outro aspecto do insulto, sua capacidade de restituir à linguagem toda a sua violência simbólica no momento de assinalar os corruptos, os manipuladores, os fraudulentos, os tiranos. Em muitas sociedades, no México, sem que precisemos ir mais longe, a última arma de resistência que temos diante de uma classe política totalmente desavergonhada é o insulto. Eu me pergunto que tipo de literatura é mais conveniente para a nossa classe política: uma literatura ensimesmada, de exacerbação do “eu”, uma literatura que não olha a realidade, que olha apenas o próprio umbigo, uma literatura que poderia ser classificada como “neorromantismo metaliterário” é uma literatura inofensiva que se encaixa perfeitamente no sistema de consumo. O México está caindo aos pedaços e, pelo menos eu, não posso, não quero desviar o meu olhar.

Sua escrita já foi comparada à de Salinger, temperada pelo surrealismo e o absurdo. Ser comparado a Salinger é como se, no parque, jogando futebol com meu filho, alguém me dissesse que jogo como Messi. Não me sinto à vontade quando se fala de surrealismo, porque me parece que, muitas vezes, as pessoas usam esse termo quando não entendem algo. Se não o entendo, é surrealista. Tem havido um abuso do termo. Falo sobre isso, de maneira indireta, em Se Vivêssemos. Há uma frase de André Breton que nos prejudicou muito: o México é um país surrealista. O olhar estrangeiro foi condicionado por essa frase, por construir uma identidade do mexicano através do mágico, do maravilhoso, do surrealista, do exótico. E o problema é que os mexicanos acabaram assumindo como próprio esse olhar estrangeiro, passaram a acreditar nessa história. Nossa realidade não é surrealista, é atroz.Por outro lado, sinto-me na realidade muito próximo da estética do absurdo, de Beckett e Ionesco, e de Campos de Carvalho, por quem tenho enorme admiração.

continua após a publicidade

Sua escrita se aproxima de Raymond Queneau e Alfred Jarry?São duas referências essenciais para Se Vivêssemos. Também os contos e o Cândido, de Voltaire, Jacques le Fataliste, de Diderot, a obra de Boris Vian. Nesse sentido, é um romance muito francês, um romance que não poderia ter escrito sem todas essas leituras. Em sua origem, o romance era uma reescritura de Ubu Rei de Jarry, personificado por Carlos Salinas de Gortari, que foi presidente do México de 1988 a 1994. Ubu e Salinas eram iguais, uma paródia do exercício tirânico do poder, só que Ubu mandava matar as pessoas e, em meu romance, Salinas mandava privatizar as empresas. Abandonei esse projeto para o romance, mas algo dele permaneceu na versão final de Se Vivêssemos.

O que difere Festa no Covil de Se Vivêssemos é a sintaxe?Sim, acredito que cada história tenha uma voz para ser contada, um tom narrativo único, uma sintaxe. Valéry escreveu que a sintaxe é uma faculdade da alma. Festa no Covil tem uma sintaxe simples, de frases curtas que imprimem um ritmo e uma cadência acelerada, uma sintaxe que está condicionada pela escolha da voz narrativa, pelo fato de que o narrador é um personagem infantil. Em Se Vivêssemos, a sintaxe é mais completa, mais rebuscada, barroca, uma retórica que parodia a linguagem da política. Mas acredito que a grande diferença entre ambos os romances está na maneira como seus narradores olham a realidade. Em Festa no Covil, Tochtli, o protagonista, é um menino que está tentando entender a realidade na qual vive, e suas interpretações são, muitas vezes, absurdas. O efeito humorístico é construído através do mal-entendido. Por outro lado, em Se Vivêssemos, Orestes já entendeu como funcionam os mecanismos dessa realidade e resiste a aceitá-los, rebela-se contra eles. Por isso, no segundo romance, são mais importantes o sarcasmo, a paródia, o cinismo. Orestes usa a linguagem, e o humor, como arma contra a realidade.

 

continua após a publicidade

SE VIVÊSSEMOS EM UM LUGAR NORMALAutor: Juan Pablo VillalobosTradução: Andreia MoroniEditora: Companhia das Letras (160 págs., R$ 36,50)

 

Trecho

continua após a publicidade

“Fugimos olhando para trás, quase correndo de costas. Poderíamos ter ido embora sem olhar para trás, o impacto poético teria sido maior, mas não seria verdade: era preciso ver se não havia ninguém nos seguindo. Era uma visão de despedida muito deprimente: nossa horrível caixa de sapato e a mansão dos poloneses. Vista de longe, nossa casa parecia a casinha do cachorro dos poloneses; não, nem isso. Ou talvez sim, se o cachorro já tivesse morrido e ainda não tivesse sido substituído. (...) Eu não podia deixar de lembrar dos meus irmãos menores, os que ficavam em casa, eles agora seriam uma família pequena de três filhos, que sorte do c...”

As primeiras frases trazem uma saraivada de palavrões, impublicáveis aqui. Se podem ofender o leitor mais desavisado, os impropérios antecipam, na verdade, uma narrativa marcada por um humor corrosivo, cáustico, que se revela uma arma contra o poder – no caso, o mexicano. Em Se Vivêssemos em Um Lugar Normal, que a Companhia das Letras lança no dia 12, Juan Pablo Villalobos segue firme em seu propósito de construir uma trilogia crítica sobre o México. Não pela simples descrição detalhada das mazelas do povo ou das ações de governantes corruptos: Villalobos toca na ferida, mas com uma graça capaz de fazer aquele leitor inicialmente escandalizado sofrer uma síncope de tanto rir.

Se Vivêssemos é a segunda parte da trilogia, iniciada por Festa no Covil, em que a vida íntima de um poderoso chefe do narcotráfico é narrada pelo filho, Tochtli. Agora, o protagonista é um adolescente, Orestes, que, nos anos 1980, vive com uma numerosa família na cidade mexicana de Lagos de Moreno, “onde há mais vacas que pessoas e mais padres que vacas”. Lá, divide a caixa de sapato (como chama o lar) com a ambivalência do pai, professor de educação cívica e profissional do insulto (o que justificam os palavrões no início da história), a dramaticidade da mãe, mulher zelosa na manutenção da família, e ainda uma penca de irmãos, entre eles, gêmeos de mentira (bivitelinos), todos se debatendo diariamente à mesa, na divisão da comida. Como pano de fundo, um país marcado pela hiperinflação e uma situação econômica delirante.

Mexicano de nascimento, Villalobos vive hoje em Campinas e esse olhar distante certamente lapida uma narrativa que beira o tragicômico em grau exponencial, a ponto de transformar o caos em joia da narrativa. Um dos principais convidados da primeira edição da Pauliceia Literária, evento que ocorre entre 19 e 22 de setembro na Associação dos Advogados de São Paulo, ele respondeu às seguintes perguntas por e-mail desde a Inglaterra, onde foi lançar Se Vivêssemos em inglês (lá se chama Quesadillas), versão que ganhou dois prêmios do English Pen Club (para tradução e promoção).

Humor corrosivo é o melhor caminho para se falar de hecatombes sociais e combater o horror? Sou um grande leitor de literatura humorística, desde as comédias de Aristófanes, Quixote ou Tristram Shandy. O que me interessa, no fundo, é a irreverência, detesto a falsa solenidade, prefiro o palhaço ao sábio pedante. O riso é uma maneira de pensar, de se comunicar, até mesmo quando se trata de assuntos trágicos e dolorosos. O riso exige uma suspensão momentânea dos sentimentos; para rir é imprescindível distanciar-se da realidade, e é esse fenômeno que me parece fascinante. Ninguém permanece o mesmo depois de rir. Nossa percepção da realidade mudou. Isso acontece de maneira mais radical quando estamos frente ao tragicômico; estou muito interessado em produzir uma gargalhada que vai ficando meio sufocada e se transforma em uma careta de culpa, de tristeza. Em Se Vivêssemos, além do sarcasmo, a paródia ou o cinismo, os insultos desempenham um papel muito importante.

Por isso o primeiro capítulo se intitula Profissionais do insulto?Sim. Em nossas sociedades, fala-se muito do caráter negativo do insulto – como, muitas vezes, é o primeiro passo para a violência física, o que é certo. Querem nos vender a ideia de uma linguagem asséptica, “limpa”, “politicamente correta”. Mas também há outro aspecto do insulto, sua capacidade de restituir à linguagem toda a sua violência simbólica no momento de assinalar os corruptos, os manipuladores, os fraudulentos, os tiranos. Em muitas sociedades, no México, sem que precisemos ir mais longe, a última arma de resistência que temos diante de uma classe política totalmente desavergonhada é o insulto. Eu me pergunto que tipo de literatura é mais conveniente para a nossa classe política: uma literatura ensimesmada, de exacerbação do “eu”, uma literatura que não olha a realidade, que olha apenas o próprio umbigo, uma literatura que poderia ser classificada como “neorromantismo metaliterário” é uma literatura inofensiva que se encaixa perfeitamente no sistema de consumo. O México está caindo aos pedaços e, pelo menos eu, não posso, não quero desviar o meu olhar.

Sua escrita já foi comparada à de Salinger, temperada pelo surrealismo e o absurdo. Ser comparado a Salinger é como se, no parque, jogando futebol com meu filho, alguém me dissesse que jogo como Messi. Não me sinto à vontade quando se fala de surrealismo, porque me parece que, muitas vezes, as pessoas usam esse termo quando não entendem algo. Se não o entendo, é surrealista. Tem havido um abuso do termo. Falo sobre isso, de maneira indireta, em Se Vivêssemos. Há uma frase de André Breton que nos prejudicou muito: o México é um país surrealista. O olhar estrangeiro foi condicionado por essa frase, por construir uma identidade do mexicano através do mágico, do maravilhoso, do surrealista, do exótico. E o problema é que os mexicanos acabaram assumindo como próprio esse olhar estrangeiro, passaram a acreditar nessa história. Nossa realidade não é surrealista, é atroz.Por outro lado, sinto-me na realidade muito próximo da estética do absurdo, de Beckett e Ionesco, e de Campos de Carvalho, por quem tenho enorme admiração.

Sua escrita se aproxima de Raymond Queneau e Alfred Jarry?São duas referências essenciais para Se Vivêssemos. Também os contos e o Cândido, de Voltaire, Jacques le Fataliste, de Diderot, a obra de Boris Vian. Nesse sentido, é um romance muito francês, um romance que não poderia ter escrito sem todas essas leituras. Em sua origem, o romance era uma reescritura de Ubu Rei de Jarry, personificado por Carlos Salinas de Gortari, que foi presidente do México de 1988 a 1994. Ubu e Salinas eram iguais, uma paródia do exercício tirânico do poder, só que Ubu mandava matar as pessoas e, em meu romance, Salinas mandava privatizar as empresas. Abandonei esse projeto para o romance, mas algo dele permaneceu na versão final de Se Vivêssemos.

O que difere Festa no Covil de Se Vivêssemos é a sintaxe?Sim, acredito que cada história tenha uma voz para ser contada, um tom narrativo único, uma sintaxe. Valéry escreveu que a sintaxe é uma faculdade da alma. Festa no Covil tem uma sintaxe simples, de frases curtas que imprimem um ritmo e uma cadência acelerada, uma sintaxe que está condicionada pela escolha da voz narrativa, pelo fato de que o narrador é um personagem infantil. Em Se Vivêssemos, a sintaxe é mais completa, mais rebuscada, barroca, uma retórica que parodia a linguagem da política. Mas acredito que a grande diferença entre ambos os romances está na maneira como seus narradores olham a realidade. Em Festa no Covil, Tochtli, o protagonista, é um menino que está tentando entender a realidade na qual vive, e suas interpretações são, muitas vezes, absurdas. O efeito humorístico é construído através do mal-entendido. Por outro lado, em Se Vivêssemos, Orestes já entendeu como funcionam os mecanismos dessa realidade e resiste a aceitá-los, rebela-se contra eles. Por isso, no segundo romance, são mais importantes o sarcasmo, a paródia, o cinismo. Orestes usa a linguagem, e o humor, como arma contra a realidade.

 

SE VIVÊSSEMOS EM UM LUGAR NORMALAutor: Juan Pablo VillalobosTradução: Andreia MoroniEditora: Companhia das Letras (160 págs., R$ 36,50)

 

Trecho

“Fugimos olhando para trás, quase correndo de costas. Poderíamos ter ido embora sem olhar para trás, o impacto poético teria sido maior, mas não seria verdade: era preciso ver se não havia ninguém nos seguindo. Era uma visão de despedida muito deprimente: nossa horrível caixa de sapato e a mansão dos poloneses. Vista de longe, nossa casa parecia a casinha do cachorro dos poloneses; não, nem isso. Ou talvez sim, se o cachorro já tivesse morrido e ainda não tivesse sido substituído. (...) Eu não podia deixar de lembrar dos meus irmãos menores, os que ficavam em casa, eles agora seriam uma família pequena de três filhos, que sorte do c...”

As primeiras frases trazem uma saraivada de palavrões, impublicáveis aqui. Se podem ofender o leitor mais desavisado, os impropérios antecipam, na verdade, uma narrativa marcada por um humor corrosivo, cáustico, que se revela uma arma contra o poder – no caso, o mexicano. Em Se Vivêssemos em Um Lugar Normal, que a Companhia das Letras lança no dia 12, Juan Pablo Villalobos segue firme em seu propósito de construir uma trilogia crítica sobre o México. Não pela simples descrição detalhada das mazelas do povo ou das ações de governantes corruptos: Villalobos toca na ferida, mas com uma graça capaz de fazer aquele leitor inicialmente escandalizado sofrer uma síncope de tanto rir.

Se Vivêssemos é a segunda parte da trilogia, iniciada por Festa no Covil, em que a vida íntima de um poderoso chefe do narcotráfico é narrada pelo filho, Tochtli. Agora, o protagonista é um adolescente, Orestes, que, nos anos 1980, vive com uma numerosa família na cidade mexicana de Lagos de Moreno, “onde há mais vacas que pessoas e mais padres que vacas”. Lá, divide a caixa de sapato (como chama o lar) com a ambivalência do pai, professor de educação cívica e profissional do insulto (o que justificam os palavrões no início da história), a dramaticidade da mãe, mulher zelosa na manutenção da família, e ainda uma penca de irmãos, entre eles, gêmeos de mentira (bivitelinos), todos se debatendo diariamente à mesa, na divisão da comida. Como pano de fundo, um país marcado pela hiperinflação e uma situação econômica delirante.

Mexicano de nascimento, Villalobos vive hoje em Campinas e esse olhar distante certamente lapida uma narrativa que beira o tragicômico em grau exponencial, a ponto de transformar o caos em joia da narrativa. Um dos principais convidados da primeira edição da Pauliceia Literária, evento que ocorre entre 19 e 22 de setembro na Associação dos Advogados de São Paulo, ele respondeu às seguintes perguntas por e-mail desde a Inglaterra, onde foi lançar Se Vivêssemos em inglês (lá se chama Quesadillas), versão que ganhou dois prêmios do English Pen Club (para tradução e promoção).

Humor corrosivo é o melhor caminho para se falar de hecatombes sociais e combater o horror? Sou um grande leitor de literatura humorística, desde as comédias de Aristófanes, Quixote ou Tristram Shandy. O que me interessa, no fundo, é a irreverência, detesto a falsa solenidade, prefiro o palhaço ao sábio pedante. O riso é uma maneira de pensar, de se comunicar, até mesmo quando se trata de assuntos trágicos e dolorosos. O riso exige uma suspensão momentânea dos sentimentos; para rir é imprescindível distanciar-se da realidade, e é esse fenômeno que me parece fascinante. Ninguém permanece o mesmo depois de rir. Nossa percepção da realidade mudou. Isso acontece de maneira mais radical quando estamos frente ao tragicômico; estou muito interessado em produzir uma gargalhada que vai ficando meio sufocada e se transforma em uma careta de culpa, de tristeza. Em Se Vivêssemos, além do sarcasmo, a paródia ou o cinismo, os insultos desempenham um papel muito importante.

Por isso o primeiro capítulo se intitula Profissionais do insulto?Sim. Em nossas sociedades, fala-se muito do caráter negativo do insulto – como, muitas vezes, é o primeiro passo para a violência física, o que é certo. Querem nos vender a ideia de uma linguagem asséptica, “limpa”, “politicamente correta”. Mas também há outro aspecto do insulto, sua capacidade de restituir à linguagem toda a sua violência simbólica no momento de assinalar os corruptos, os manipuladores, os fraudulentos, os tiranos. Em muitas sociedades, no México, sem que precisemos ir mais longe, a última arma de resistência que temos diante de uma classe política totalmente desavergonhada é o insulto. Eu me pergunto que tipo de literatura é mais conveniente para a nossa classe política: uma literatura ensimesmada, de exacerbação do “eu”, uma literatura que não olha a realidade, que olha apenas o próprio umbigo, uma literatura que poderia ser classificada como “neorromantismo metaliterário” é uma literatura inofensiva que se encaixa perfeitamente no sistema de consumo. O México está caindo aos pedaços e, pelo menos eu, não posso, não quero desviar o meu olhar.

Sua escrita já foi comparada à de Salinger, temperada pelo surrealismo e o absurdo. Ser comparado a Salinger é como se, no parque, jogando futebol com meu filho, alguém me dissesse que jogo como Messi. Não me sinto à vontade quando se fala de surrealismo, porque me parece que, muitas vezes, as pessoas usam esse termo quando não entendem algo. Se não o entendo, é surrealista. Tem havido um abuso do termo. Falo sobre isso, de maneira indireta, em Se Vivêssemos. Há uma frase de André Breton que nos prejudicou muito: o México é um país surrealista. O olhar estrangeiro foi condicionado por essa frase, por construir uma identidade do mexicano através do mágico, do maravilhoso, do surrealista, do exótico. E o problema é que os mexicanos acabaram assumindo como próprio esse olhar estrangeiro, passaram a acreditar nessa história. Nossa realidade não é surrealista, é atroz.Por outro lado, sinto-me na realidade muito próximo da estética do absurdo, de Beckett e Ionesco, e de Campos de Carvalho, por quem tenho enorme admiração.

Sua escrita se aproxima de Raymond Queneau e Alfred Jarry?São duas referências essenciais para Se Vivêssemos. Também os contos e o Cândido, de Voltaire, Jacques le Fataliste, de Diderot, a obra de Boris Vian. Nesse sentido, é um romance muito francês, um romance que não poderia ter escrito sem todas essas leituras. Em sua origem, o romance era uma reescritura de Ubu Rei de Jarry, personificado por Carlos Salinas de Gortari, que foi presidente do México de 1988 a 1994. Ubu e Salinas eram iguais, uma paródia do exercício tirânico do poder, só que Ubu mandava matar as pessoas e, em meu romance, Salinas mandava privatizar as empresas. Abandonei esse projeto para o romance, mas algo dele permaneceu na versão final de Se Vivêssemos.

O que difere Festa no Covil de Se Vivêssemos é a sintaxe?Sim, acredito que cada história tenha uma voz para ser contada, um tom narrativo único, uma sintaxe. Valéry escreveu que a sintaxe é uma faculdade da alma. Festa no Covil tem uma sintaxe simples, de frases curtas que imprimem um ritmo e uma cadência acelerada, uma sintaxe que está condicionada pela escolha da voz narrativa, pelo fato de que o narrador é um personagem infantil. Em Se Vivêssemos, a sintaxe é mais completa, mais rebuscada, barroca, uma retórica que parodia a linguagem da política. Mas acredito que a grande diferença entre ambos os romances está na maneira como seus narradores olham a realidade. Em Festa no Covil, Tochtli, o protagonista, é um menino que está tentando entender a realidade na qual vive, e suas interpretações são, muitas vezes, absurdas. O efeito humorístico é construído através do mal-entendido. Por outro lado, em Se Vivêssemos, Orestes já entendeu como funcionam os mecanismos dessa realidade e resiste a aceitá-los, rebela-se contra eles. Por isso, no segundo romance, são mais importantes o sarcasmo, a paródia, o cinismo. Orestes usa a linguagem, e o humor, como arma contra a realidade.

 

SE VIVÊSSEMOS EM UM LUGAR NORMALAutor: Juan Pablo VillalobosTradução: Andreia MoroniEditora: Companhia das Letras (160 págs., R$ 36,50)

 

Trecho

“Fugimos olhando para trás, quase correndo de costas. Poderíamos ter ido embora sem olhar para trás, o impacto poético teria sido maior, mas não seria verdade: era preciso ver se não havia ninguém nos seguindo. Era uma visão de despedida muito deprimente: nossa horrível caixa de sapato e a mansão dos poloneses. Vista de longe, nossa casa parecia a casinha do cachorro dos poloneses; não, nem isso. Ou talvez sim, se o cachorro já tivesse morrido e ainda não tivesse sido substituído. (...) Eu não podia deixar de lembrar dos meus irmãos menores, os que ficavam em casa, eles agora seriam uma família pequena de três filhos, que sorte do c...”

As primeiras frases trazem uma saraivada de palavrões, impublicáveis aqui. Se podem ofender o leitor mais desavisado, os impropérios antecipam, na verdade, uma narrativa marcada por um humor corrosivo, cáustico, que se revela uma arma contra o poder – no caso, o mexicano. Em Se Vivêssemos em Um Lugar Normal, que a Companhia das Letras lança no dia 12, Juan Pablo Villalobos segue firme em seu propósito de construir uma trilogia crítica sobre o México. Não pela simples descrição detalhada das mazelas do povo ou das ações de governantes corruptos: Villalobos toca na ferida, mas com uma graça capaz de fazer aquele leitor inicialmente escandalizado sofrer uma síncope de tanto rir.

Se Vivêssemos é a segunda parte da trilogia, iniciada por Festa no Covil, em que a vida íntima de um poderoso chefe do narcotráfico é narrada pelo filho, Tochtli. Agora, o protagonista é um adolescente, Orestes, que, nos anos 1980, vive com uma numerosa família na cidade mexicana de Lagos de Moreno, “onde há mais vacas que pessoas e mais padres que vacas”. Lá, divide a caixa de sapato (como chama o lar) com a ambivalência do pai, professor de educação cívica e profissional do insulto (o que justificam os palavrões no início da história), a dramaticidade da mãe, mulher zelosa na manutenção da família, e ainda uma penca de irmãos, entre eles, gêmeos de mentira (bivitelinos), todos se debatendo diariamente à mesa, na divisão da comida. Como pano de fundo, um país marcado pela hiperinflação e uma situação econômica delirante.

Mexicano de nascimento, Villalobos vive hoje em Campinas e esse olhar distante certamente lapida uma narrativa que beira o tragicômico em grau exponencial, a ponto de transformar o caos em joia da narrativa. Um dos principais convidados da primeira edição da Pauliceia Literária, evento que ocorre entre 19 e 22 de setembro na Associação dos Advogados de São Paulo, ele respondeu às seguintes perguntas por e-mail desde a Inglaterra, onde foi lançar Se Vivêssemos em inglês (lá se chama Quesadillas), versão que ganhou dois prêmios do English Pen Club (para tradução e promoção).

Humor corrosivo é o melhor caminho para se falar de hecatombes sociais e combater o horror? Sou um grande leitor de literatura humorística, desde as comédias de Aristófanes, Quixote ou Tristram Shandy. O que me interessa, no fundo, é a irreverência, detesto a falsa solenidade, prefiro o palhaço ao sábio pedante. O riso é uma maneira de pensar, de se comunicar, até mesmo quando se trata de assuntos trágicos e dolorosos. O riso exige uma suspensão momentânea dos sentimentos; para rir é imprescindível distanciar-se da realidade, e é esse fenômeno que me parece fascinante. Ninguém permanece o mesmo depois de rir. Nossa percepção da realidade mudou. Isso acontece de maneira mais radical quando estamos frente ao tragicômico; estou muito interessado em produzir uma gargalhada que vai ficando meio sufocada e se transforma em uma careta de culpa, de tristeza. Em Se Vivêssemos, além do sarcasmo, a paródia ou o cinismo, os insultos desempenham um papel muito importante.

Por isso o primeiro capítulo se intitula Profissionais do insulto?Sim. Em nossas sociedades, fala-se muito do caráter negativo do insulto – como, muitas vezes, é o primeiro passo para a violência física, o que é certo. Querem nos vender a ideia de uma linguagem asséptica, “limpa”, “politicamente correta”. Mas também há outro aspecto do insulto, sua capacidade de restituir à linguagem toda a sua violência simbólica no momento de assinalar os corruptos, os manipuladores, os fraudulentos, os tiranos. Em muitas sociedades, no México, sem que precisemos ir mais longe, a última arma de resistência que temos diante de uma classe política totalmente desavergonhada é o insulto. Eu me pergunto que tipo de literatura é mais conveniente para a nossa classe política: uma literatura ensimesmada, de exacerbação do “eu”, uma literatura que não olha a realidade, que olha apenas o próprio umbigo, uma literatura que poderia ser classificada como “neorromantismo metaliterário” é uma literatura inofensiva que se encaixa perfeitamente no sistema de consumo. O México está caindo aos pedaços e, pelo menos eu, não posso, não quero desviar o meu olhar.

Sua escrita já foi comparada à de Salinger, temperada pelo surrealismo e o absurdo. Ser comparado a Salinger é como se, no parque, jogando futebol com meu filho, alguém me dissesse que jogo como Messi. Não me sinto à vontade quando se fala de surrealismo, porque me parece que, muitas vezes, as pessoas usam esse termo quando não entendem algo. Se não o entendo, é surrealista. Tem havido um abuso do termo. Falo sobre isso, de maneira indireta, em Se Vivêssemos. Há uma frase de André Breton que nos prejudicou muito: o México é um país surrealista. O olhar estrangeiro foi condicionado por essa frase, por construir uma identidade do mexicano através do mágico, do maravilhoso, do surrealista, do exótico. E o problema é que os mexicanos acabaram assumindo como próprio esse olhar estrangeiro, passaram a acreditar nessa história. Nossa realidade não é surrealista, é atroz.Por outro lado, sinto-me na realidade muito próximo da estética do absurdo, de Beckett e Ionesco, e de Campos de Carvalho, por quem tenho enorme admiração.

Sua escrita se aproxima de Raymond Queneau e Alfred Jarry?São duas referências essenciais para Se Vivêssemos. Também os contos e o Cândido, de Voltaire, Jacques le Fataliste, de Diderot, a obra de Boris Vian. Nesse sentido, é um romance muito francês, um romance que não poderia ter escrito sem todas essas leituras. Em sua origem, o romance era uma reescritura de Ubu Rei de Jarry, personificado por Carlos Salinas de Gortari, que foi presidente do México de 1988 a 1994. Ubu e Salinas eram iguais, uma paródia do exercício tirânico do poder, só que Ubu mandava matar as pessoas e, em meu romance, Salinas mandava privatizar as empresas. Abandonei esse projeto para o romance, mas algo dele permaneceu na versão final de Se Vivêssemos.

O que difere Festa no Covil de Se Vivêssemos é a sintaxe?Sim, acredito que cada história tenha uma voz para ser contada, um tom narrativo único, uma sintaxe. Valéry escreveu que a sintaxe é uma faculdade da alma. Festa no Covil tem uma sintaxe simples, de frases curtas que imprimem um ritmo e uma cadência acelerada, uma sintaxe que está condicionada pela escolha da voz narrativa, pelo fato de que o narrador é um personagem infantil. Em Se Vivêssemos, a sintaxe é mais completa, mais rebuscada, barroca, uma retórica que parodia a linguagem da política. Mas acredito que a grande diferença entre ambos os romances está na maneira como seus narradores olham a realidade. Em Festa no Covil, Tochtli, o protagonista, é um menino que está tentando entender a realidade na qual vive, e suas interpretações são, muitas vezes, absurdas. O efeito humorístico é construído através do mal-entendido. Por outro lado, em Se Vivêssemos, Orestes já entendeu como funcionam os mecanismos dessa realidade e resiste a aceitá-los, rebela-se contra eles. Por isso, no segundo romance, são mais importantes o sarcasmo, a paródia, o cinismo. Orestes usa a linguagem, e o humor, como arma contra a realidade.

 

SE VIVÊSSEMOS EM UM LUGAR NORMALAutor: Juan Pablo VillalobosTradução: Andreia MoroniEditora: Companhia das Letras (160 págs., R$ 36,50)

 

Trecho

“Fugimos olhando para trás, quase correndo de costas. Poderíamos ter ido embora sem olhar para trás, o impacto poético teria sido maior, mas não seria verdade: era preciso ver se não havia ninguém nos seguindo. Era uma visão de despedida muito deprimente: nossa horrível caixa de sapato e a mansão dos poloneses. Vista de longe, nossa casa parecia a casinha do cachorro dos poloneses; não, nem isso. Ou talvez sim, se o cachorro já tivesse morrido e ainda não tivesse sido substituído. (...) Eu não podia deixar de lembrar dos meus irmãos menores, os que ficavam em casa, eles agora seriam uma família pequena de três filhos, que sorte do c...”

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.