Escritores brasileiros analisam a literatura policial de Dürrenmatt


A convite do 'Estado', Alberto Mussa, Tony Bellotto, Raphael Montes e Marçal Aquino reafirmam dedicação ao gênero praticado pelo autor suíço, que tem agora lançado 'A Promessa / A Pane'

Por Ubiratan Brasil

O conflito que habitualmente existe entre realidade e sua representação artística sempre fascinou o escritor e dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) – apesar de conhecido por suas peças teatrais (A Visita da Velha Senhora é a mais notável), ele enveredou pela literatura policial, à qual conferiu um nível filosófico. É o que se observa com a chegada agora do livro A Promessa / A Pane, reunião de um romance e um conto, pela editora Estação Liberdade.

Oescritor e dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt Foto: Rue des Archives/Keystone

O que torna especial a publicação de A Promessa é a possibilidade de se observar como Dürrenmatt não apenas apresenta uma trama de mistério como principalmente subverte as convenções do gênero – ali, ele desmerece o que, para muitos, é considerado um feito: a construção de uma trama perfeita. 

continua após a publicidade

Com o subtítulo Réquiem para um Romance Policial, a obra – que inspirou um filme estrelado por Jack Nicholson – começa quando um escritor (o próprio Dürrenmatt) é abordado por um ex-chefe de polícia, logo depois de um debate sobre esse estilo.

“Nunca tive os romances policiais em alta conta e sinto muito que o senhor também os escreva”, diz o homem. “Em seus romances, o acaso não tem vez e, se algo parece acaso, é ao mesmo tempo destino e coincidência; desde sempre, a verdade é jogada aos lobos por vocês, escritores, em detrimento de regras dramatúrgicas.” E completa: “Vocês, da escrita, não tentam lidar com uma realidade que vive escapando entre os dedos, mas montam um mundo que é administrável. Esse mundo talvez seja perfeito, possível, mas é uma mentira.”

Em seguida, o policial oferece uma carona ao escritor na volta para Zurique e, durante o trajeto, passa a narrar a história da derrocada de Mattäi, um experiente inspetor. É aqui que Dürrenmatt se revela original, pois, após apresentar a tese que despreza a forma comum de se escrever uma trama policial, essência daquele discurso do ex-chefe, o autor suíço apresenta um exemplo do que, de fato, é um caso de suspense.

continua após a publicidade

Mattäi é designado para solucionar o brutal assassinato de uma menina. Trata-se da terceira garota morta em semelhantes condições e as suspeitas recaem sobre um caixeiro-viajante que, apesar das muitas evidências que o recriminam, nega veementemente. Ele acaba preso, depois de confessar sob condições pouco lícitas. E, na cadeia, enforca-se. Mattäi, no entanto, não acredita em sua culpa e, contrariando o desejo de todos, satisfeitos com o que acreditam ser um caso solucionado, promete que vai, de fato, desvendar aquele crime.

Jack Nicholson em 'A Promessa', filme inspirado em obra de Dürrenmatt Foto: Morgan Creek Entertainment

É o início da derrocada, com o inspetor arriscando sua carreira, princípios e até a própria sanidade. É o suficiente para Dürrenmatt fazer uma reflexão sobre justiça, culpa, virtude e acaso, temas que sempre lhe foram muito caros. Mais: ao embaralhar ficção e realidade, ele propõe a discussão sobre a literatura dentro da própria obra.

continua após a publicidade

O Estado consultou escritores brasileiros de romance policial, todos com obra respeitável. Os quatro que foram ouvidos aplaudiram a tese do colega suíço. “Considero perfeita a ponderação da personagem”, observa Alberto Mussa, autor do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, conjunto de cinco romances nos quais investiga, por meio de histórias policiais, a confluência das tradições ameríndias, africanas e do Brasil popular na composição do imaginário e do panorama mitológico da cidade.

“É uma crítica a uma longa tradição do romance cerebral, como os de Conan Doyle e Agatha Christie, em que o detetive tem controle absoluto sobre os fatos e domínio sobre o aspecto psíquico das pessoas. Ainda hoje muitos autores seguem essa linha. Vejo muitos policiais no cinema também e essas histórias de serial killers cheias de crimes sofisticados e enigmas mirabolantes estão ainda em moda – e são mesmo universos artificiais.”

Pela mesma trilha segue Tony Bellotto, músico e autor de uma série de livros policiais com o detetive Remo Bellini como protagonista. “Uma das coisas que sempre me incomodaram em algumas histórias policiais foi exatamente essa necessidade de todos os fatos se encaixarem logicamente, como num quebra-cabeças. Convenhamos, nem todos nascem com o talento da Agatha Christie”, comenta ele. “Não concordo com a frase que diz que a realidade não precisa fazer sentido, mas a ficção, sim.”

continua após a publicidade

Raphael Montes, que vem se consagrando como expoente da nova geração brasileira de autores de livros policiais, acredita que já não funciona mais um acordo tácito que havia entre escritor e leitor. “Em sua origem, o romance policial era uma espécie de livro-jogo, um desafio entre autor e leitor”, afirma. “O crime rompia a ‘ordem das coisas’ e o detetive vinha justamente para restabelecê-la. Como? Através do método lógico-dedutivo. Justamente por seu aspecto de ‘jogo’, era inadmissível que o autor se utilizasse de coincidências, encontros ao acaso ou intuições em geral. Seria como ‘roubar’ do leitor a chance de descobrir o criminoso de igual para igual.”

Montes ressalta que, como se observa no dia a dia, as coincidências e intuições vivem servindo a soluções de crimes – e que isso vem também inspirando uma boa parte da literatura policial que se produz no Brasil e no mundo. “Alguns autores já são menos controladores da trama e deixam a história fluir, como na realidade. Aí, o incalculável e o incomensurável têm vez.”

Ele cita, com exemplo, a norueguesa Karin Fossum e a francesa Fred Vargas, além do brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza, criador do delegado Espinosa. “É comum que, nos livros do delegado de Copacabana, o criminoso seja preso, mas algum elemento do crime não fique claro e continue sem resposta mesmo após o final. Segundo Garcia-Roza, existe no crime uma espécie de ‘núcleo inescrutável’, ou seja, algo inatingível até mesmo para o detetive.”

continua após a publicidade

Bellotto aumenta a lista com o inspetor Maigret, criação do belga Georges Simenon. “Ele poderia assinar embaixo das declarações do ex-policial do Dürrenmatt, pois as deduções de Maigret são quase sempre fruto de acasos e revelações que a lógica não explica”, aponta.

“Ainda que seja romance, que o autor tenha controle sobre a trama, creio que seja possível ‘humanizar’ mais tanto os criminosos quanto os detetives”, completa Mussa. “O detetive não necessariamente precisa chegar à verdade e os crimes, em geral, têm motivos simples, são muito mais movidos por questões materiais e passionais do que por cerebralismos.”

Autor de romances e roteiros centrados no policial, Marçal Aquino vê como enfrentar o dualismo entre fato e ficção. “A realidade é o único roteirista realmente livre que existe e é insuperável”, diz. “Diariamente nós, criadores de ficção, somos afrontados por acontecimentos da vida real que nem sonharíamos em colocar no papel. Na ficção, há de se ter um certo pudor com o acaso. Sob pena de não ser levado a sério.”

O conflito que habitualmente existe entre realidade e sua representação artística sempre fascinou o escritor e dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) – apesar de conhecido por suas peças teatrais (A Visita da Velha Senhora é a mais notável), ele enveredou pela literatura policial, à qual conferiu um nível filosófico. É o que se observa com a chegada agora do livro A Promessa / A Pane, reunião de um romance e um conto, pela editora Estação Liberdade.

Oescritor e dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt Foto: Rue des Archives/Keystone

O que torna especial a publicação de A Promessa é a possibilidade de se observar como Dürrenmatt não apenas apresenta uma trama de mistério como principalmente subverte as convenções do gênero – ali, ele desmerece o que, para muitos, é considerado um feito: a construção de uma trama perfeita. 

Com o subtítulo Réquiem para um Romance Policial, a obra – que inspirou um filme estrelado por Jack Nicholson – começa quando um escritor (o próprio Dürrenmatt) é abordado por um ex-chefe de polícia, logo depois de um debate sobre esse estilo.

“Nunca tive os romances policiais em alta conta e sinto muito que o senhor também os escreva”, diz o homem. “Em seus romances, o acaso não tem vez e, se algo parece acaso, é ao mesmo tempo destino e coincidência; desde sempre, a verdade é jogada aos lobos por vocês, escritores, em detrimento de regras dramatúrgicas.” E completa: “Vocês, da escrita, não tentam lidar com uma realidade que vive escapando entre os dedos, mas montam um mundo que é administrável. Esse mundo talvez seja perfeito, possível, mas é uma mentira.”

Em seguida, o policial oferece uma carona ao escritor na volta para Zurique e, durante o trajeto, passa a narrar a história da derrocada de Mattäi, um experiente inspetor. É aqui que Dürrenmatt se revela original, pois, após apresentar a tese que despreza a forma comum de se escrever uma trama policial, essência daquele discurso do ex-chefe, o autor suíço apresenta um exemplo do que, de fato, é um caso de suspense.

Mattäi é designado para solucionar o brutal assassinato de uma menina. Trata-se da terceira garota morta em semelhantes condições e as suspeitas recaem sobre um caixeiro-viajante que, apesar das muitas evidências que o recriminam, nega veementemente. Ele acaba preso, depois de confessar sob condições pouco lícitas. E, na cadeia, enforca-se. Mattäi, no entanto, não acredita em sua culpa e, contrariando o desejo de todos, satisfeitos com o que acreditam ser um caso solucionado, promete que vai, de fato, desvendar aquele crime.

Jack Nicholson em 'A Promessa', filme inspirado em obra de Dürrenmatt Foto: Morgan Creek Entertainment

É o início da derrocada, com o inspetor arriscando sua carreira, princípios e até a própria sanidade. É o suficiente para Dürrenmatt fazer uma reflexão sobre justiça, culpa, virtude e acaso, temas que sempre lhe foram muito caros. Mais: ao embaralhar ficção e realidade, ele propõe a discussão sobre a literatura dentro da própria obra.

O Estado consultou escritores brasileiros de romance policial, todos com obra respeitável. Os quatro que foram ouvidos aplaudiram a tese do colega suíço. “Considero perfeita a ponderação da personagem”, observa Alberto Mussa, autor do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, conjunto de cinco romances nos quais investiga, por meio de histórias policiais, a confluência das tradições ameríndias, africanas e do Brasil popular na composição do imaginário e do panorama mitológico da cidade.

“É uma crítica a uma longa tradição do romance cerebral, como os de Conan Doyle e Agatha Christie, em que o detetive tem controle absoluto sobre os fatos e domínio sobre o aspecto psíquico das pessoas. Ainda hoje muitos autores seguem essa linha. Vejo muitos policiais no cinema também e essas histórias de serial killers cheias de crimes sofisticados e enigmas mirabolantes estão ainda em moda – e são mesmo universos artificiais.”

Pela mesma trilha segue Tony Bellotto, músico e autor de uma série de livros policiais com o detetive Remo Bellini como protagonista. “Uma das coisas que sempre me incomodaram em algumas histórias policiais foi exatamente essa necessidade de todos os fatos se encaixarem logicamente, como num quebra-cabeças. Convenhamos, nem todos nascem com o talento da Agatha Christie”, comenta ele. “Não concordo com a frase que diz que a realidade não precisa fazer sentido, mas a ficção, sim.”

Raphael Montes, que vem se consagrando como expoente da nova geração brasileira de autores de livros policiais, acredita que já não funciona mais um acordo tácito que havia entre escritor e leitor. “Em sua origem, o romance policial era uma espécie de livro-jogo, um desafio entre autor e leitor”, afirma. “O crime rompia a ‘ordem das coisas’ e o detetive vinha justamente para restabelecê-la. Como? Através do método lógico-dedutivo. Justamente por seu aspecto de ‘jogo’, era inadmissível que o autor se utilizasse de coincidências, encontros ao acaso ou intuições em geral. Seria como ‘roubar’ do leitor a chance de descobrir o criminoso de igual para igual.”

Montes ressalta que, como se observa no dia a dia, as coincidências e intuições vivem servindo a soluções de crimes – e que isso vem também inspirando uma boa parte da literatura policial que se produz no Brasil e no mundo. “Alguns autores já são menos controladores da trama e deixam a história fluir, como na realidade. Aí, o incalculável e o incomensurável têm vez.”

Ele cita, com exemplo, a norueguesa Karin Fossum e a francesa Fred Vargas, além do brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza, criador do delegado Espinosa. “É comum que, nos livros do delegado de Copacabana, o criminoso seja preso, mas algum elemento do crime não fique claro e continue sem resposta mesmo após o final. Segundo Garcia-Roza, existe no crime uma espécie de ‘núcleo inescrutável’, ou seja, algo inatingível até mesmo para o detetive.”

Bellotto aumenta a lista com o inspetor Maigret, criação do belga Georges Simenon. “Ele poderia assinar embaixo das declarações do ex-policial do Dürrenmatt, pois as deduções de Maigret são quase sempre fruto de acasos e revelações que a lógica não explica”, aponta.

“Ainda que seja romance, que o autor tenha controle sobre a trama, creio que seja possível ‘humanizar’ mais tanto os criminosos quanto os detetives”, completa Mussa. “O detetive não necessariamente precisa chegar à verdade e os crimes, em geral, têm motivos simples, são muito mais movidos por questões materiais e passionais do que por cerebralismos.”

Autor de romances e roteiros centrados no policial, Marçal Aquino vê como enfrentar o dualismo entre fato e ficção. “A realidade é o único roteirista realmente livre que existe e é insuperável”, diz. “Diariamente nós, criadores de ficção, somos afrontados por acontecimentos da vida real que nem sonharíamos em colocar no papel. Na ficção, há de se ter um certo pudor com o acaso. Sob pena de não ser levado a sério.”

O conflito que habitualmente existe entre realidade e sua representação artística sempre fascinou o escritor e dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) – apesar de conhecido por suas peças teatrais (A Visita da Velha Senhora é a mais notável), ele enveredou pela literatura policial, à qual conferiu um nível filosófico. É o que se observa com a chegada agora do livro A Promessa / A Pane, reunião de um romance e um conto, pela editora Estação Liberdade.

Oescritor e dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt Foto: Rue des Archives/Keystone

O que torna especial a publicação de A Promessa é a possibilidade de se observar como Dürrenmatt não apenas apresenta uma trama de mistério como principalmente subverte as convenções do gênero – ali, ele desmerece o que, para muitos, é considerado um feito: a construção de uma trama perfeita. 

Com o subtítulo Réquiem para um Romance Policial, a obra – que inspirou um filme estrelado por Jack Nicholson – começa quando um escritor (o próprio Dürrenmatt) é abordado por um ex-chefe de polícia, logo depois de um debate sobre esse estilo.

“Nunca tive os romances policiais em alta conta e sinto muito que o senhor também os escreva”, diz o homem. “Em seus romances, o acaso não tem vez e, se algo parece acaso, é ao mesmo tempo destino e coincidência; desde sempre, a verdade é jogada aos lobos por vocês, escritores, em detrimento de regras dramatúrgicas.” E completa: “Vocês, da escrita, não tentam lidar com uma realidade que vive escapando entre os dedos, mas montam um mundo que é administrável. Esse mundo talvez seja perfeito, possível, mas é uma mentira.”

Em seguida, o policial oferece uma carona ao escritor na volta para Zurique e, durante o trajeto, passa a narrar a história da derrocada de Mattäi, um experiente inspetor. É aqui que Dürrenmatt se revela original, pois, após apresentar a tese que despreza a forma comum de se escrever uma trama policial, essência daquele discurso do ex-chefe, o autor suíço apresenta um exemplo do que, de fato, é um caso de suspense.

Mattäi é designado para solucionar o brutal assassinato de uma menina. Trata-se da terceira garota morta em semelhantes condições e as suspeitas recaem sobre um caixeiro-viajante que, apesar das muitas evidências que o recriminam, nega veementemente. Ele acaba preso, depois de confessar sob condições pouco lícitas. E, na cadeia, enforca-se. Mattäi, no entanto, não acredita em sua culpa e, contrariando o desejo de todos, satisfeitos com o que acreditam ser um caso solucionado, promete que vai, de fato, desvendar aquele crime.

Jack Nicholson em 'A Promessa', filme inspirado em obra de Dürrenmatt Foto: Morgan Creek Entertainment

É o início da derrocada, com o inspetor arriscando sua carreira, princípios e até a própria sanidade. É o suficiente para Dürrenmatt fazer uma reflexão sobre justiça, culpa, virtude e acaso, temas que sempre lhe foram muito caros. Mais: ao embaralhar ficção e realidade, ele propõe a discussão sobre a literatura dentro da própria obra.

O Estado consultou escritores brasileiros de romance policial, todos com obra respeitável. Os quatro que foram ouvidos aplaudiram a tese do colega suíço. “Considero perfeita a ponderação da personagem”, observa Alberto Mussa, autor do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, conjunto de cinco romances nos quais investiga, por meio de histórias policiais, a confluência das tradições ameríndias, africanas e do Brasil popular na composição do imaginário e do panorama mitológico da cidade.

“É uma crítica a uma longa tradição do romance cerebral, como os de Conan Doyle e Agatha Christie, em que o detetive tem controle absoluto sobre os fatos e domínio sobre o aspecto psíquico das pessoas. Ainda hoje muitos autores seguem essa linha. Vejo muitos policiais no cinema também e essas histórias de serial killers cheias de crimes sofisticados e enigmas mirabolantes estão ainda em moda – e são mesmo universos artificiais.”

Pela mesma trilha segue Tony Bellotto, músico e autor de uma série de livros policiais com o detetive Remo Bellini como protagonista. “Uma das coisas que sempre me incomodaram em algumas histórias policiais foi exatamente essa necessidade de todos os fatos se encaixarem logicamente, como num quebra-cabeças. Convenhamos, nem todos nascem com o talento da Agatha Christie”, comenta ele. “Não concordo com a frase que diz que a realidade não precisa fazer sentido, mas a ficção, sim.”

Raphael Montes, que vem se consagrando como expoente da nova geração brasileira de autores de livros policiais, acredita que já não funciona mais um acordo tácito que havia entre escritor e leitor. “Em sua origem, o romance policial era uma espécie de livro-jogo, um desafio entre autor e leitor”, afirma. “O crime rompia a ‘ordem das coisas’ e o detetive vinha justamente para restabelecê-la. Como? Através do método lógico-dedutivo. Justamente por seu aspecto de ‘jogo’, era inadmissível que o autor se utilizasse de coincidências, encontros ao acaso ou intuições em geral. Seria como ‘roubar’ do leitor a chance de descobrir o criminoso de igual para igual.”

Montes ressalta que, como se observa no dia a dia, as coincidências e intuições vivem servindo a soluções de crimes – e que isso vem também inspirando uma boa parte da literatura policial que se produz no Brasil e no mundo. “Alguns autores já são menos controladores da trama e deixam a história fluir, como na realidade. Aí, o incalculável e o incomensurável têm vez.”

Ele cita, com exemplo, a norueguesa Karin Fossum e a francesa Fred Vargas, além do brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza, criador do delegado Espinosa. “É comum que, nos livros do delegado de Copacabana, o criminoso seja preso, mas algum elemento do crime não fique claro e continue sem resposta mesmo após o final. Segundo Garcia-Roza, existe no crime uma espécie de ‘núcleo inescrutável’, ou seja, algo inatingível até mesmo para o detetive.”

Bellotto aumenta a lista com o inspetor Maigret, criação do belga Georges Simenon. “Ele poderia assinar embaixo das declarações do ex-policial do Dürrenmatt, pois as deduções de Maigret são quase sempre fruto de acasos e revelações que a lógica não explica”, aponta.

“Ainda que seja romance, que o autor tenha controle sobre a trama, creio que seja possível ‘humanizar’ mais tanto os criminosos quanto os detetives”, completa Mussa. “O detetive não necessariamente precisa chegar à verdade e os crimes, em geral, têm motivos simples, são muito mais movidos por questões materiais e passionais do que por cerebralismos.”

Autor de romances e roteiros centrados no policial, Marçal Aquino vê como enfrentar o dualismo entre fato e ficção. “A realidade é o único roteirista realmente livre que existe e é insuperável”, diz. “Diariamente nós, criadores de ficção, somos afrontados por acontecimentos da vida real que nem sonharíamos em colocar no papel. Na ficção, há de se ter um certo pudor com o acaso. Sob pena de não ser levado a sério.”

O conflito que habitualmente existe entre realidade e sua representação artística sempre fascinou o escritor e dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) – apesar de conhecido por suas peças teatrais (A Visita da Velha Senhora é a mais notável), ele enveredou pela literatura policial, à qual conferiu um nível filosófico. É o que se observa com a chegada agora do livro A Promessa / A Pane, reunião de um romance e um conto, pela editora Estação Liberdade.

Oescritor e dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt Foto: Rue des Archives/Keystone

O que torna especial a publicação de A Promessa é a possibilidade de se observar como Dürrenmatt não apenas apresenta uma trama de mistério como principalmente subverte as convenções do gênero – ali, ele desmerece o que, para muitos, é considerado um feito: a construção de uma trama perfeita. 

Com o subtítulo Réquiem para um Romance Policial, a obra – que inspirou um filme estrelado por Jack Nicholson – começa quando um escritor (o próprio Dürrenmatt) é abordado por um ex-chefe de polícia, logo depois de um debate sobre esse estilo.

“Nunca tive os romances policiais em alta conta e sinto muito que o senhor também os escreva”, diz o homem. “Em seus romances, o acaso não tem vez e, se algo parece acaso, é ao mesmo tempo destino e coincidência; desde sempre, a verdade é jogada aos lobos por vocês, escritores, em detrimento de regras dramatúrgicas.” E completa: “Vocês, da escrita, não tentam lidar com uma realidade que vive escapando entre os dedos, mas montam um mundo que é administrável. Esse mundo talvez seja perfeito, possível, mas é uma mentira.”

Em seguida, o policial oferece uma carona ao escritor na volta para Zurique e, durante o trajeto, passa a narrar a história da derrocada de Mattäi, um experiente inspetor. É aqui que Dürrenmatt se revela original, pois, após apresentar a tese que despreza a forma comum de se escrever uma trama policial, essência daquele discurso do ex-chefe, o autor suíço apresenta um exemplo do que, de fato, é um caso de suspense.

Mattäi é designado para solucionar o brutal assassinato de uma menina. Trata-se da terceira garota morta em semelhantes condições e as suspeitas recaem sobre um caixeiro-viajante que, apesar das muitas evidências que o recriminam, nega veementemente. Ele acaba preso, depois de confessar sob condições pouco lícitas. E, na cadeia, enforca-se. Mattäi, no entanto, não acredita em sua culpa e, contrariando o desejo de todos, satisfeitos com o que acreditam ser um caso solucionado, promete que vai, de fato, desvendar aquele crime.

Jack Nicholson em 'A Promessa', filme inspirado em obra de Dürrenmatt Foto: Morgan Creek Entertainment

É o início da derrocada, com o inspetor arriscando sua carreira, princípios e até a própria sanidade. É o suficiente para Dürrenmatt fazer uma reflexão sobre justiça, culpa, virtude e acaso, temas que sempre lhe foram muito caros. Mais: ao embaralhar ficção e realidade, ele propõe a discussão sobre a literatura dentro da própria obra.

O Estado consultou escritores brasileiros de romance policial, todos com obra respeitável. Os quatro que foram ouvidos aplaudiram a tese do colega suíço. “Considero perfeita a ponderação da personagem”, observa Alberto Mussa, autor do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, conjunto de cinco romances nos quais investiga, por meio de histórias policiais, a confluência das tradições ameríndias, africanas e do Brasil popular na composição do imaginário e do panorama mitológico da cidade.

“É uma crítica a uma longa tradição do romance cerebral, como os de Conan Doyle e Agatha Christie, em que o detetive tem controle absoluto sobre os fatos e domínio sobre o aspecto psíquico das pessoas. Ainda hoje muitos autores seguem essa linha. Vejo muitos policiais no cinema também e essas histórias de serial killers cheias de crimes sofisticados e enigmas mirabolantes estão ainda em moda – e são mesmo universos artificiais.”

Pela mesma trilha segue Tony Bellotto, músico e autor de uma série de livros policiais com o detetive Remo Bellini como protagonista. “Uma das coisas que sempre me incomodaram em algumas histórias policiais foi exatamente essa necessidade de todos os fatos se encaixarem logicamente, como num quebra-cabeças. Convenhamos, nem todos nascem com o talento da Agatha Christie”, comenta ele. “Não concordo com a frase que diz que a realidade não precisa fazer sentido, mas a ficção, sim.”

Raphael Montes, que vem se consagrando como expoente da nova geração brasileira de autores de livros policiais, acredita que já não funciona mais um acordo tácito que havia entre escritor e leitor. “Em sua origem, o romance policial era uma espécie de livro-jogo, um desafio entre autor e leitor”, afirma. “O crime rompia a ‘ordem das coisas’ e o detetive vinha justamente para restabelecê-la. Como? Através do método lógico-dedutivo. Justamente por seu aspecto de ‘jogo’, era inadmissível que o autor se utilizasse de coincidências, encontros ao acaso ou intuições em geral. Seria como ‘roubar’ do leitor a chance de descobrir o criminoso de igual para igual.”

Montes ressalta que, como se observa no dia a dia, as coincidências e intuições vivem servindo a soluções de crimes – e que isso vem também inspirando uma boa parte da literatura policial que se produz no Brasil e no mundo. “Alguns autores já são menos controladores da trama e deixam a história fluir, como na realidade. Aí, o incalculável e o incomensurável têm vez.”

Ele cita, com exemplo, a norueguesa Karin Fossum e a francesa Fred Vargas, além do brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza, criador do delegado Espinosa. “É comum que, nos livros do delegado de Copacabana, o criminoso seja preso, mas algum elemento do crime não fique claro e continue sem resposta mesmo após o final. Segundo Garcia-Roza, existe no crime uma espécie de ‘núcleo inescrutável’, ou seja, algo inatingível até mesmo para o detetive.”

Bellotto aumenta a lista com o inspetor Maigret, criação do belga Georges Simenon. “Ele poderia assinar embaixo das declarações do ex-policial do Dürrenmatt, pois as deduções de Maigret são quase sempre fruto de acasos e revelações que a lógica não explica”, aponta.

“Ainda que seja romance, que o autor tenha controle sobre a trama, creio que seja possível ‘humanizar’ mais tanto os criminosos quanto os detetives”, completa Mussa. “O detetive não necessariamente precisa chegar à verdade e os crimes, em geral, têm motivos simples, são muito mais movidos por questões materiais e passionais do que por cerebralismos.”

Autor de romances e roteiros centrados no policial, Marçal Aquino vê como enfrentar o dualismo entre fato e ficção. “A realidade é o único roteirista realmente livre que existe e é insuperável”, diz. “Diariamente nós, criadores de ficção, somos afrontados por acontecimentos da vida real que nem sonharíamos em colocar no papel. Na ficção, há de se ter um certo pudor com o acaso. Sob pena de não ser levado a sério.”

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.