Édouard Louis volta à infância miserável para investigar as origens da violência


Nascido em 1992, gay, numa pequena vila operária da França, o escritor lança, no Brasil, seu romance de estreia - o autobiográfico 'O Fim de Eddy' - e diz: 'Escrever o livro foi uma forma de entender a violência e não culpar quem foi violento comigo'

Por Maria Fernanda Rodrigues

A voz do outro lado da linha é serena e não parece ser da mesma pessoa que abre seu romance de estreia, assumidamente autobiográfico, dizendo que de sua infância não guarda nenhuma lembrança feliz e que, embora tenha experimentado um ou outro sentimento de alegria, “o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra em seu sistema desapareça”.

A partir daí, o escritor Édouard Louis, um dos novos – e mais badalados – nomes da literatura francesa, leva o leitor para dentro da sua casa miserável, para o centro da vila operária falida no norte da França onde, até perto dos 15 anos, suportou as piores violências e humilhações.

Em 'O Fim de Eddy', Édouard Louis escreve sobre a violência sofrida na infância por ser gay Foto: Sabine Mirlesse/The Washington Post
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Hoje, aos 25, não muito tempo depois de descobrir que ele poderia reinventar sua vida, Édouard fala sobre seu livro O Fim de Eddy, lançado agora no País pelo selo Tusquets, da Planeta, traduzido para 20 idiomas e com mais de 300 mil exemplares vendidos só em seu país.

É a história de um garoto que nasceu gay numa sociedade tradicionalmente machista, alcoólatra e homofóbica; que esperava, num corredor escondido da escola, a surra que levava, invariavelmente, todos os dias, de dois alunos. Do menino que pagou pelo desgosto que causou à família e que tentou a todo custo ser Eddy – e falhou. É, sobretudo, a história de uma criança desamparada. 

Édouard Louis poderia nunca ter deixado de ser o Eddy de sua certidão de nascimento e estar vivendo entre os cerca de mil habitantes de Hallencourt. Mas num certo momento surgiu a possibilidade de fazer o Ensino Médio longe de casa por seu desempenho nas aula de teatro. Foi assim que ele fugiu do inferno em que vivia – do ambiente de pobreza, violência e desamor – e mudou de nome.

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+++ Flip 2018 anuncia programação

Formado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, o escritor falou com o Estado por telefone, de Paris, onde vive.

Quando percebeu que precisava escrever esse livro e por que o fez? Nasci nessa vila operária que é descrita no livro. Na verdade, uma vila não operária já que, nos anos 1990, a fábrica fechou. Cresci nesse ambiente de pessoas sem emprego, de extrema pobreza. Quando comecei a ler livros e me mudei para Paris para estudar, não encontrei esse ambiente da minha infância, com a pobreza, exclusão, violência e dominação social que eu experimentei, nos livros. Comecei a escrever porque eu quis incluir essa população como uma espécie de vingança contra a literatura. Quis colocar na literatura a realidade que ela excluía.

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O livro que lemos é o livro que você tinha em mente no início? Não. O projeto sofreu alteração porque fui compreendendo coisas enquanto escrevia. Por exemplo, quando eu era criança, eu culpava o meu pai e a minha mãe por serem violentos, homofóbicos e racistas nesta vila em que cresci, onde mais de 60% votou pela extrema direita. Eu era uma criança gay, meus pais tinham vergonha de mim. Eu os odiava. Escrevendo, entendi que toda essa violência vinha de uma história coletiva e de uma realidade maior: da forma como a sociedade exclui as pessoas e cria violência. Escrever o livro foi uma forma de entender a violência e não culpar quem foi violento comigo. Por isso o livro ficou muito diferente do que eu esperava.

Você conseguiu compreender a raiz da violência a que foi submetido. Foi capaz de perdoar? Quanto mais eu perdoo as pessoas da minha infância, mais eu culpo o sistema e com mais raiva eu fico desse sistema que criou essa situação de pobreza e dominação. Mas perdoar não quer dizer que foi tudo maravilhoso, que todos eram legais.

Você falou na extrema direita. Como podemos relacionar essa história e esses personagens com a nova onda conservadora? Tudo tem a ver com a invisibilidade. Na minha infância, toda a minha família votava na Frente Nacional. Minha mãe dizia que Marine Le Pen era a única que via a gente. Podemos pensar que a responsabilidade é da esquerda, que parou de falar de pessoas como a minha mãe. Com o livro, eu quis dar visibilidade a essas pessoas. 

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É preciso coragem para escrever um livro desses. Como foi reviver os episódios e retratar algo tão íntimo? Foi muito difícil. Escrevi sobre a humilhação que sofri, como ser cuspido todos os dias por dois meninos porque eu era gay. Mas penso que quanto mais difícil, mais interessante é. A fronteira entre o que é político e íntimo é social e histórica. Quanto mais a história parecia íntima, mais achava que devia torná-la política. E porque é difícil dizer, é que é importante dizer. 

O que a literatura significa para você e o que ela já proporcionou até agora? É complexo. Ao mesmo tempo em que a literatura me envergonha por tudo o que eu já disse, ela me deu ferramentas para reconstruir a minha vida, me reinventar. No meu caso, quando eu era criança, não sabia que havia tantos livros e filmes gays e que havia pessoas lutando por mim, pelos direitos e segurança dos gays, para que eles pudessem ser felizes e amarem. Eu achava que eu era doente. Escrevi com esse sentimento misto. A literatura me deu uma arma, e eu usei essa arma para lutar contra ela e fazer um novo tipo de literatura.

+++ Prêmio Jabuti não terá curador, depois de demissão de Luiz Armando Bagolin

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Teatro foi sua porta de entrada num novo mundo. Ou ser gay foi sua salvação? Este é um livro sobre um encontro impossível de um garoto com sua família. Eu fiz tudo o que pude para pertencer. Tentei ser masculino, como meus pais queriam. Mas eu falhei. Falhei em ser masculino, falhei em ser durão. E a certa altura eu não tinha opção a não ser fugir. Este é um livro sobre uma criança que não queria fugir, eu não queria fugir. Meu sonho era ser o que as pessoas chamavam de normal. E porque eu falhei, precisei encontrar um jeito de escapar de lá. O teatro surgiu pra mim quando eu tinha 2 anos, quando entendi que deveria desempenhar um papel para sobreviver. E o teatro me tirou de lá. 

Qual é o seu sonho hoje? Meu sonho é que as pessoas usem o meu livro como uma arma contra a homofobia, a dominação social e a pobreza. E que o usem como uma ferramenta para se reinventarem. Tendemos a enfrentar as situações, mas, às vezes, fugir é um ato mais corajoso já que há lutas que vamos perder sempre. 

Depois de conquistar tudo o que conquistou, há algo que você diria para o menino que foi, para um garoto ou garota vivendo o mesmo que você viveu? Fuja. Vá para o mais longe que você puder. O livro mostra o tempo que gastei tentando me encaixar e ser o que os outros chamavam de normal. E eu sofri. Quando eu digo ‘eu’, estou dizendo um ‘eu’ coletivo. Quando conto minha história, levanto questões que dizem respeito aos outros. Minha vida é um pretexto para falar sobre coisas maiores. O livro se chama O Fim de Eddy e posso dizer que Eddy é a criança que eu nunca consegui ser. Esse nome representa o sonho dos meus pais, de masculinidade, de terem um menino durão em casa.

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O corredor em que você esperava para apanhar dava acesso à biblioteca. E se tivesse buscado refúgio lá? Se tivesse descoberto a literatura antes, teria sido mais fácil? Era impossível que eu descobrisse a literatura antes. Ela estava tão longe da nossa realidade. Não havia livros na nossa família, meus pais deixaram a escola aos 14, como meus avós, todos trabalharam na fábrica. 

Como o livro foi recebido? Minha mãe reagiu muito mal porque não queria que eu tivesse dito que éramos pobres. Outras pessoas reagiram mal porque toda essa violência era tão banal que as pessoas nem a percebiam mais – e não se reconheceram. Meu pai reagiu bem, e voltamos a nos falar depois de um silêncio de 5 anos. Mas a maioria das pessoas foi hostil na cidade porque eles têm vergonha. Minha mãe é pobre, a mãe dela era pobre. No começo, essa violência da pobreza parece normal. Você não chama isso de violência. Você chama isso de vida. Com o livro, as pessoas foram confrontadas com essa realidade. 

TRECHO

“Da minha infância não guardo nenhuma lembrança feliz. Com isso não quero dizer que eu nunca tenha, naqueles anos, experimentado um sentimento de felicidade ou alegria. Mas o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra no seu sistema desapareça.

No corredor aparecem dois garotos, o primeiro deles grande de cabelos ruivos, e o outro, pequeno com os ombros caídos. O grande ruivo escarrou: ‘Toma essa na sua cara’.

O escarro desceu lentamente pelo meu rosto, amarelo e espesso. (...) O catarro escorre do meu olho até os meus lábios, quase entrando na minha boca. Não ouso limpar. (...)

Eu não imaginava que eles fariam isso. Não que a violência me fosse estranha, longe disso. (...) Eu via meu pai, quando nossos gatos davam cria, enfiar os gatinhos recém-nascidos numa sacola de supermercado e bater a sacola contra uma mureta de concreto até ela ficar cheia de sangue e os miados cessarem.”

O FIM DE EDDY Autor: Édouard Louis  Tradução: Francesca Angiolillo Editora:Tusquets(176 págs.,R$ 39,90)

A voz do outro lado da linha é serena e não parece ser da mesma pessoa que abre seu romance de estreia, assumidamente autobiográfico, dizendo que de sua infância não guarda nenhuma lembrança feliz e que, embora tenha experimentado um ou outro sentimento de alegria, “o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra em seu sistema desapareça”.

A partir daí, o escritor Édouard Louis, um dos novos – e mais badalados – nomes da literatura francesa, leva o leitor para dentro da sua casa miserável, para o centro da vila operária falida no norte da França onde, até perto dos 15 anos, suportou as piores violências e humilhações.

Em 'O Fim de Eddy', Édouard Louis escreve sobre a violência sofrida na infância por ser gay Foto: Sabine Mirlesse/The Washington Post

Hoje, aos 25, não muito tempo depois de descobrir que ele poderia reinventar sua vida, Édouard fala sobre seu livro O Fim de Eddy, lançado agora no País pelo selo Tusquets, da Planeta, traduzido para 20 idiomas e com mais de 300 mil exemplares vendidos só em seu país.

É a história de um garoto que nasceu gay numa sociedade tradicionalmente machista, alcoólatra e homofóbica; que esperava, num corredor escondido da escola, a surra que levava, invariavelmente, todos os dias, de dois alunos. Do menino que pagou pelo desgosto que causou à família e que tentou a todo custo ser Eddy – e falhou. É, sobretudo, a história de uma criança desamparada. 

Édouard Louis poderia nunca ter deixado de ser o Eddy de sua certidão de nascimento e estar vivendo entre os cerca de mil habitantes de Hallencourt. Mas num certo momento surgiu a possibilidade de fazer o Ensino Médio longe de casa por seu desempenho nas aula de teatro. Foi assim que ele fugiu do inferno em que vivia – do ambiente de pobreza, violência e desamor – e mudou de nome.

+++ Flip 2018 anuncia programação

Formado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, o escritor falou com o Estado por telefone, de Paris, onde vive.

Quando percebeu que precisava escrever esse livro e por que o fez? Nasci nessa vila operária que é descrita no livro. Na verdade, uma vila não operária já que, nos anos 1990, a fábrica fechou. Cresci nesse ambiente de pessoas sem emprego, de extrema pobreza. Quando comecei a ler livros e me mudei para Paris para estudar, não encontrei esse ambiente da minha infância, com a pobreza, exclusão, violência e dominação social que eu experimentei, nos livros. Comecei a escrever porque eu quis incluir essa população como uma espécie de vingança contra a literatura. Quis colocar na literatura a realidade que ela excluía.

O livro que lemos é o livro que você tinha em mente no início? Não. O projeto sofreu alteração porque fui compreendendo coisas enquanto escrevia. Por exemplo, quando eu era criança, eu culpava o meu pai e a minha mãe por serem violentos, homofóbicos e racistas nesta vila em que cresci, onde mais de 60% votou pela extrema direita. Eu era uma criança gay, meus pais tinham vergonha de mim. Eu os odiava. Escrevendo, entendi que toda essa violência vinha de uma história coletiva e de uma realidade maior: da forma como a sociedade exclui as pessoas e cria violência. Escrever o livro foi uma forma de entender a violência e não culpar quem foi violento comigo. Por isso o livro ficou muito diferente do que eu esperava.

Você conseguiu compreender a raiz da violência a que foi submetido. Foi capaz de perdoar? Quanto mais eu perdoo as pessoas da minha infância, mais eu culpo o sistema e com mais raiva eu fico desse sistema que criou essa situação de pobreza e dominação. Mas perdoar não quer dizer que foi tudo maravilhoso, que todos eram legais.

Você falou na extrema direita. Como podemos relacionar essa história e esses personagens com a nova onda conservadora? Tudo tem a ver com a invisibilidade. Na minha infância, toda a minha família votava na Frente Nacional. Minha mãe dizia que Marine Le Pen era a única que via a gente. Podemos pensar que a responsabilidade é da esquerda, que parou de falar de pessoas como a minha mãe. Com o livro, eu quis dar visibilidade a essas pessoas. 

É preciso coragem para escrever um livro desses. Como foi reviver os episódios e retratar algo tão íntimo? Foi muito difícil. Escrevi sobre a humilhação que sofri, como ser cuspido todos os dias por dois meninos porque eu era gay. Mas penso que quanto mais difícil, mais interessante é. A fronteira entre o que é político e íntimo é social e histórica. Quanto mais a história parecia íntima, mais achava que devia torná-la política. E porque é difícil dizer, é que é importante dizer. 

O que a literatura significa para você e o que ela já proporcionou até agora? É complexo. Ao mesmo tempo em que a literatura me envergonha por tudo o que eu já disse, ela me deu ferramentas para reconstruir a minha vida, me reinventar. No meu caso, quando eu era criança, não sabia que havia tantos livros e filmes gays e que havia pessoas lutando por mim, pelos direitos e segurança dos gays, para que eles pudessem ser felizes e amarem. Eu achava que eu era doente. Escrevi com esse sentimento misto. A literatura me deu uma arma, e eu usei essa arma para lutar contra ela e fazer um novo tipo de literatura.

+++ Prêmio Jabuti não terá curador, depois de demissão de Luiz Armando Bagolin

Teatro foi sua porta de entrada num novo mundo. Ou ser gay foi sua salvação? Este é um livro sobre um encontro impossível de um garoto com sua família. Eu fiz tudo o que pude para pertencer. Tentei ser masculino, como meus pais queriam. Mas eu falhei. Falhei em ser masculino, falhei em ser durão. E a certa altura eu não tinha opção a não ser fugir. Este é um livro sobre uma criança que não queria fugir, eu não queria fugir. Meu sonho era ser o que as pessoas chamavam de normal. E porque eu falhei, precisei encontrar um jeito de escapar de lá. O teatro surgiu pra mim quando eu tinha 2 anos, quando entendi que deveria desempenhar um papel para sobreviver. E o teatro me tirou de lá. 

Qual é o seu sonho hoje? Meu sonho é que as pessoas usem o meu livro como uma arma contra a homofobia, a dominação social e a pobreza. E que o usem como uma ferramenta para se reinventarem. Tendemos a enfrentar as situações, mas, às vezes, fugir é um ato mais corajoso já que há lutas que vamos perder sempre. 

Depois de conquistar tudo o que conquistou, há algo que você diria para o menino que foi, para um garoto ou garota vivendo o mesmo que você viveu? Fuja. Vá para o mais longe que você puder. O livro mostra o tempo que gastei tentando me encaixar e ser o que os outros chamavam de normal. E eu sofri. Quando eu digo ‘eu’, estou dizendo um ‘eu’ coletivo. Quando conto minha história, levanto questões que dizem respeito aos outros. Minha vida é um pretexto para falar sobre coisas maiores. O livro se chama O Fim de Eddy e posso dizer que Eddy é a criança que eu nunca consegui ser. Esse nome representa o sonho dos meus pais, de masculinidade, de terem um menino durão em casa.

O corredor em que você esperava para apanhar dava acesso à biblioteca. E se tivesse buscado refúgio lá? Se tivesse descoberto a literatura antes, teria sido mais fácil? Era impossível que eu descobrisse a literatura antes. Ela estava tão longe da nossa realidade. Não havia livros na nossa família, meus pais deixaram a escola aos 14, como meus avós, todos trabalharam na fábrica. 

Como o livro foi recebido? Minha mãe reagiu muito mal porque não queria que eu tivesse dito que éramos pobres. Outras pessoas reagiram mal porque toda essa violência era tão banal que as pessoas nem a percebiam mais – e não se reconheceram. Meu pai reagiu bem, e voltamos a nos falar depois de um silêncio de 5 anos. Mas a maioria das pessoas foi hostil na cidade porque eles têm vergonha. Minha mãe é pobre, a mãe dela era pobre. No começo, essa violência da pobreza parece normal. Você não chama isso de violência. Você chama isso de vida. Com o livro, as pessoas foram confrontadas com essa realidade. 

TRECHO

“Da minha infância não guardo nenhuma lembrança feliz. Com isso não quero dizer que eu nunca tenha, naqueles anos, experimentado um sentimento de felicidade ou alegria. Mas o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra no seu sistema desapareça.

No corredor aparecem dois garotos, o primeiro deles grande de cabelos ruivos, e o outro, pequeno com os ombros caídos. O grande ruivo escarrou: ‘Toma essa na sua cara’.

O escarro desceu lentamente pelo meu rosto, amarelo e espesso. (...) O catarro escorre do meu olho até os meus lábios, quase entrando na minha boca. Não ouso limpar. (...)

Eu não imaginava que eles fariam isso. Não que a violência me fosse estranha, longe disso. (...) Eu via meu pai, quando nossos gatos davam cria, enfiar os gatinhos recém-nascidos numa sacola de supermercado e bater a sacola contra uma mureta de concreto até ela ficar cheia de sangue e os miados cessarem.”

O FIM DE EDDY Autor: Édouard Louis  Tradução: Francesca Angiolillo Editora:Tusquets(176 págs.,R$ 39,90)

A voz do outro lado da linha é serena e não parece ser da mesma pessoa que abre seu romance de estreia, assumidamente autobiográfico, dizendo que de sua infância não guarda nenhuma lembrança feliz e que, embora tenha experimentado um ou outro sentimento de alegria, “o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra em seu sistema desapareça”.

A partir daí, o escritor Édouard Louis, um dos novos – e mais badalados – nomes da literatura francesa, leva o leitor para dentro da sua casa miserável, para o centro da vila operária falida no norte da França onde, até perto dos 15 anos, suportou as piores violências e humilhações.

Em 'O Fim de Eddy', Édouard Louis escreve sobre a violência sofrida na infância por ser gay Foto: Sabine Mirlesse/The Washington Post

Hoje, aos 25, não muito tempo depois de descobrir que ele poderia reinventar sua vida, Édouard fala sobre seu livro O Fim de Eddy, lançado agora no País pelo selo Tusquets, da Planeta, traduzido para 20 idiomas e com mais de 300 mil exemplares vendidos só em seu país.

É a história de um garoto que nasceu gay numa sociedade tradicionalmente machista, alcoólatra e homofóbica; que esperava, num corredor escondido da escola, a surra que levava, invariavelmente, todos os dias, de dois alunos. Do menino que pagou pelo desgosto que causou à família e que tentou a todo custo ser Eddy – e falhou. É, sobretudo, a história de uma criança desamparada. 

Édouard Louis poderia nunca ter deixado de ser o Eddy de sua certidão de nascimento e estar vivendo entre os cerca de mil habitantes de Hallencourt. Mas num certo momento surgiu a possibilidade de fazer o Ensino Médio longe de casa por seu desempenho nas aula de teatro. Foi assim que ele fugiu do inferno em que vivia – do ambiente de pobreza, violência e desamor – e mudou de nome.

+++ Flip 2018 anuncia programação

Formado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, o escritor falou com o Estado por telefone, de Paris, onde vive.

Quando percebeu que precisava escrever esse livro e por que o fez? Nasci nessa vila operária que é descrita no livro. Na verdade, uma vila não operária já que, nos anos 1990, a fábrica fechou. Cresci nesse ambiente de pessoas sem emprego, de extrema pobreza. Quando comecei a ler livros e me mudei para Paris para estudar, não encontrei esse ambiente da minha infância, com a pobreza, exclusão, violência e dominação social que eu experimentei, nos livros. Comecei a escrever porque eu quis incluir essa população como uma espécie de vingança contra a literatura. Quis colocar na literatura a realidade que ela excluía.

O livro que lemos é o livro que você tinha em mente no início? Não. O projeto sofreu alteração porque fui compreendendo coisas enquanto escrevia. Por exemplo, quando eu era criança, eu culpava o meu pai e a minha mãe por serem violentos, homofóbicos e racistas nesta vila em que cresci, onde mais de 60% votou pela extrema direita. Eu era uma criança gay, meus pais tinham vergonha de mim. Eu os odiava. Escrevendo, entendi que toda essa violência vinha de uma história coletiva e de uma realidade maior: da forma como a sociedade exclui as pessoas e cria violência. Escrever o livro foi uma forma de entender a violência e não culpar quem foi violento comigo. Por isso o livro ficou muito diferente do que eu esperava.

Você conseguiu compreender a raiz da violência a que foi submetido. Foi capaz de perdoar? Quanto mais eu perdoo as pessoas da minha infância, mais eu culpo o sistema e com mais raiva eu fico desse sistema que criou essa situação de pobreza e dominação. Mas perdoar não quer dizer que foi tudo maravilhoso, que todos eram legais.

Você falou na extrema direita. Como podemos relacionar essa história e esses personagens com a nova onda conservadora? Tudo tem a ver com a invisibilidade. Na minha infância, toda a minha família votava na Frente Nacional. Minha mãe dizia que Marine Le Pen era a única que via a gente. Podemos pensar que a responsabilidade é da esquerda, que parou de falar de pessoas como a minha mãe. Com o livro, eu quis dar visibilidade a essas pessoas. 

É preciso coragem para escrever um livro desses. Como foi reviver os episódios e retratar algo tão íntimo? Foi muito difícil. Escrevi sobre a humilhação que sofri, como ser cuspido todos os dias por dois meninos porque eu era gay. Mas penso que quanto mais difícil, mais interessante é. A fronteira entre o que é político e íntimo é social e histórica. Quanto mais a história parecia íntima, mais achava que devia torná-la política. E porque é difícil dizer, é que é importante dizer. 

O que a literatura significa para você e o que ela já proporcionou até agora? É complexo. Ao mesmo tempo em que a literatura me envergonha por tudo o que eu já disse, ela me deu ferramentas para reconstruir a minha vida, me reinventar. No meu caso, quando eu era criança, não sabia que havia tantos livros e filmes gays e que havia pessoas lutando por mim, pelos direitos e segurança dos gays, para que eles pudessem ser felizes e amarem. Eu achava que eu era doente. Escrevi com esse sentimento misto. A literatura me deu uma arma, e eu usei essa arma para lutar contra ela e fazer um novo tipo de literatura.

+++ Prêmio Jabuti não terá curador, depois de demissão de Luiz Armando Bagolin

Teatro foi sua porta de entrada num novo mundo. Ou ser gay foi sua salvação? Este é um livro sobre um encontro impossível de um garoto com sua família. Eu fiz tudo o que pude para pertencer. Tentei ser masculino, como meus pais queriam. Mas eu falhei. Falhei em ser masculino, falhei em ser durão. E a certa altura eu não tinha opção a não ser fugir. Este é um livro sobre uma criança que não queria fugir, eu não queria fugir. Meu sonho era ser o que as pessoas chamavam de normal. E porque eu falhei, precisei encontrar um jeito de escapar de lá. O teatro surgiu pra mim quando eu tinha 2 anos, quando entendi que deveria desempenhar um papel para sobreviver. E o teatro me tirou de lá. 

Qual é o seu sonho hoje? Meu sonho é que as pessoas usem o meu livro como uma arma contra a homofobia, a dominação social e a pobreza. E que o usem como uma ferramenta para se reinventarem. Tendemos a enfrentar as situações, mas, às vezes, fugir é um ato mais corajoso já que há lutas que vamos perder sempre. 

Depois de conquistar tudo o que conquistou, há algo que você diria para o menino que foi, para um garoto ou garota vivendo o mesmo que você viveu? Fuja. Vá para o mais longe que você puder. O livro mostra o tempo que gastei tentando me encaixar e ser o que os outros chamavam de normal. E eu sofri. Quando eu digo ‘eu’, estou dizendo um ‘eu’ coletivo. Quando conto minha história, levanto questões que dizem respeito aos outros. Minha vida é um pretexto para falar sobre coisas maiores. O livro se chama O Fim de Eddy e posso dizer que Eddy é a criança que eu nunca consegui ser. Esse nome representa o sonho dos meus pais, de masculinidade, de terem um menino durão em casa.

O corredor em que você esperava para apanhar dava acesso à biblioteca. E se tivesse buscado refúgio lá? Se tivesse descoberto a literatura antes, teria sido mais fácil? Era impossível que eu descobrisse a literatura antes. Ela estava tão longe da nossa realidade. Não havia livros na nossa família, meus pais deixaram a escola aos 14, como meus avós, todos trabalharam na fábrica. 

Como o livro foi recebido? Minha mãe reagiu muito mal porque não queria que eu tivesse dito que éramos pobres. Outras pessoas reagiram mal porque toda essa violência era tão banal que as pessoas nem a percebiam mais – e não se reconheceram. Meu pai reagiu bem, e voltamos a nos falar depois de um silêncio de 5 anos. Mas a maioria das pessoas foi hostil na cidade porque eles têm vergonha. Minha mãe é pobre, a mãe dela era pobre. No começo, essa violência da pobreza parece normal. Você não chama isso de violência. Você chama isso de vida. Com o livro, as pessoas foram confrontadas com essa realidade. 

TRECHO

“Da minha infância não guardo nenhuma lembrança feliz. Com isso não quero dizer que eu nunca tenha, naqueles anos, experimentado um sentimento de felicidade ou alegria. Mas o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra no seu sistema desapareça.

No corredor aparecem dois garotos, o primeiro deles grande de cabelos ruivos, e o outro, pequeno com os ombros caídos. O grande ruivo escarrou: ‘Toma essa na sua cara’.

O escarro desceu lentamente pelo meu rosto, amarelo e espesso. (...) O catarro escorre do meu olho até os meus lábios, quase entrando na minha boca. Não ouso limpar. (...)

Eu não imaginava que eles fariam isso. Não que a violência me fosse estranha, longe disso. (...) Eu via meu pai, quando nossos gatos davam cria, enfiar os gatinhos recém-nascidos numa sacola de supermercado e bater a sacola contra uma mureta de concreto até ela ficar cheia de sangue e os miados cessarem.”

O FIM DE EDDY Autor: Édouard Louis  Tradução: Francesca Angiolillo Editora:Tusquets(176 págs.,R$ 39,90)

A voz do outro lado da linha é serena e não parece ser da mesma pessoa que abre seu romance de estreia, assumidamente autobiográfico, dizendo que de sua infância não guarda nenhuma lembrança feliz e que, embora tenha experimentado um ou outro sentimento de alegria, “o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra em seu sistema desapareça”.

A partir daí, o escritor Édouard Louis, um dos novos – e mais badalados – nomes da literatura francesa, leva o leitor para dentro da sua casa miserável, para o centro da vila operária falida no norte da França onde, até perto dos 15 anos, suportou as piores violências e humilhações.

Em 'O Fim de Eddy', Édouard Louis escreve sobre a violência sofrida na infância por ser gay Foto: Sabine Mirlesse/The Washington Post

Hoje, aos 25, não muito tempo depois de descobrir que ele poderia reinventar sua vida, Édouard fala sobre seu livro O Fim de Eddy, lançado agora no País pelo selo Tusquets, da Planeta, traduzido para 20 idiomas e com mais de 300 mil exemplares vendidos só em seu país.

É a história de um garoto que nasceu gay numa sociedade tradicionalmente machista, alcoólatra e homofóbica; que esperava, num corredor escondido da escola, a surra que levava, invariavelmente, todos os dias, de dois alunos. Do menino que pagou pelo desgosto que causou à família e que tentou a todo custo ser Eddy – e falhou. É, sobretudo, a história de uma criança desamparada. 

Édouard Louis poderia nunca ter deixado de ser o Eddy de sua certidão de nascimento e estar vivendo entre os cerca de mil habitantes de Hallencourt. Mas num certo momento surgiu a possibilidade de fazer o Ensino Médio longe de casa por seu desempenho nas aula de teatro. Foi assim que ele fugiu do inferno em que vivia – do ambiente de pobreza, violência e desamor – e mudou de nome.

+++ Flip 2018 anuncia programação

Formado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, o escritor falou com o Estado por telefone, de Paris, onde vive.

Quando percebeu que precisava escrever esse livro e por que o fez? Nasci nessa vila operária que é descrita no livro. Na verdade, uma vila não operária já que, nos anos 1990, a fábrica fechou. Cresci nesse ambiente de pessoas sem emprego, de extrema pobreza. Quando comecei a ler livros e me mudei para Paris para estudar, não encontrei esse ambiente da minha infância, com a pobreza, exclusão, violência e dominação social que eu experimentei, nos livros. Comecei a escrever porque eu quis incluir essa população como uma espécie de vingança contra a literatura. Quis colocar na literatura a realidade que ela excluía.

O livro que lemos é o livro que você tinha em mente no início? Não. O projeto sofreu alteração porque fui compreendendo coisas enquanto escrevia. Por exemplo, quando eu era criança, eu culpava o meu pai e a minha mãe por serem violentos, homofóbicos e racistas nesta vila em que cresci, onde mais de 60% votou pela extrema direita. Eu era uma criança gay, meus pais tinham vergonha de mim. Eu os odiava. Escrevendo, entendi que toda essa violência vinha de uma história coletiva e de uma realidade maior: da forma como a sociedade exclui as pessoas e cria violência. Escrever o livro foi uma forma de entender a violência e não culpar quem foi violento comigo. Por isso o livro ficou muito diferente do que eu esperava.

Você conseguiu compreender a raiz da violência a que foi submetido. Foi capaz de perdoar? Quanto mais eu perdoo as pessoas da minha infância, mais eu culpo o sistema e com mais raiva eu fico desse sistema que criou essa situação de pobreza e dominação. Mas perdoar não quer dizer que foi tudo maravilhoso, que todos eram legais.

Você falou na extrema direita. Como podemos relacionar essa história e esses personagens com a nova onda conservadora? Tudo tem a ver com a invisibilidade. Na minha infância, toda a minha família votava na Frente Nacional. Minha mãe dizia que Marine Le Pen era a única que via a gente. Podemos pensar que a responsabilidade é da esquerda, que parou de falar de pessoas como a minha mãe. Com o livro, eu quis dar visibilidade a essas pessoas. 

É preciso coragem para escrever um livro desses. Como foi reviver os episódios e retratar algo tão íntimo? Foi muito difícil. Escrevi sobre a humilhação que sofri, como ser cuspido todos os dias por dois meninos porque eu era gay. Mas penso que quanto mais difícil, mais interessante é. A fronteira entre o que é político e íntimo é social e histórica. Quanto mais a história parecia íntima, mais achava que devia torná-la política. E porque é difícil dizer, é que é importante dizer. 

O que a literatura significa para você e o que ela já proporcionou até agora? É complexo. Ao mesmo tempo em que a literatura me envergonha por tudo o que eu já disse, ela me deu ferramentas para reconstruir a minha vida, me reinventar. No meu caso, quando eu era criança, não sabia que havia tantos livros e filmes gays e que havia pessoas lutando por mim, pelos direitos e segurança dos gays, para que eles pudessem ser felizes e amarem. Eu achava que eu era doente. Escrevi com esse sentimento misto. A literatura me deu uma arma, e eu usei essa arma para lutar contra ela e fazer um novo tipo de literatura.

+++ Prêmio Jabuti não terá curador, depois de demissão de Luiz Armando Bagolin

Teatro foi sua porta de entrada num novo mundo. Ou ser gay foi sua salvação? Este é um livro sobre um encontro impossível de um garoto com sua família. Eu fiz tudo o que pude para pertencer. Tentei ser masculino, como meus pais queriam. Mas eu falhei. Falhei em ser masculino, falhei em ser durão. E a certa altura eu não tinha opção a não ser fugir. Este é um livro sobre uma criança que não queria fugir, eu não queria fugir. Meu sonho era ser o que as pessoas chamavam de normal. E porque eu falhei, precisei encontrar um jeito de escapar de lá. O teatro surgiu pra mim quando eu tinha 2 anos, quando entendi que deveria desempenhar um papel para sobreviver. E o teatro me tirou de lá. 

Qual é o seu sonho hoje? Meu sonho é que as pessoas usem o meu livro como uma arma contra a homofobia, a dominação social e a pobreza. E que o usem como uma ferramenta para se reinventarem. Tendemos a enfrentar as situações, mas, às vezes, fugir é um ato mais corajoso já que há lutas que vamos perder sempre. 

Depois de conquistar tudo o que conquistou, há algo que você diria para o menino que foi, para um garoto ou garota vivendo o mesmo que você viveu? Fuja. Vá para o mais longe que você puder. O livro mostra o tempo que gastei tentando me encaixar e ser o que os outros chamavam de normal. E eu sofri. Quando eu digo ‘eu’, estou dizendo um ‘eu’ coletivo. Quando conto minha história, levanto questões que dizem respeito aos outros. Minha vida é um pretexto para falar sobre coisas maiores. O livro se chama O Fim de Eddy e posso dizer que Eddy é a criança que eu nunca consegui ser. Esse nome representa o sonho dos meus pais, de masculinidade, de terem um menino durão em casa.

O corredor em que você esperava para apanhar dava acesso à biblioteca. E se tivesse buscado refúgio lá? Se tivesse descoberto a literatura antes, teria sido mais fácil? Era impossível que eu descobrisse a literatura antes. Ela estava tão longe da nossa realidade. Não havia livros na nossa família, meus pais deixaram a escola aos 14, como meus avós, todos trabalharam na fábrica. 

Como o livro foi recebido? Minha mãe reagiu muito mal porque não queria que eu tivesse dito que éramos pobres. Outras pessoas reagiram mal porque toda essa violência era tão banal que as pessoas nem a percebiam mais – e não se reconheceram. Meu pai reagiu bem, e voltamos a nos falar depois de um silêncio de 5 anos. Mas a maioria das pessoas foi hostil na cidade porque eles têm vergonha. Minha mãe é pobre, a mãe dela era pobre. No começo, essa violência da pobreza parece normal. Você não chama isso de violência. Você chama isso de vida. Com o livro, as pessoas foram confrontadas com essa realidade. 

TRECHO

“Da minha infância não guardo nenhuma lembrança feliz. Com isso não quero dizer que eu nunca tenha, naqueles anos, experimentado um sentimento de felicidade ou alegria. Mas o sofrimento é simplesmente totalitário: ele faz com que tudo que não se enquadra no seu sistema desapareça.

No corredor aparecem dois garotos, o primeiro deles grande de cabelos ruivos, e o outro, pequeno com os ombros caídos. O grande ruivo escarrou: ‘Toma essa na sua cara’.

O escarro desceu lentamente pelo meu rosto, amarelo e espesso. (...) O catarro escorre do meu olho até os meus lábios, quase entrando na minha boca. Não ouso limpar. (...)

Eu não imaginava que eles fariam isso. Não que a violência me fosse estranha, longe disso. (...) Eu via meu pai, quando nossos gatos davam cria, enfiar os gatinhos recém-nascidos numa sacola de supermercado e bater a sacola contra uma mureta de concreto até ela ficar cheia de sangue e os miados cessarem.”

O FIM DE EDDY Autor: Édouard Louis  Tradução: Francesca Angiolillo Editora:Tusquets(176 págs.,R$ 39,90)

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