Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Carta ao pai


A paternidade é mais frequente como fato do que a vocação paterna

Por Leandro Karnal

Uma vez li um texto impressionante de Kafka: a Carta ao Pai (1919). O escritor tinha uma raiva muito forte do austero Hermann Kafka. A correspondência parece nunca ter sido enviada. Funcionou como um exercício psicanalítico para o autor de O Processo. Para ouvir a si próprio, Kafka escreveu. 

A decepção de Franz vinha de uma crise maior. O pai recebera, de forma fria, o anúncio do seu noivado. A biografia do literato era mediana e ele atribui muito das suas dores ao caráter crítico permanente do pai. Da sua cadeira, Hermann atacava tudo e se considerava superior a todos. Ninguém escapava do crivo demolidor das análises.

Como quase sempre, as dores de Franz são ligadas ao ser amoroso e ideal que ele gostaria de ter tido. A carta é um pedido de afeto, um reconhecimento da importância da figura do pai. O ódio contido no texto disfarça uma súplica. A amargura destilada em dezenas de páginas manuscritas grita por atenção e cura. Kafka reclama que o pai não o via como ele era. Contraditoriamente, o gênio de A Metamorfose busca um progenitor que não existia. 

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Nunca sei se amamos ou odiamos alguém real ou uma construção nossa. Também imagino que, se o pai do escritor tivesse criado um ambiente de amor intenso, se Kafka filho não fosse feio e tímido, se em vez de pertencer a um grupo alvo de preconceito (os judeus) ele fosse um checo católico e se tudo desabrochasse ante os pés de Franz... Se tudo tivesse ocorrido em leito de rosas, será que possuiríamos as obras brilhantes que temos? A dor gera mais rebentos do que a felicidade.  Hoje é Dia dos Pais no Brasil. Faz sete anos que o meu se foi. Já falei e escrevi que a morte de um pai ou de uma mãe tem o poder de nos deslocar no mundo. Envelhecemos quando ficamos órfãos. Se você tem 70 anos e seu pai 92, você é ainda filho, ainda tem uma geração à frente e se concebe, simbolicamente ao menos, como alguém que deve receber e não apenas dar. Ser filho é aceitar que alguém vai nos ofertar algo e isso se torna natural. O amor paterno é o amor da dádiva e da entrega, aquilo que Franz Kafka cobrava do seu pai.

Fui amado e isso é um privilégio. A paternidade é mais frequente como fato do que a vocação paterna. Ou seja, há mais gente gerando filhos no mundo do que pessoas com a real disposição de ser pai ou mãe. Como diria meu bom padre Vieira, há o semeador e há aquele que semeia. Há homens que geram filhos e há pais. Padre Vieira escreveria: há o que sai a semear e existe o semeador.  Para construir um modesto galpão, você precisa de uma ordem oficial e documentos variados. Para gerar um filho, basta ser fértil. Exigimos testes e cursos para um ser que se candidate a dirigir. Nada preexiste como ordem para a paternidade. Sempre fico espantado com o longo percurso que uma pessoa ou casal que deseje adotar uma criança tenha de se submeter. Devem ser provadas todas as condições materiais, a idoneidade, a disposição, o espaço adequado e todo o mais. 

É um procedimento correto, pois a responsabilidade é imensa e há gente mal-intencionada no mundo. Para quem manifesta o desejo de adotar, o rigor aparece logo. Para quem deseja um filho biológico, nenhum papel prévio, verificação de condições ou visita oficial. Não parece contraditório?

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O que este cronista está dizendo? Que o Estado deveria autorizar alguém a ter filhos? Não! Nunca! Apenas noto a disparidade enorme de critérios entre coisas parecidas: gerar e cuidar de crianças. E, se na sanha de tudo controlar, o Estado passasse a emitir alvarás aos recém-casados com autorizações? Creio que o desastre seria maior. Em parte, a humanidade conseguiu sobreviver porque resta às pessoas alguma autonomia. Ao menos até agora, temos evitado mais um prédio em Brasília: o Ministério da Paternidade a ser entregue a algum partido aliado. Claro, logo após existiria o Ministério da Maternidade e o Ministério da Adoção. Impossível? Aguardem leitores, aguardem, já tivemos um Ministério da Pesca. Tilápias já geraram empregos em alto escalão. A humanidade segue assim, bela e caótica. Pais amorosos e perfeitamente preparados para o desafio de uma vida inteira. Pais violentos e pais relapsos que, infelizmente, já não possuem filhos com o talento de Kafka. As dores da infância preenchendo consultórios terapêuticos e todos tecendo uma biografia que, com suas lacunas e espaços preenchidos, vai-se equilibrando.  Sempre me pareceu que a paternidade tivesse um dado um pouco mais racional do que a biológica maternidade. Talvez seja só uma construção, mas há algo distinto no ser que saiu das suas entranhas daquele que você viu, já pronto, fora de você. Interessante notar que o plano humano de uma família para Jesus era, segundo a tradição, ter uma mãe biológica e um pai adotivo. 

O mundo desfez parte da tradição da família com pai e mãe e dois filhos sentados à mesa do café da manhã. O IBGE mostra um avanço enorme de famílias dirigidas por apenas uma pessoa, bem como famílias de pais homoafetivos. Continuaremos tecendo nosso macramé curioso e variado da espécie humana. O Estado persistirá em suas tentativas de intervenção e, ao largo, prosseguiremos nessa aventura fascinante e desastrosa de constituir espaços de afetos. Que de bons pais brote felicidade e de maus pais, ao menos, obras literárias. Feliz Dia dos Pais! Bom domingo para todos!

Uma vez li um texto impressionante de Kafka: a Carta ao Pai (1919). O escritor tinha uma raiva muito forte do austero Hermann Kafka. A correspondência parece nunca ter sido enviada. Funcionou como um exercício psicanalítico para o autor de O Processo. Para ouvir a si próprio, Kafka escreveu. 

A decepção de Franz vinha de uma crise maior. O pai recebera, de forma fria, o anúncio do seu noivado. A biografia do literato era mediana e ele atribui muito das suas dores ao caráter crítico permanente do pai. Da sua cadeira, Hermann atacava tudo e se considerava superior a todos. Ninguém escapava do crivo demolidor das análises.

Como quase sempre, as dores de Franz são ligadas ao ser amoroso e ideal que ele gostaria de ter tido. A carta é um pedido de afeto, um reconhecimento da importância da figura do pai. O ódio contido no texto disfarça uma súplica. A amargura destilada em dezenas de páginas manuscritas grita por atenção e cura. Kafka reclama que o pai não o via como ele era. Contraditoriamente, o gênio de A Metamorfose busca um progenitor que não existia. 

Nunca sei se amamos ou odiamos alguém real ou uma construção nossa. Também imagino que, se o pai do escritor tivesse criado um ambiente de amor intenso, se Kafka filho não fosse feio e tímido, se em vez de pertencer a um grupo alvo de preconceito (os judeus) ele fosse um checo católico e se tudo desabrochasse ante os pés de Franz... Se tudo tivesse ocorrido em leito de rosas, será que possuiríamos as obras brilhantes que temos? A dor gera mais rebentos do que a felicidade.  Hoje é Dia dos Pais no Brasil. Faz sete anos que o meu se foi. Já falei e escrevi que a morte de um pai ou de uma mãe tem o poder de nos deslocar no mundo. Envelhecemos quando ficamos órfãos. Se você tem 70 anos e seu pai 92, você é ainda filho, ainda tem uma geração à frente e se concebe, simbolicamente ao menos, como alguém que deve receber e não apenas dar. Ser filho é aceitar que alguém vai nos ofertar algo e isso se torna natural. O amor paterno é o amor da dádiva e da entrega, aquilo que Franz Kafka cobrava do seu pai.

Fui amado e isso é um privilégio. A paternidade é mais frequente como fato do que a vocação paterna. Ou seja, há mais gente gerando filhos no mundo do que pessoas com a real disposição de ser pai ou mãe. Como diria meu bom padre Vieira, há o semeador e há aquele que semeia. Há homens que geram filhos e há pais. Padre Vieira escreveria: há o que sai a semear e existe o semeador.  Para construir um modesto galpão, você precisa de uma ordem oficial e documentos variados. Para gerar um filho, basta ser fértil. Exigimos testes e cursos para um ser que se candidate a dirigir. Nada preexiste como ordem para a paternidade. Sempre fico espantado com o longo percurso que uma pessoa ou casal que deseje adotar uma criança tenha de se submeter. Devem ser provadas todas as condições materiais, a idoneidade, a disposição, o espaço adequado e todo o mais. 

É um procedimento correto, pois a responsabilidade é imensa e há gente mal-intencionada no mundo. Para quem manifesta o desejo de adotar, o rigor aparece logo. Para quem deseja um filho biológico, nenhum papel prévio, verificação de condições ou visita oficial. Não parece contraditório?

O que este cronista está dizendo? Que o Estado deveria autorizar alguém a ter filhos? Não! Nunca! Apenas noto a disparidade enorme de critérios entre coisas parecidas: gerar e cuidar de crianças. E, se na sanha de tudo controlar, o Estado passasse a emitir alvarás aos recém-casados com autorizações? Creio que o desastre seria maior. Em parte, a humanidade conseguiu sobreviver porque resta às pessoas alguma autonomia. Ao menos até agora, temos evitado mais um prédio em Brasília: o Ministério da Paternidade a ser entregue a algum partido aliado. Claro, logo após existiria o Ministério da Maternidade e o Ministério da Adoção. Impossível? Aguardem leitores, aguardem, já tivemos um Ministério da Pesca. Tilápias já geraram empregos em alto escalão. A humanidade segue assim, bela e caótica. Pais amorosos e perfeitamente preparados para o desafio de uma vida inteira. Pais violentos e pais relapsos que, infelizmente, já não possuem filhos com o talento de Kafka. As dores da infância preenchendo consultórios terapêuticos e todos tecendo uma biografia que, com suas lacunas e espaços preenchidos, vai-se equilibrando.  Sempre me pareceu que a paternidade tivesse um dado um pouco mais racional do que a biológica maternidade. Talvez seja só uma construção, mas há algo distinto no ser que saiu das suas entranhas daquele que você viu, já pronto, fora de você. Interessante notar que o plano humano de uma família para Jesus era, segundo a tradição, ter uma mãe biológica e um pai adotivo. 

O mundo desfez parte da tradição da família com pai e mãe e dois filhos sentados à mesa do café da manhã. O IBGE mostra um avanço enorme de famílias dirigidas por apenas uma pessoa, bem como famílias de pais homoafetivos. Continuaremos tecendo nosso macramé curioso e variado da espécie humana. O Estado persistirá em suas tentativas de intervenção e, ao largo, prosseguiremos nessa aventura fascinante e desastrosa de constituir espaços de afetos. Que de bons pais brote felicidade e de maus pais, ao menos, obras literárias. Feliz Dia dos Pais! Bom domingo para todos!

Uma vez li um texto impressionante de Kafka: a Carta ao Pai (1919). O escritor tinha uma raiva muito forte do austero Hermann Kafka. A correspondência parece nunca ter sido enviada. Funcionou como um exercício psicanalítico para o autor de O Processo. Para ouvir a si próprio, Kafka escreveu. 

A decepção de Franz vinha de uma crise maior. O pai recebera, de forma fria, o anúncio do seu noivado. A biografia do literato era mediana e ele atribui muito das suas dores ao caráter crítico permanente do pai. Da sua cadeira, Hermann atacava tudo e se considerava superior a todos. Ninguém escapava do crivo demolidor das análises.

Como quase sempre, as dores de Franz são ligadas ao ser amoroso e ideal que ele gostaria de ter tido. A carta é um pedido de afeto, um reconhecimento da importância da figura do pai. O ódio contido no texto disfarça uma súplica. A amargura destilada em dezenas de páginas manuscritas grita por atenção e cura. Kafka reclama que o pai não o via como ele era. Contraditoriamente, o gênio de A Metamorfose busca um progenitor que não existia. 

Nunca sei se amamos ou odiamos alguém real ou uma construção nossa. Também imagino que, se o pai do escritor tivesse criado um ambiente de amor intenso, se Kafka filho não fosse feio e tímido, se em vez de pertencer a um grupo alvo de preconceito (os judeus) ele fosse um checo católico e se tudo desabrochasse ante os pés de Franz... Se tudo tivesse ocorrido em leito de rosas, será que possuiríamos as obras brilhantes que temos? A dor gera mais rebentos do que a felicidade.  Hoje é Dia dos Pais no Brasil. Faz sete anos que o meu se foi. Já falei e escrevi que a morte de um pai ou de uma mãe tem o poder de nos deslocar no mundo. Envelhecemos quando ficamos órfãos. Se você tem 70 anos e seu pai 92, você é ainda filho, ainda tem uma geração à frente e se concebe, simbolicamente ao menos, como alguém que deve receber e não apenas dar. Ser filho é aceitar que alguém vai nos ofertar algo e isso se torna natural. O amor paterno é o amor da dádiva e da entrega, aquilo que Franz Kafka cobrava do seu pai.

Fui amado e isso é um privilégio. A paternidade é mais frequente como fato do que a vocação paterna. Ou seja, há mais gente gerando filhos no mundo do que pessoas com a real disposição de ser pai ou mãe. Como diria meu bom padre Vieira, há o semeador e há aquele que semeia. Há homens que geram filhos e há pais. Padre Vieira escreveria: há o que sai a semear e existe o semeador.  Para construir um modesto galpão, você precisa de uma ordem oficial e documentos variados. Para gerar um filho, basta ser fértil. Exigimos testes e cursos para um ser que se candidate a dirigir. Nada preexiste como ordem para a paternidade. Sempre fico espantado com o longo percurso que uma pessoa ou casal que deseje adotar uma criança tenha de se submeter. Devem ser provadas todas as condições materiais, a idoneidade, a disposição, o espaço adequado e todo o mais. 

É um procedimento correto, pois a responsabilidade é imensa e há gente mal-intencionada no mundo. Para quem manifesta o desejo de adotar, o rigor aparece logo. Para quem deseja um filho biológico, nenhum papel prévio, verificação de condições ou visita oficial. Não parece contraditório?

O que este cronista está dizendo? Que o Estado deveria autorizar alguém a ter filhos? Não! Nunca! Apenas noto a disparidade enorme de critérios entre coisas parecidas: gerar e cuidar de crianças. E, se na sanha de tudo controlar, o Estado passasse a emitir alvarás aos recém-casados com autorizações? Creio que o desastre seria maior. Em parte, a humanidade conseguiu sobreviver porque resta às pessoas alguma autonomia. Ao menos até agora, temos evitado mais um prédio em Brasília: o Ministério da Paternidade a ser entregue a algum partido aliado. Claro, logo após existiria o Ministério da Maternidade e o Ministério da Adoção. Impossível? Aguardem leitores, aguardem, já tivemos um Ministério da Pesca. Tilápias já geraram empregos em alto escalão. A humanidade segue assim, bela e caótica. Pais amorosos e perfeitamente preparados para o desafio de uma vida inteira. Pais violentos e pais relapsos que, infelizmente, já não possuem filhos com o talento de Kafka. As dores da infância preenchendo consultórios terapêuticos e todos tecendo uma biografia que, com suas lacunas e espaços preenchidos, vai-se equilibrando.  Sempre me pareceu que a paternidade tivesse um dado um pouco mais racional do que a biológica maternidade. Talvez seja só uma construção, mas há algo distinto no ser que saiu das suas entranhas daquele que você viu, já pronto, fora de você. Interessante notar que o plano humano de uma família para Jesus era, segundo a tradição, ter uma mãe biológica e um pai adotivo. 

O mundo desfez parte da tradição da família com pai e mãe e dois filhos sentados à mesa do café da manhã. O IBGE mostra um avanço enorme de famílias dirigidas por apenas uma pessoa, bem como famílias de pais homoafetivos. Continuaremos tecendo nosso macramé curioso e variado da espécie humana. O Estado persistirá em suas tentativas de intervenção e, ao largo, prosseguiremos nessa aventura fascinante e desastrosa de constituir espaços de afetos. Que de bons pais brote felicidade e de maus pais, ao menos, obras literárias. Feliz Dia dos Pais! Bom domingo para todos!

Uma vez li um texto impressionante de Kafka: a Carta ao Pai (1919). O escritor tinha uma raiva muito forte do austero Hermann Kafka. A correspondência parece nunca ter sido enviada. Funcionou como um exercício psicanalítico para o autor de O Processo. Para ouvir a si próprio, Kafka escreveu. 

A decepção de Franz vinha de uma crise maior. O pai recebera, de forma fria, o anúncio do seu noivado. A biografia do literato era mediana e ele atribui muito das suas dores ao caráter crítico permanente do pai. Da sua cadeira, Hermann atacava tudo e se considerava superior a todos. Ninguém escapava do crivo demolidor das análises.

Como quase sempre, as dores de Franz são ligadas ao ser amoroso e ideal que ele gostaria de ter tido. A carta é um pedido de afeto, um reconhecimento da importância da figura do pai. O ódio contido no texto disfarça uma súplica. A amargura destilada em dezenas de páginas manuscritas grita por atenção e cura. Kafka reclama que o pai não o via como ele era. Contraditoriamente, o gênio de A Metamorfose busca um progenitor que não existia. 

Nunca sei se amamos ou odiamos alguém real ou uma construção nossa. Também imagino que, se o pai do escritor tivesse criado um ambiente de amor intenso, se Kafka filho não fosse feio e tímido, se em vez de pertencer a um grupo alvo de preconceito (os judeus) ele fosse um checo católico e se tudo desabrochasse ante os pés de Franz... Se tudo tivesse ocorrido em leito de rosas, será que possuiríamos as obras brilhantes que temos? A dor gera mais rebentos do que a felicidade.  Hoje é Dia dos Pais no Brasil. Faz sete anos que o meu se foi. Já falei e escrevi que a morte de um pai ou de uma mãe tem o poder de nos deslocar no mundo. Envelhecemos quando ficamos órfãos. Se você tem 70 anos e seu pai 92, você é ainda filho, ainda tem uma geração à frente e se concebe, simbolicamente ao menos, como alguém que deve receber e não apenas dar. Ser filho é aceitar que alguém vai nos ofertar algo e isso se torna natural. O amor paterno é o amor da dádiva e da entrega, aquilo que Franz Kafka cobrava do seu pai.

Fui amado e isso é um privilégio. A paternidade é mais frequente como fato do que a vocação paterna. Ou seja, há mais gente gerando filhos no mundo do que pessoas com a real disposição de ser pai ou mãe. Como diria meu bom padre Vieira, há o semeador e há aquele que semeia. Há homens que geram filhos e há pais. Padre Vieira escreveria: há o que sai a semear e existe o semeador.  Para construir um modesto galpão, você precisa de uma ordem oficial e documentos variados. Para gerar um filho, basta ser fértil. Exigimos testes e cursos para um ser que se candidate a dirigir. Nada preexiste como ordem para a paternidade. Sempre fico espantado com o longo percurso que uma pessoa ou casal que deseje adotar uma criança tenha de se submeter. Devem ser provadas todas as condições materiais, a idoneidade, a disposição, o espaço adequado e todo o mais. 

É um procedimento correto, pois a responsabilidade é imensa e há gente mal-intencionada no mundo. Para quem manifesta o desejo de adotar, o rigor aparece logo. Para quem deseja um filho biológico, nenhum papel prévio, verificação de condições ou visita oficial. Não parece contraditório?

O que este cronista está dizendo? Que o Estado deveria autorizar alguém a ter filhos? Não! Nunca! Apenas noto a disparidade enorme de critérios entre coisas parecidas: gerar e cuidar de crianças. E, se na sanha de tudo controlar, o Estado passasse a emitir alvarás aos recém-casados com autorizações? Creio que o desastre seria maior. Em parte, a humanidade conseguiu sobreviver porque resta às pessoas alguma autonomia. Ao menos até agora, temos evitado mais um prédio em Brasília: o Ministério da Paternidade a ser entregue a algum partido aliado. Claro, logo após existiria o Ministério da Maternidade e o Ministério da Adoção. Impossível? Aguardem leitores, aguardem, já tivemos um Ministério da Pesca. Tilápias já geraram empregos em alto escalão. A humanidade segue assim, bela e caótica. Pais amorosos e perfeitamente preparados para o desafio de uma vida inteira. Pais violentos e pais relapsos que, infelizmente, já não possuem filhos com o talento de Kafka. As dores da infância preenchendo consultórios terapêuticos e todos tecendo uma biografia que, com suas lacunas e espaços preenchidos, vai-se equilibrando.  Sempre me pareceu que a paternidade tivesse um dado um pouco mais racional do que a biológica maternidade. Talvez seja só uma construção, mas há algo distinto no ser que saiu das suas entranhas daquele que você viu, já pronto, fora de você. Interessante notar que o plano humano de uma família para Jesus era, segundo a tradição, ter uma mãe biológica e um pai adotivo. 

O mundo desfez parte da tradição da família com pai e mãe e dois filhos sentados à mesa do café da manhã. O IBGE mostra um avanço enorme de famílias dirigidas por apenas uma pessoa, bem como famílias de pais homoafetivos. Continuaremos tecendo nosso macramé curioso e variado da espécie humana. O Estado persistirá em suas tentativas de intervenção e, ao largo, prosseguiremos nessa aventura fascinante e desastrosa de constituir espaços de afetos. Que de bons pais brote felicidade e de maus pais, ao menos, obras literárias. Feliz Dia dos Pais! Bom domingo para todos!

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