Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Amnésia Legal


A nova lei escancara o embaraço e revela uma culpa latente e não purgada

Por Leandro Karnal

As estátuas clássicas do mundo pagão eram valorizadas como obras de arte ideais no Renascimento. Porém, um detalhe perturbava os olhares modernos: a nudez. Para equalizar a admiração antiga com o pudor recente, criou-se o mecanismo de colocar um delicado detalhe vegetal sobre a área problemática. O opróbrio cristão fazia eco à vergonha dos nossos primeiros pais. Adão e Eva cobriram-se com a folha de figueira após o pecado (Gn 3,7). 

Qual o problema da solução decorosa? Feita de gesso, em geral, sobre um mármore amarelado ou mais escurecido pelo tempo, ela cobria destacando. O olhar fica fixado no elemento hipnotizador da folha alva. A pequena peça funciona como a peruca que o indivíduo careca coloca: ficamos focados no acessório. Perucas e folhas de figueira gritam onde se pretendia silêncio. 

O governo polonês entrou no mesmo caminho. Ao impor lei que pune quem falar da participação polonesa no holocausto, traz um destaque ao antissemitismo daquele país. O ódio contra judeus existe em muitas nações e não é um privilégio alemão. Todos sabem que a máquina de extermínio foi pensada pelo governo nazista, mas o preconceito era generalizado e os atos de violência contaram com o silêncio criminoso ou o apoio entusiasmado de pessoas da França, da Hungria, da Rússia e também da Polônia. A máquina de morte alemã jamais teria conseguido seu grau trágico de eficácia se tivesse contado com populações cúmplices da vida humana e não aliadas da pulsão de morte. 

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Houve muitos casos de poloneses heroicos que arriscaram suas vidas escondendo judeus ou adotando crianças de famílias eliminadas. A violência hitlerista também tomou a vida de muitos poloneses. A construção de Auschwitz não nasceu de ordens de Varsóvia, porém se originou de comandos em Berlim. Ninguém duvida disso. Infelizmente, ao lado de resistentes pela vida, atos de ataque a populações judaicas também foram feitos por poloneses. O Holocausto tem sempre essa dupla face: ele criou heróis (que estão homenageados no jardim dos justos em Jerusalém) e deu azo a canalhas que, amparados pelo exército alemão, puderam expressar seu antigo e histórico racismo. Entre o herói e o canalha, existe uma outra categoria, talvez a mais numerosa, o cúmplice silencioso, que nada fez para ajudar e também não tomou parte direta nas mortes. A maioria calada é sempre a face tranquila do mal em todas as épocas. Como diz antiga oração penitencial católica, “peca-se por pensamentos e palavras, atos e omissões”. O extermínio dos judeus da Europa contou com as quatro categorias de fazer o mal. 

Memória não pode ser apagada pela lei. O dispositivo jurídico que criminaliza quem lembrar a óbvia e comprovada participação de civis de toda a Europa na matança é uma lei inútil, como a folha de figueira ou a peruca. Ao puxar o curto cobertor da memória para o peito desnudo, descobriu-se o pé gelado e antissemita. Talvez o mais grave não seja o horror do passado. O pior é que a lei revela a permanência daquele sentimento contra os judeus. 

Diante da memória do horror, o silêncio, mesmo imposto pela legislação, é o caminho mais equivocado. A Polônia sofreu muito na Segunda Guerra, como a Rússia e outros países. A melhor maneira de homenagear as muitas vítimas do nazismo (judeus, católicos, ciganos, homossexuais, comunistas, testemunhas de Jeová, negros, etc.) é expor que o ovo da serpente está lá, e que a memória é uma maneira de evitar o nascimento da ninhada viperina. A História é o remédio contra o nazismo. É preciso afirmar a memória crítica de tudo que ocorreu naqueles anos trágicos. Se todos os poloneses estudarem como milhões de alemães conseguiram apoiar o projeto genocida e como isso forneceu o guarda-chuva sob o qual outros povos puderam canalizar sua tradição de violência, teríamos mais esperança de registrar o nazismo como um equívoco pretérito. Se o genocídio de judeus na Segunda Guerra fosse uma empresa, a gerência seria alemã e sócios e funcionários teriam múltiplas nacionalidades, inclusive polaca. É o reconhecimento de que há um fio que vai do conceito russo de pogrom até o caso Dreyfus na França; da falsificação da polícia czarista da obra Os Protocolos dos Sábios de Sião até sua tradução nos EUA sob os auspícios do industrial Henry Ford; da recusa getulista em acolher muito mais gente que fugia do horror; do asilo que Perón concedia a criminosos de guerra até a placidez alpina dos banqueiros suíços que acolheram milhões em depósitos de famílias judaicas e silenciaram sobre os fundos por décadas. O holocausto é um fato internacional e traz à tona não apenas um projeto alemão, mas um ódio coletivo, irracional e criminoso. O Holocausto é europeu, o antissemitismo é mundial. 

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“Nunca mais” é um bom propósito para estudos sobre o ódio. As leis não podem sufocar a memória. Nem em países de ditaduras absolutas como a URSS, o silêncio sobre a história conseguiu ser total. Em tempos de internet e contatos amplos, a lei polonesa só traz à tona que Hitler foi vencido, o antissemitismo, não. 

Lamento muito a iniciativa do governo de Varsóvia. Como nas estátuas renascentistas, estamos com os olhos fixos na vergonha que desejam esconder. O povo polonês sobreviveu a duas das mais brutais ditaduras da história, a nazista e a soviética. Torço para que sobrevivam ao nacionalismo atual do país. Como no Gênesis, a vergonha só chega após o erro. A nova lei escancara o embaraço e revela uma culpa latente e não purgada. Bom domingo para todos nós que temos memória. 

As estátuas clássicas do mundo pagão eram valorizadas como obras de arte ideais no Renascimento. Porém, um detalhe perturbava os olhares modernos: a nudez. Para equalizar a admiração antiga com o pudor recente, criou-se o mecanismo de colocar um delicado detalhe vegetal sobre a área problemática. O opróbrio cristão fazia eco à vergonha dos nossos primeiros pais. Adão e Eva cobriram-se com a folha de figueira após o pecado (Gn 3,7). 

Qual o problema da solução decorosa? Feita de gesso, em geral, sobre um mármore amarelado ou mais escurecido pelo tempo, ela cobria destacando. O olhar fica fixado no elemento hipnotizador da folha alva. A pequena peça funciona como a peruca que o indivíduo careca coloca: ficamos focados no acessório. Perucas e folhas de figueira gritam onde se pretendia silêncio. 

O governo polonês entrou no mesmo caminho. Ao impor lei que pune quem falar da participação polonesa no holocausto, traz um destaque ao antissemitismo daquele país. O ódio contra judeus existe em muitas nações e não é um privilégio alemão. Todos sabem que a máquina de extermínio foi pensada pelo governo nazista, mas o preconceito era generalizado e os atos de violência contaram com o silêncio criminoso ou o apoio entusiasmado de pessoas da França, da Hungria, da Rússia e também da Polônia. A máquina de morte alemã jamais teria conseguido seu grau trágico de eficácia se tivesse contado com populações cúmplices da vida humana e não aliadas da pulsão de morte. 

Houve muitos casos de poloneses heroicos que arriscaram suas vidas escondendo judeus ou adotando crianças de famílias eliminadas. A violência hitlerista também tomou a vida de muitos poloneses. A construção de Auschwitz não nasceu de ordens de Varsóvia, porém se originou de comandos em Berlim. Ninguém duvida disso. Infelizmente, ao lado de resistentes pela vida, atos de ataque a populações judaicas também foram feitos por poloneses. O Holocausto tem sempre essa dupla face: ele criou heróis (que estão homenageados no jardim dos justos em Jerusalém) e deu azo a canalhas que, amparados pelo exército alemão, puderam expressar seu antigo e histórico racismo. Entre o herói e o canalha, existe uma outra categoria, talvez a mais numerosa, o cúmplice silencioso, que nada fez para ajudar e também não tomou parte direta nas mortes. A maioria calada é sempre a face tranquila do mal em todas as épocas. Como diz antiga oração penitencial católica, “peca-se por pensamentos e palavras, atos e omissões”. O extermínio dos judeus da Europa contou com as quatro categorias de fazer o mal. 

Memória não pode ser apagada pela lei. O dispositivo jurídico que criminaliza quem lembrar a óbvia e comprovada participação de civis de toda a Europa na matança é uma lei inútil, como a folha de figueira ou a peruca. Ao puxar o curto cobertor da memória para o peito desnudo, descobriu-se o pé gelado e antissemita. Talvez o mais grave não seja o horror do passado. O pior é que a lei revela a permanência daquele sentimento contra os judeus. 

Diante da memória do horror, o silêncio, mesmo imposto pela legislação, é o caminho mais equivocado. A Polônia sofreu muito na Segunda Guerra, como a Rússia e outros países. A melhor maneira de homenagear as muitas vítimas do nazismo (judeus, católicos, ciganos, homossexuais, comunistas, testemunhas de Jeová, negros, etc.) é expor que o ovo da serpente está lá, e que a memória é uma maneira de evitar o nascimento da ninhada viperina. A História é o remédio contra o nazismo. É preciso afirmar a memória crítica de tudo que ocorreu naqueles anos trágicos. Se todos os poloneses estudarem como milhões de alemães conseguiram apoiar o projeto genocida e como isso forneceu o guarda-chuva sob o qual outros povos puderam canalizar sua tradição de violência, teríamos mais esperança de registrar o nazismo como um equívoco pretérito. Se o genocídio de judeus na Segunda Guerra fosse uma empresa, a gerência seria alemã e sócios e funcionários teriam múltiplas nacionalidades, inclusive polaca. É o reconhecimento de que há um fio que vai do conceito russo de pogrom até o caso Dreyfus na França; da falsificação da polícia czarista da obra Os Protocolos dos Sábios de Sião até sua tradução nos EUA sob os auspícios do industrial Henry Ford; da recusa getulista em acolher muito mais gente que fugia do horror; do asilo que Perón concedia a criminosos de guerra até a placidez alpina dos banqueiros suíços que acolheram milhões em depósitos de famílias judaicas e silenciaram sobre os fundos por décadas. O holocausto é um fato internacional e traz à tona não apenas um projeto alemão, mas um ódio coletivo, irracional e criminoso. O Holocausto é europeu, o antissemitismo é mundial. 

“Nunca mais” é um bom propósito para estudos sobre o ódio. As leis não podem sufocar a memória. Nem em países de ditaduras absolutas como a URSS, o silêncio sobre a história conseguiu ser total. Em tempos de internet e contatos amplos, a lei polonesa só traz à tona que Hitler foi vencido, o antissemitismo, não. 

Lamento muito a iniciativa do governo de Varsóvia. Como nas estátuas renascentistas, estamos com os olhos fixos na vergonha que desejam esconder. O povo polonês sobreviveu a duas das mais brutais ditaduras da história, a nazista e a soviética. Torço para que sobrevivam ao nacionalismo atual do país. Como no Gênesis, a vergonha só chega após o erro. A nova lei escancara o embaraço e revela uma culpa latente e não purgada. Bom domingo para todos nós que temos memória. 

As estátuas clássicas do mundo pagão eram valorizadas como obras de arte ideais no Renascimento. Porém, um detalhe perturbava os olhares modernos: a nudez. Para equalizar a admiração antiga com o pudor recente, criou-se o mecanismo de colocar um delicado detalhe vegetal sobre a área problemática. O opróbrio cristão fazia eco à vergonha dos nossos primeiros pais. Adão e Eva cobriram-se com a folha de figueira após o pecado (Gn 3,7). 

Qual o problema da solução decorosa? Feita de gesso, em geral, sobre um mármore amarelado ou mais escurecido pelo tempo, ela cobria destacando. O olhar fica fixado no elemento hipnotizador da folha alva. A pequena peça funciona como a peruca que o indivíduo careca coloca: ficamos focados no acessório. Perucas e folhas de figueira gritam onde se pretendia silêncio. 

O governo polonês entrou no mesmo caminho. Ao impor lei que pune quem falar da participação polonesa no holocausto, traz um destaque ao antissemitismo daquele país. O ódio contra judeus existe em muitas nações e não é um privilégio alemão. Todos sabem que a máquina de extermínio foi pensada pelo governo nazista, mas o preconceito era generalizado e os atos de violência contaram com o silêncio criminoso ou o apoio entusiasmado de pessoas da França, da Hungria, da Rússia e também da Polônia. A máquina de morte alemã jamais teria conseguido seu grau trágico de eficácia se tivesse contado com populações cúmplices da vida humana e não aliadas da pulsão de morte. 

Houve muitos casos de poloneses heroicos que arriscaram suas vidas escondendo judeus ou adotando crianças de famílias eliminadas. A violência hitlerista também tomou a vida de muitos poloneses. A construção de Auschwitz não nasceu de ordens de Varsóvia, porém se originou de comandos em Berlim. Ninguém duvida disso. Infelizmente, ao lado de resistentes pela vida, atos de ataque a populações judaicas também foram feitos por poloneses. O Holocausto tem sempre essa dupla face: ele criou heróis (que estão homenageados no jardim dos justos em Jerusalém) e deu azo a canalhas que, amparados pelo exército alemão, puderam expressar seu antigo e histórico racismo. Entre o herói e o canalha, existe uma outra categoria, talvez a mais numerosa, o cúmplice silencioso, que nada fez para ajudar e também não tomou parte direta nas mortes. A maioria calada é sempre a face tranquila do mal em todas as épocas. Como diz antiga oração penitencial católica, “peca-se por pensamentos e palavras, atos e omissões”. O extermínio dos judeus da Europa contou com as quatro categorias de fazer o mal. 

Memória não pode ser apagada pela lei. O dispositivo jurídico que criminaliza quem lembrar a óbvia e comprovada participação de civis de toda a Europa na matança é uma lei inútil, como a folha de figueira ou a peruca. Ao puxar o curto cobertor da memória para o peito desnudo, descobriu-se o pé gelado e antissemita. Talvez o mais grave não seja o horror do passado. O pior é que a lei revela a permanência daquele sentimento contra os judeus. 

Diante da memória do horror, o silêncio, mesmo imposto pela legislação, é o caminho mais equivocado. A Polônia sofreu muito na Segunda Guerra, como a Rússia e outros países. A melhor maneira de homenagear as muitas vítimas do nazismo (judeus, católicos, ciganos, homossexuais, comunistas, testemunhas de Jeová, negros, etc.) é expor que o ovo da serpente está lá, e que a memória é uma maneira de evitar o nascimento da ninhada viperina. A História é o remédio contra o nazismo. É preciso afirmar a memória crítica de tudo que ocorreu naqueles anos trágicos. Se todos os poloneses estudarem como milhões de alemães conseguiram apoiar o projeto genocida e como isso forneceu o guarda-chuva sob o qual outros povos puderam canalizar sua tradição de violência, teríamos mais esperança de registrar o nazismo como um equívoco pretérito. Se o genocídio de judeus na Segunda Guerra fosse uma empresa, a gerência seria alemã e sócios e funcionários teriam múltiplas nacionalidades, inclusive polaca. É o reconhecimento de que há um fio que vai do conceito russo de pogrom até o caso Dreyfus na França; da falsificação da polícia czarista da obra Os Protocolos dos Sábios de Sião até sua tradução nos EUA sob os auspícios do industrial Henry Ford; da recusa getulista em acolher muito mais gente que fugia do horror; do asilo que Perón concedia a criminosos de guerra até a placidez alpina dos banqueiros suíços que acolheram milhões em depósitos de famílias judaicas e silenciaram sobre os fundos por décadas. O holocausto é um fato internacional e traz à tona não apenas um projeto alemão, mas um ódio coletivo, irracional e criminoso. O Holocausto é europeu, o antissemitismo é mundial. 

“Nunca mais” é um bom propósito para estudos sobre o ódio. As leis não podem sufocar a memória. Nem em países de ditaduras absolutas como a URSS, o silêncio sobre a história conseguiu ser total. Em tempos de internet e contatos amplos, a lei polonesa só traz à tona que Hitler foi vencido, o antissemitismo, não. 

Lamento muito a iniciativa do governo de Varsóvia. Como nas estátuas renascentistas, estamos com os olhos fixos na vergonha que desejam esconder. O povo polonês sobreviveu a duas das mais brutais ditaduras da história, a nazista e a soviética. Torço para que sobrevivam ao nacionalismo atual do país. Como no Gênesis, a vergonha só chega após o erro. A nova lei escancara o embaraço e revela uma culpa latente e não purgada. Bom domingo para todos nós que temos memória. 

As estátuas clássicas do mundo pagão eram valorizadas como obras de arte ideais no Renascimento. Porém, um detalhe perturbava os olhares modernos: a nudez. Para equalizar a admiração antiga com o pudor recente, criou-se o mecanismo de colocar um delicado detalhe vegetal sobre a área problemática. O opróbrio cristão fazia eco à vergonha dos nossos primeiros pais. Adão e Eva cobriram-se com a folha de figueira após o pecado (Gn 3,7). 

Qual o problema da solução decorosa? Feita de gesso, em geral, sobre um mármore amarelado ou mais escurecido pelo tempo, ela cobria destacando. O olhar fica fixado no elemento hipnotizador da folha alva. A pequena peça funciona como a peruca que o indivíduo careca coloca: ficamos focados no acessório. Perucas e folhas de figueira gritam onde se pretendia silêncio. 

O governo polonês entrou no mesmo caminho. Ao impor lei que pune quem falar da participação polonesa no holocausto, traz um destaque ao antissemitismo daquele país. O ódio contra judeus existe em muitas nações e não é um privilégio alemão. Todos sabem que a máquina de extermínio foi pensada pelo governo nazista, mas o preconceito era generalizado e os atos de violência contaram com o silêncio criminoso ou o apoio entusiasmado de pessoas da França, da Hungria, da Rússia e também da Polônia. A máquina de morte alemã jamais teria conseguido seu grau trágico de eficácia se tivesse contado com populações cúmplices da vida humana e não aliadas da pulsão de morte. 

Houve muitos casos de poloneses heroicos que arriscaram suas vidas escondendo judeus ou adotando crianças de famílias eliminadas. A violência hitlerista também tomou a vida de muitos poloneses. A construção de Auschwitz não nasceu de ordens de Varsóvia, porém se originou de comandos em Berlim. Ninguém duvida disso. Infelizmente, ao lado de resistentes pela vida, atos de ataque a populações judaicas também foram feitos por poloneses. O Holocausto tem sempre essa dupla face: ele criou heróis (que estão homenageados no jardim dos justos em Jerusalém) e deu azo a canalhas que, amparados pelo exército alemão, puderam expressar seu antigo e histórico racismo. Entre o herói e o canalha, existe uma outra categoria, talvez a mais numerosa, o cúmplice silencioso, que nada fez para ajudar e também não tomou parte direta nas mortes. A maioria calada é sempre a face tranquila do mal em todas as épocas. Como diz antiga oração penitencial católica, “peca-se por pensamentos e palavras, atos e omissões”. O extermínio dos judeus da Europa contou com as quatro categorias de fazer o mal. 

Memória não pode ser apagada pela lei. O dispositivo jurídico que criminaliza quem lembrar a óbvia e comprovada participação de civis de toda a Europa na matança é uma lei inútil, como a folha de figueira ou a peruca. Ao puxar o curto cobertor da memória para o peito desnudo, descobriu-se o pé gelado e antissemita. Talvez o mais grave não seja o horror do passado. O pior é que a lei revela a permanência daquele sentimento contra os judeus. 

Diante da memória do horror, o silêncio, mesmo imposto pela legislação, é o caminho mais equivocado. A Polônia sofreu muito na Segunda Guerra, como a Rússia e outros países. A melhor maneira de homenagear as muitas vítimas do nazismo (judeus, católicos, ciganos, homossexuais, comunistas, testemunhas de Jeová, negros, etc.) é expor que o ovo da serpente está lá, e que a memória é uma maneira de evitar o nascimento da ninhada viperina. A História é o remédio contra o nazismo. É preciso afirmar a memória crítica de tudo que ocorreu naqueles anos trágicos. Se todos os poloneses estudarem como milhões de alemães conseguiram apoiar o projeto genocida e como isso forneceu o guarda-chuva sob o qual outros povos puderam canalizar sua tradição de violência, teríamos mais esperança de registrar o nazismo como um equívoco pretérito. Se o genocídio de judeus na Segunda Guerra fosse uma empresa, a gerência seria alemã e sócios e funcionários teriam múltiplas nacionalidades, inclusive polaca. É o reconhecimento de que há um fio que vai do conceito russo de pogrom até o caso Dreyfus na França; da falsificação da polícia czarista da obra Os Protocolos dos Sábios de Sião até sua tradução nos EUA sob os auspícios do industrial Henry Ford; da recusa getulista em acolher muito mais gente que fugia do horror; do asilo que Perón concedia a criminosos de guerra até a placidez alpina dos banqueiros suíços que acolheram milhões em depósitos de famílias judaicas e silenciaram sobre os fundos por décadas. O holocausto é um fato internacional e traz à tona não apenas um projeto alemão, mas um ódio coletivo, irracional e criminoso. O Holocausto é europeu, o antissemitismo é mundial. 

“Nunca mais” é um bom propósito para estudos sobre o ódio. As leis não podem sufocar a memória. Nem em países de ditaduras absolutas como a URSS, o silêncio sobre a história conseguiu ser total. Em tempos de internet e contatos amplos, a lei polonesa só traz à tona que Hitler foi vencido, o antissemitismo, não. 

Lamento muito a iniciativa do governo de Varsóvia. Como nas estátuas renascentistas, estamos com os olhos fixos na vergonha que desejam esconder. O povo polonês sobreviveu a duas das mais brutais ditaduras da história, a nazista e a soviética. Torço para que sobrevivam ao nacionalismo atual do país. Como no Gênesis, a vergonha só chega após o erro. A nova lei escancara o embaraço e revela uma culpa latente e não purgada. Bom domingo para todos nós que temos memória. 

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