'Contos Inacabados' de Tolkien mostram como sua obra póstuma ilumina seus principais livros


Histórias esboçadas pelo autor de 'O Senhor dos Anéis' receberam edição do filho, Christopher Tolkien, e oferecem panorama da Terra-média para leitores que desejam se aprofundar na mitologia

Por André Cáceres

Embora o escritor britânico J.R.R. Tolkien tenha testemunhado o próprio sucesso, especialmente após a publicação de O Senhor dos Anéis, entre 1954 e 1955, sua obra póstuma cresceu ao ponto de hoje ser tão relevante quanto o que ele lançou em vida. Com exceção de textos acadêmicos, poéticos e tradutórios esparsos, Tolkien publicou seus livros ao longo de três décadas. Abrangendo 41 anos, a obra póstuma não apenas é mais longeva, mas também é uma fascinante porta de entrada para o universo da Terra-média. Isso é o que demonstram os Contos Inacabados de Númenor e da Terra-média, o mais recente lançamento do autor publicado pela editora HarperCollins, parte do projeto de reedição de Tolkien no Brasil.

Ian McKellen é o mago Gandalf nas adaptações de 'O Senhor dos Anéis'; um dos 'Contos Inacabados' é a visão de Gandalf sobre a aventura 'O Hobbit' Foto: Warner Bros

Ao mesmo tempo metódico e desorganizado, o autor escreveu e reescreveu os mesmos textos por toda a vida, e não chegou a concluir grande parte deles. Como o título entrega, Contos Inacabados traz alguns desses trabalhos inconclusos, sob a cuidadosa edição de seu filho, Christopher Tolkien, que se encarregou de conferir o maior grau de polimento possível a escritos de épocas muito distintas. A Queda de Gondolin, por exemplo, começou a ser redigido em 1917, enquanto a História de Galadriel e Celeborn foi seu último trabalho, em 1973.

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Tolkien tinha uma visão totalizante de sua obra, e nenhum livro é tão abrangente em relação ao universo fictício idealizado por ele quanto esses Contos Inacabados. Também nenhum outro escrito denota tão claramente o caráter de “work in progress” de sua literatura como esse. A Terra-média teve três eras de acordo com seus textos, e as histórias aí reunidas perpassam todas, dando vislumbres ao leitor a respeito das três eras com níveis diferentes de acabamento.

A terceira era é a época que se encerra com a aventura O Hobbit e o épico O Senhor dos Anéis, narrando a luta de Frodo, Gandalf, Aragorn e companhia para salvar a Terra-média da corrupção de Sauron. A história é bem conhecida e o texto, definitivo. A primeira era compreende toda a extensão de O Silmarillion, compêndio de lendas lançado postumamente em 1977 que narra o exílio dos elfos da terra divina de Valinor e sua luta contra o maligno Morgoth. Menos conhecido — e menos polido — que seus principais sucessos, mas ainda assim um texto relativamente bem estabelecido.

Já a segunda era, que será tema de uma série atualmente em produção pela Amazon, é a menos conhecida e a que conta com mais lacunas. Ela narra os eventos entre a queda de Morgoth e a ascensão de seu discípulo, Sauron. Nos Contos Inacabados, essa é a parte menos definitiva dos escritos — e, talvez por isso, a mais instigante, por obrigar o leitor a imaginar e preencher as lacunas.

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A História de Galadriel e Celeborn, por exemplo, já começa com um mea culpa de Christopher: “Não há nenhuma parte da história da Terra-média mais repleta de problemas que a história de Galadriel e Celeborn, e deve-se admitir que há graves inconsistências”. A elfa Galadriel, afinal, é uma das poucas personagens que atravessam as três eras, tendo papel relevante em O Senhor dos Anéis e sendo a mais nuanceada personagem feminina de Tolkien. É, no entanto, a história de Númenor que mais traz elementos interessantes ao leitor que busca desvendar mais sobre esse universo.

O Silmarillion e, por consequência, a primeira era, se encerra com uma intervenção divina em favor dos elfos contra Morgoth, resultando em uma grande inundação que submerge o continente de Beleriand, a oeste da Terra-média, onde se passa a maior parte das histórias antigas. Desse desastre, surge a ilha de Númenor, para onde se dirigem alguns humanos que lá estabelecem o mais grandioso reino já registrado, na segunda era. Em Aldarion e Erendis, Tolkien desenvolve um de seus temas mais recorrentes: como a ambição traz consigo a semente do mal.

Aldarion é o herdeiro do rei da ilha, casado com a bela Erendis, mas verdadeiramente apaixonado pelo mar e suas aventuras. Ele passa o conto todo — pelo menos a parte que de fato foi escrita, já que o final pretendido da trama é narrado resumidamente por Christopher a partir de esboços do pai — sendo julgado por suas escolhas, até que o leitor descobre que ele estava lutando contra o avanço inicial de Sauron no leste da Terra-média. Se suas motivações acabam sendo justificadas, sua incapacidade de resistir ao chamado do mar vai desaguar na ganância que tomaria os reis posteriores de Númenor, que se tornam imperialistas navais (como a Inglaterra de Tolkien), assaltando as praias da Terra-média e dominando outros povos, traindo a confiança dos elfos e até renegando os deuses, maculando para sempre a raça humana, que nunca mais seria tão bela e longeva quanto nos dias antigos.

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Tolkien, cristão convicto, sempre transmite uma ideia de decadência constante da humanidade, e a segunda era de seu universo é fundamental para compreender a degeneração das lendas repletas das presenças divinas de O Silmarillion para um mundo mais naturalista e quase desassistido pelos deuses de O Senhor dos Anéis — algo que corrobora essa visão de mundo presente em todo o seu trabalho.

Um dos contos mais curiosos para os leitores menos versados nos meandros da Terra-média é A Demanda de Erebor. Nesse texto, supostamente escrito por Frodo, o mago Gandalf narra os eventos que o levaram a recrutar Bilbo Bolseiro e onze anões para roubar o tesouro do dragão Smaug, dando ao leitor uma perspectiva diferente e inusitada sobre as aventuras narradas em O Hobbit.

Cirion e Eorl mostra como os reinos de Gondor e Rohan se tornaram amigos em meio à adversidade, e explica bastante a respeito da aliança entre essas terras em O Senhor dos Anéis. O épico em três volumes, aliás, é revista por outro ponto de vista em O Desastre dos Campos de Lis, que mostra como o Um Anel se perdeu, dando origem aos eventos de O Senhor dos Anéis, e A Caçada ao Anel, que traz detalhes que não estão nos livros originalmente publicados.

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Se os Contos Inacabados provam o papel da obra póstuma de Tolkien de lançar luz sobre seus principais escritos, o livro não se basta por si: lê-lo antes dos principais livros seria infrutífero. O próprio editor e filho de Tolkien admite já na introdução: “Muito do que existe neste livro não será considerado gratificante por leitores de O Senhor dos Anéis que, afirmando que a estrutura histórica da Terra-média é um meio e não um fim, é o modo da narrativa e não o seu propósito, pouco desejam continuar explorando pela exploração em si”. Apesar disso, o livro é um bálsamo para aqueles que, encantados pelas lendas de Tolkien, desejam se aprofundar na mais impressionante mitologia criada no século 20.

Embora o escritor britânico J.R.R. Tolkien tenha testemunhado o próprio sucesso, especialmente após a publicação de O Senhor dos Anéis, entre 1954 e 1955, sua obra póstuma cresceu ao ponto de hoje ser tão relevante quanto o que ele lançou em vida. Com exceção de textos acadêmicos, poéticos e tradutórios esparsos, Tolkien publicou seus livros ao longo de três décadas. Abrangendo 41 anos, a obra póstuma não apenas é mais longeva, mas também é uma fascinante porta de entrada para o universo da Terra-média. Isso é o que demonstram os Contos Inacabados de Númenor e da Terra-média, o mais recente lançamento do autor publicado pela editora HarperCollins, parte do projeto de reedição de Tolkien no Brasil.

Ian McKellen é o mago Gandalf nas adaptações de 'O Senhor dos Anéis'; um dos 'Contos Inacabados' é a visão de Gandalf sobre a aventura 'O Hobbit' Foto: Warner Bros

Ao mesmo tempo metódico e desorganizado, o autor escreveu e reescreveu os mesmos textos por toda a vida, e não chegou a concluir grande parte deles. Como o título entrega, Contos Inacabados traz alguns desses trabalhos inconclusos, sob a cuidadosa edição de seu filho, Christopher Tolkien, que se encarregou de conferir o maior grau de polimento possível a escritos de épocas muito distintas. A Queda de Gondolin, por exemplo, começou a ser redigido em 1917, enquanto a História de Galadriel e Celeborn foi seu último trabalho, em 1973.

Tolkien tinha uma visão totalizante de sua obra, e nenhum livro é tão abrangente em relação ao universo fictício idealizado por ele quanto esses Contos Inacabados. Também nenhum outro escrito denota tão claramente o caráter de “work in progress” de sua literatura como esse. A Terra-média teve três eras de acordo com seus textos, e as histórias aí reunidas perpassam todas, dando vislumbres ao leitor a respeito das três eras com níveis diferentes de acabamento.

A terceira era é a época que se encerra com a aventura O Hobbit e o épico O Senhor dos Anéis, narrando a luta de Frodo, Gandalf, Aragorn e companhia para salvar a Terra-média da corrupção de Sauron. A história é bem conhecida e o texto, definitivo. A primeira era compreende toda a extensão de O Silmarillion, compêndio de lendas lançado postumamente em 1977 que narra o exílio dos elfos da terra divina de Valinor e sua luta contra o maligno Morgoth. Menos conhecido — e menos polido — que seus principais sucessos, mas ainda assim um texto relativamente bem estabelecido.

Já a segunda era, que será tema de uma série atualmente em produção pela Amazon, é a menos conhecida e a que conta com mais lacunas. Ela narra os eventos entre a queda de Morgoth e a ascensão de seu discípulo, Sauron. Nos Contos Inacabados, essa é a parte menos definitiva dos escritos — e, talvez por isso, a mais instigante, por obrigar o leitor a imaginar e preencher as lacunas.

A História de Galadriel e Celeborn, por exemplo, já começa com um mea culpa de Christopher: “Não há nenhuma parte da história da Terra-média mais repleta de problemas que a história de Galadriel e Celeborn, e deve-se admitir que há graves inconsistências”. A elfa Galadriel, afinal, é uma das poucas personagens que atravessam as três eras, tendo papel relevante em O Senhor dos Anéis e sendo a mais nuanceada personagem feminina de Tolkien. É, no entanto, a história de Númenor que mais traz elementos interessantes ao leitor que busca desvendar mais sobre esse universo.

O Silmarillion e, por consequência, a primeira era, se encerra com uma intervenção divina em favor dos elfos contra Morgoth, resultando em uma grande inundação que submerge o continente de Beleriand, a oeste da Terra-média, onde se passa a maior parte das histórias antigas. Desse desastre, surge a ilha de Númenor, para onde se dirigem alguns humanos que lá estabelecem o mais grandioso reino já registrado, na segunda era. Em Aldarion e Erendis, Tolkien desenvolve um de seus temas mais recorrentes: como a ambição traz consigo a semente do mal.

Aldarion é o herdeiro do rei da ilha, casado com a bela Erendis, mas verdadeiramente apaixonado pelo mar e suas aventuras. Ele passa o conto todo — pelo menos a parte que de fato foi escrita, já que o final pretendido da trama é narrado resumidamente por Christopher a partir de esboços do pai — sendo julgado por suas escolhas, até que o leitor descobre que ele estava lutando contra o avanço inicial de Sauron no leste da Terra-média. Se suas motivações acabam sendo justificadas, sua incapacidade de resistir ao chamado do mar vai desaguar na ganância que tomaria os reis posteriores de Númenor, que se tornam imperialistas navais (como a Inglaterra de Tolkien), assaltando as praias da Terra-média e dominando outros povos, traindo a confiança dos elfos e até renegando os deuses, maculando para sempre a raça humana, que nunca mais seria tão bela e longeva quanto nos dias antigos.

Tolkien, cristão convicto, sempre transmite uma ideia de decadência constante da humanidade, e a segunda era de seu universo é fundamental para compreender a degeneração das lendas repletas das presenças divinas de O Silmarillion para um mundo mais naturalista e quase desassistido pelos deuses de O Senhor dos Anéis — algo que corrobora essa visão de mundo presente em todo o seu trabalho.

Um dos contos mais curiosos para os leitores menos versados nos meandros da Terra-média é A Demanda de Erebor. Nesse texto, supostamente escrito por Frodo, o mago Gandalf narra os eventos que o levaram a recrutar Bilbo Bolseiro e onze anões para roubar o tesouro do dragão Smaug, dando ao leitor uma perspectiva diferente e inusitada sobre as aventuras narradas em O Hobbit.

Cirion e Eorl mostra como os reinos de Gondor e Rohan se tornaram amigos em meio à adversidade, e explica bastante a respeito da aliança entre essas terras em O Senhor dos Anéis. O épico em três volumes, aliás, é revista por outro ponto de vista em O Desastre dos Campos de Lis, que mostra como o Um Anel se perdeu, dando origem aos eventos de O Senhor dos Anéis, e A Caçada ao Anel, que traz detalhes que não estão nos livros originalmente publicados.

Se os Contos Inacabados provam o papel da obra póstuma de Tolkien de lançar luz sobre seus principais escritos, o livro não se basta por si: lê-lo antes dos principais livros seria infrutífero. O próprio editor e filho de Tolkien admite já na introdução: “Muito do que existe neste livro não será considerado gratificante por leitores de O Senhor dos Anéis que, afirmando que a estrutura histórica da Terra-média é um meio e não um fim, é o modo da narrativa e não o seu propósito, pouco desejam continuar explorando pela exploração em si”. Apesar disso, o livro é um bálsamo para aqueles que, encantados pelas lendas de Tolkien, desejam se aprofundar na mais impressionante mitologia criada no século 20.

Embora o escritor britânico J.R.R. Tolkien tenha testemunhado o próprio sucesso, especialmente após a publicação de O Senhor dos Anéis, entre 1954 e 1955, sua obra póstuma cresceu ao ponto de hoje ser tão relevante quanto o que ele lançou em vida. Com exceção de textos acadêmicos, poéticos e tradutórios esparsos, Tolkien publicou seus livros ao longo de três décadas. Abrangendo 41 anos, a obra póstuma não apenas é mais longeva, mas também é uma fascinante porta de entrada para o universo da Terra-média. Isso é o que demonstram os Contos Inacabados de Númenor e da Terra-média, o mais recente lançamento do autor publicado pela editora HarperCollins, parte do projeto de reedição de Tolkien no Brasil.

Ian McKellen é o mago Gandalf nas adaptações de 'O Senhor dos Anéis'; um dos 'Contos Inacabados' é a visão de Gandalf sobre a aventura 'O Hobbit' Foto: Warner Bros

Ao mesmo tempo metódico e desorganizado, o autor escreveu e reescreveu os mesmos textos por toda a vida, e não chegou a concluir grande parte deles. Como o título entrega, Contos Inacabados traz alguns desses trabalhos inconclusos, sob a cuidadosa edição de seu filho, Christopher Tolkien, que se encarregou de conferir o maior grau de polimento possível a escritos de épocas muito distintas. A Queda de Gondolin, por exemplo, começou a ser redigido em 1917, enquanto a História de Galadriel e Celeborn foi seu último trabalho, em 1973.

Tolkien tinha uma visão totalizante de sua obra, e nenhum livro é tão abrangente em relação ao universo fictício idealizado por ele quanto esses Contos Inacabados. Também nenhum outro escrito denota tão claramente o caráter de “work in progress” de sua literatura como esse. A Terra-média teve três eras de acordo com seus textos, e as histórias aí reunidas perpassam todas, dando vislumbres ao leitor a respeito das três eras com níveis diferentes de acabamento.

A terceira era é a época que se encerra com a aventura O Hobbit e o épico O Senhor dos Anéis, narrando a luta de Frodo, Gandalf, Aragorn e companhia para salvar a Terra-média da corrupção de Sauron. A história é bem conhecida e o texto, definitivo. A primeira era compreende toda a extensão de O Silmarillion, compêndio de lendas lançado postumamente em 1977 que narra o exílio dos elfos da terra divina de Valinor e sua luta contra o maligno Morgoth. Menos conhecido — e menos polido — que seus principais sucessos, mas ainda assim um texto relativamente bem estabelecido.

Já a segunda era, que será tema de uma série atualmente em produção pela Amazon, é a menos conhecida e a que conta com mais lacunas. Ela narra os eventos entre a queda de Morgoth e a ascensão de seu discípulo, Sauron. Nos Contos Inacabados, essa é a parte menos definitiva dos escritos — e, talvez por isso, a mais instigante, por obrigar o leitor a imaginar e preencher as lacunas.

A História de Galadriel e Celeborn, por exemplo, já começa com um mea culpa de Christopher: “Não há nenhuma parte da história da Terra-média mais repleta de problemas que a história de Galadriel e Celeborn, e deve-se admitir que há graves inconsistências”. A elfa Galadriel, afinal, é uma das poucas personagens que atravessam as três eras, tendo papel relevante em O Senhor dos Anéis e sendo a mais nuanceada personagem feminina de Tolkien. É, no entanto, a história de Númenor que mais traz elementos interessantes ao leitor que busca desvendar mais sobre esse universo.

O Silmarillion e, por consequência, a primeira era, se encerra com uma intervenção divina em favor dos elfos contra Morgoth, resultando em uma grande inundação que submerge o continente de Beleriand, a oeste da Terra-média, onde se passa a maior parte das histórias antigas. Desse desastre, surge a ilha de Númenor, para onde se dirigem alguns humanos que lá estabelecem o mais grandioso reino já registrado, na segunda era. Em Aldarion e Erendis, Tolkien desenvolve um de seus temas mais recorrentes: como a ambição traz consigo a semente do mal.

Aldarion é o herdeiro do rei da ilha, casado com a bela Erendis, mas verdadeiramente apaixonado pelo mar e suas aventuras. Ele passa o conto todo — pelo menos a parte que de fato foi escrita, já que o final pretendido da trama é narrado resumidamente por Christopher a partir de esboços do pai — sendo julgado por suas escolhas, até que o leitor descobre que ele estava lutando contra o avanço inicial de Sauron no leste da Terra-média. Se suas motivações acabam sendo justificadas, sua incapacidade de resistir ao chamado do mar vai desaguar na ganância que tomaria os reis posteriores de Númenor, que se tornam imperialistas navais (como a Inglaterra de Tolkien), assaltando as praias da Terra-média e dominando outros povos, traindo a confiança dos elfos e até renegando os deuses, maculando para sempre a raça humana, que nunca mais seria tão bela e longeva quanto nos dias antigos.

Tolkien, cristão convicto, sempre transmite uma ideia de decadência constante da humanidade, e a segunda era de seu universo é fundamental para compreender a degeneração das lendas repletas das presenças divinas de O Silmarillion para um mundo mais naturalista e quase desassistido pelos deuses de O Senhor dos Anéis — algo que corrobora essa visão de mundo presente em todo o seu trabalho.

Um dos contos mais curiosos para os leitores menos versados nos meandros da Terra-média é A Demanda de Erebor. Nesse texto, supostamente escrito por Frodo, o mago Gandalf narra os eventos que o levaram a recrutar Bilbo Bolseiro e onze anões para roubar o tesouro do dragão Smaug, dando ao leitor uma perspectiva diferente e inusitada sobre as aventuras narradas em O Hobbit.

Cirion e Eorl mostra como os reinos de Gondor e Rohan se tornaram amigos em meio à adversidade, e explica bastante a respeito da aliança entre essas terras em O Senhor dos Anéis. O épico em três volumes, aliás, é revista por outro ponto de vista em O Desastre dos Campos de Lis, que mostra como o Um Anel se perdeu, dando origem aos eventos de O Senhor dos Anéis, e A Caçada ao Anel, que traz detalhes que não estão nos livros originalmente publicados.

Se os Contos Inacabados provam o papel da obra póstuma de Tolkien de lançar luz sobre seus principais escritos, o livro não se basta por si: lê-lo antes dos principais livros seria infrutífero. O próprio editor e filho de Tolkien admite já na introdução: “Muito do que existe neste livro não será considerado gratificante por leitores de O Senhor dos Anéis que, afirmando que a estrutura histórica da Terra-média é um meio e não um fim, é o modo da narrativa e não o seu propósito, pouco desejam continuar explorando pela exploração em si”. Apesar disso, o livro é um bálsamo para aqueles que, encantados pelas lendas de Tolkien, desejam se aprofundar na mais impressionante mitologia criada no século 20.

Embora o escritor britânico J.R.R. Tolkien tenha testemunhado o próprio sucesso, especialmente após a publicação de O Senhor dos Anéis, entre 1954 e 1955, sua obra póstuma cresceu ao ponto de hoje ser tão relevante quanto o que ele lançou em vida. Com exceção de textos acadêmicos, poéticos e tradutórios esparsos, Tolkien publicou seus livros ao longo de três décadas. Abrangendo 41 anos, a obra póstuma não apenas é mais longeva, mas também é uma fascinante porta de entrada para o universo da Terra-média. Isso é o que demonstram os Contos Inacabados de Númenor e da Terra-média, o mais recente lançamento do autor publicado pela editora HarperCollins, parte do projeto de reedição de Tolkien no Brasil.

Ian McKellen é o mago Gandalf nas adaptações de 'O Senhor dos Anéis'; um dos 'Contos Inacabados' é a visão de Gandalf sobre a aventura 'O Hobbit' Foto: Warner Bros

Ao mesmo tempo metódico e desorganizado, o autor escreveu e reescreveu os mesmos textos por toda a vida, e não chegou a concluir grande parte deles. Como o título entrega, Contos Inacabados traz alguns desses trabalhos inconclusos, sob a cuidadosa edição de seu filho, Christopher Tolkien, que se encarregou de conferir o maior grau de polimento possível a escritos de épocas muito distintas. A Queda de Gondolin, por exemplo, começou a ser redigido em 1917, enquanto a História de Galadriel e Celeborn foi seu último trabalho, em 1973.

Tolkien tinha uma visão totalizante de sua obra, e nenhum livro é tão abrangente em relação ao universo fictício idealizado por ele quanto esses Contos Inacabados. Também nenhum outro escrito denota tão claramente o caráter de “work in progress” de sua literatura como esse. A Terra-média teve três eras de acordo com seus textos, e as histórias aí reunidas perpassam todas, dando vislumbres ao leitor a respeito das três eras com níveis diferentes de acabamento.

A terceira era é a época que se encerra com a aventura O Hobbit e o épico O Senhor dos Anéis, narrando a luta de Frodo, Gandalf, Aragorn e companhia para salvar a Terra-média da corrupção de Sauron. A história é bem conhecida e o texto, definitivo. A primeira era compreende toda a extensão de O Silmarillion, compêndio de lendas lançado postumamente em 1977 que narra o exílio dos elfos da terra divina de Valinor e sua luta contra o maligno Morgoth. Menos conhecido — e menos polido — que seus principais sucessos, mas ainda assim um texto relativamente bem estabelecido.

Já a segunda era, que será tema de uma série atualmente em produção pela Amazon, é a menos conhecida e a que conta com mais lacunas. Ela narra os eventos entre a queda de Morgoth e a ascensão de seu discípulo, Sauron. Nos Contos Inacabados, essa é a parte menos definitiva dos escritos — e, talvez por isso, a mais instigante, por obrigar o leitor a imaginar e preencher as lacunas.

A História de Galadriel e Celeborn, por exemplo, já começa com um mea culpa de Christopher: “Não há nenhuma parte da história da Terra-média mais repleta de problemas que a história de Galadriel e Celeborn, e deve-se admitir que há graves inconsistências”. A elfa Galadriel, afinal, é uma das poucas personagens que atravessam as três eras, tendo papel relevante em O Senhor dos Anéis e sendo a mais nuanceada personagem feminina de Tolkien. É, no entanto, a história de Númenor que mais traz elementos interessantes ao leitor que busca desvendar mais sobre esse universo.

O Silmarillion e, por consequência, a primeira era, se encerra com uma intervenção divina em favor dos elfos contra Morgoth, resultando em uma grande inundação que submerge o continente de Beleriand, a oeste da Terra-média, onde se passa a maior parte das histórias antigas. Desse desastre, surge a ilha de Númenor, para onde se dirigem alguns humanos que lá estabelecem o mais grandioso reino já registrado, na segunda era. Em Aldarion e Erendis, Tolkien desenvolve um de seus temas mais recorrentes: como a ambição traz consigo a semente do mal.

Aldarion é o herdeiro do rei da ilha, casado com a bela Erendis, mas verdadeiramente apaixonado pelo mar e suas aventuras. Ele passa o conto todo — pelo menos a parte que de fato foi escrita, já que o final pretendido da trama é narrado resumidamente por Christopher a partir de esboços do pai — sendo julgado por suas escolhas, até que o leitor descobre que ele estava lutando contra o avanço inicial de Sauron no leste da Terra-média. Se suas motivações acabam sendo justificadas, sua incapacidade de resistir ao chamado do mar vai desaguar na ganância que tomaria os reis posteriores de Númenor, que se tornam imperialistas navais (como a Inglaterra de Tolkien), assaltando as praias da Terra-média e dominando outros povos, traindo a confiança dos elfos e até renegando os deuses, maculando para sempre a raça humana, que nunca mais seria tão bela e longeva quanto nos dias antigos.

Tolkien, cristão convicto, sempre transmite uma ideia de decadência constante da humanidade, e a segunda era de seu universo é fundamental para compreender a degeneração das lendas repletas das presenças divinas de O Silmarillion para um mundo mais naturalista e quase desassistido pelos deuses de O Senhor dos Anéis — algo que corrobora essa visão de mundo presente em todo o seu trabalho.

Um dos contos mais curiosos para os leitores menos versados nos meandros da Terra-média é A Demanda de Erebor. Nesse texto, supostamente escrito por Frodo, o mago Gandalf narra os eventos que o levaram a recrutar Bilbo Bolseiro e onze anões para roubar o tesouro do dragão Smaug, dando ao leitor uma perspectiva diferente e inusitada sobre as aventuras narradas em O Hobbit.

Cirion e Eorl mostra como os reinos de Gondor e Rohan se tornaram amigos em meio à adversidade, e explica bastante a respeito da aliança entre essas terras em O Senhor dos Anéis. O épico em três volumes, aliás, é revista por outro ponto de vista em O Desastre dos Campos de Lis, que mostra como o Um Anel se perdeu, dando origem aos eventos de O Senhor dos Anéis, e A Caçada ao Anel, que traz detalhes que não estão nos livros originalmente publicados.

Se os Contos Inacabados provam o papel da obra póstuma de Tolkien de lançar luz sobre seus principais escritos, o livro não se basta por si: lê-lo antes dos principais livros seria infrutífero. O próprio editor e filho de Tolkien admite já na introdução: “Muito do que existe neste livro não será considerado gratificante por leitores de O Senhor dos Anéis que, afirmando que a estrutura histórica da Terra-média é um meio e não um fim, é o modo da narrativa e não o seu propósito, pouco desejam continuar explorando pela exploração em si”. Apesar disso, o livro é um bálsamo para aqueles que, encantados pelas lendas de Tolkien, desejam se aprofundar na mais impressionante mitologia criada no século 20.

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