Ícone do feminismo, Gloria Steinem fala sobre sua biografia lançada agora no Brasil


Aos 83 anos, a jornalista e ativista lança 'Minha Vida na Estrada' e fala sobre a situação da mulher hoje, Donald Trump e sobre como criar uma geração mais igualitária

Por Maria Fernanda Rodrigues

Quando a americana Gloria Steinem aderiu à luta pelos direitos humanos e, sobretudo, pela causa feminista, a expressão violência doméstica não existia. Era como se aquilo fizesse parte da vida e ponto. A jornalista que se disfarçou de Coelhinha da Playboy para escrever sobre o famoso clube masculino; que estava no Lincoln Memorial, em 1963, quando Martin Luther King fez o histórico discurso ‘Eu tenho um sonho’; que ouviu Gay Talese fazer um comentário machista sobre ela a Saul Bellow quando estavam os três num táxi e ela tinha acabado de contar sobre uma entrevista que faria com Bobby Kennedy; que fundou a importante revista Ms. em 1971; e que voltou a marchar em Washington em março deste ano, com milhares de outras mulheres – e, desta vez, ela mesma fez um discurso –, viu muita coisa acontecer nas últimas seis décadas de ativismo. 

'Muita coisa depende da forma como criamos nossas crianças e tratamos os jovens porque será assim que eles tratarão os outros' Foto: Kevin Scanlon/The New York Times

Nesses anos todos, Gloria escolheu a estrada – uma paixão que remete à infância e a seu pai. Onde quer que solicitem sua presença, sua voz, ou se uma questão lhe causa revolta, lá está ela. É essa história – a história de uma incansável mulher – que ela conta em Minha Vida na Estrada. O livro é dedicado ao médico que fez um aborto em Gloria, quando isso ainda era proibido na Inglaterra, e a fez prometer, aos 22, que faria o que quisesse com sua vida. Aos 83, ela falou ao Estado, por telefone, de Nova York – para onde volta ao final de suas andanças.

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Como o fato de ter crescido em uma família como a sua, na estrada, a ajudou a se tornar quem é? Somos todos como aquelas bonecas russas. Nosso eu criança está sempre dentro de nós e depois vamos ficando mais velhos e mais velhos. Meu pai tinha dois motivos de orgulho: nunca ter usado chapéu e nunca ter tido um patrão. Isso me preparou para ser uma escritora e jornalista freelancer e para viajar como uma forma de viver. Naquela época, eu queria ser como as outras crianças, que viviam em casa, perto da escola, mas, olhando em retrospecto, valorizo o que aprendi. 

E sobre sua mãe? Com ela, aprendi a amar os livros e a escrita. Antes de eu nascer, ela queria seguir sua carreira como jornalista, mas não conseguiu. De uma certa forma, vivo a vida que ela não viveu.

A situação da mulher é melhor hoje, mas ainda não é boa o suficiente. Estamos nos contentando com pouco? O mundo é um lugar melhor para as mulheres hoje do que quando você começou ou esses avanços são ilusórios? Muito melhor porque hoje sabemos que não somos loucas; o sistema é que é louco. No meu tempo, por exemplo, não havia uma palavra para violência doméstica. Ela era chamada “vida”. E as mulheres eram culpadas pelo ato de seus maridos. Hoje, há abrigos para essas mulheres – e isso é um avanço enorme. A consciência vem antes da mudança física e agora, definitivamente, há consciência – e alguma mudança também. Mas ainda é verdade que o lugar onde a mulher americana corre mais risco de morrer é em sua própria casa. 

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Quais são as questões enfrentadas já nos anos 1960 que ainda não foram resolvidas? Nos anos 1960, enfrentamos o fato de que estávamos vivendo uma guerra, uma guerra injusta. Além disso, o racismo crescia em todo o país, sobretudo no Sul por causa da luta pelos direitos civis e porque o sexismo está intrinsecamente ligado ao racismo e a uma certa ideia masculina de naturalismo. O movimento feminista surgiu de todas essas mudanças principalmente porque percebemos que é preciso ter controle sobre o corpo da mulher para manter a diferença de gênero. 

Gloria Steinem com Betty Friedan, Elinor Guggenheimer e Eleanor Holmes Norton em 1971 Foto: Don Hogan Charles/The New York Times

Em que fase do feminismo estamos hoje? Quais são os desafios e as demandas? Quando vejo uma jovem de uma família tradicional religiosa, ela está na primeira ou na segunda onda. Quando encontro uma jovem da segunda geração de feministas, ela está na quarta onda. E elas podem ter a mesma idade. Mas, no geral, ultrapassamos o estágio da mudança de consciência para o de organizar e mudar os sistemas, mas sem ainda fazer conexões entre as questões. Por exemplo, falamos sobre aquecimento global, mas ainda preciso ver uma campanha contra o aquecimento global que fale, por exemplo, que forçar a mulher a ter um filho que ela não quer é um caminho para o aquecimento global. 

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O feminismo tem perdido seu aspecto político? As mulheres estão de fato engajadas na luta ou apenas conversando sobre essas questões nas redes sociais? E as redes sociais ajudam, mesmo, a promover o debate? As redes sociais são um grande avanço no sentido de serem um lugar onde se pode obter informações e se conectar com outras pessoas. Mas ela não muda nada. E há dois perigos. Ela faz uma divisão econômica das mulheres, já que muitas não têm computador ou não são alfabetizadas. E é um espaço de um sexismo inacreditável. O índice de ameaças a que as mulheres são submetidas por levantarem suas vozes online, a patrulha, é impressionante. 

Estamos numa onda conservadora. Um tempo em que algumas pessoas acham ok, de novo, ofender mulheres, gays, negros e até crianças, e que encontram eco nas redes sociais e em grupos de ódio que estão se revelando não tão secretos. Alguma vez a senhora imaginou, depois de tudo o que conquistou, que estaríamos vivendo num mundo como esse e combatendo, mais uma vez, por exemplo, a supremacia branca? Isso não me surpreende. Viajo muito e vejo que há pessoas que dizem que este é um país de brancos e que se dizem ameaçadas porque em breve deixaremos de ser a maioria no dito país branco. Uma geração com mais bebês negros que brancos já nasceu. O mais chocante é o sistema ter permitido que um presidente eleito por um terço do país esteja na Casa Branca. A esperança é que agora que tudo está tão visível e que a maioria está atenta ao perigo seremos mais realistas e mais capazes de lidar com isso.

O que a eleição de Trump diz sobre nós? É importante ressaltar que ele perdeu por 10 milhões de votos. Ele não ganhou pela maioria dos votos. Para a opinião pública, ele representa um terço dos Estados Unidos. Sua vitória está nos levando a nos livrarmos do que chamamos de colégio eleitoral. De forma alguma ele representa a maioria, mas isso não quer dizer que ele não seja perigoso. Ele é muito perigoso e já está causando muito estrago. O pictograma chinês para crise é uma combinação de perigo e oportunidade. Acho que é aí que estamos agora: no limite do perigo e da oportunidade.

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É otimista? Sou otimista e realista. A minoria pode sair vencedora.

Como formar uma nova geração de meninos feministas? O mais importante é escutá-los. Só saberemos ouvir quando alguém nos ouvir. As crianças no Brasil não dizem coisas como ‘isso não é justo’, ‘você não é o meu dono’? Essa é a base de toda justiça cultural. Temos que respeitar as crianças, ouvi-las, e, então, elas também vão ouvir. Precisamos tratá-las como seres humanos únicos e como parte de uma comunidade. Estou dizendo o óbvio, mas acredito que muita coisa depende da forma como criamos nossas crianças e tratamos os jovens porque será assim que eles tratarão os outros.

Qual é a sua luta hoje? Dizer que as mudanças ocorrem de baixo para cima, que devemos usar nossas vozes sempre que pudermos. Sou feliz por ser uma escritora e ter acesso a leitores por meio dos livros e da imprensa. Faço o meu melhor usar minha voz para refletir a voz dos que não têm esse espaço.

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MINHA VIDA NA ESTRADA Autora: Gloria Steinem Trad.: Janda Montenegro Editora: Bertrand (392 págs.; R$ 49,90)

Quando a americana Gloria Steinem aderiu à luta pelos direitos humanos e, sobretudo, pela causa feminista, a expressão violência doméstica não existia. Era como se aquilo fizesse parte da vida e ponto. A jornalista que se disfarçou de Coelhinha da Playboy para escrever sobre o famoso clube masculino; que estava no Lincoln Memorial, em 1963, quando Martin Luther King fez o histórico discurso ‘Eu tenho um sonho’; que ouviu Gay Talese fazer um comentário machista sobre ela a Saul Bellow quando estavam os três num táxi e ela tinha acabado de contar sobre uma entrevista que faria com Bobby Kennedy; que fundou a importante revista Ms. em 1971; e que voltou a marchar em Washington em março deste ano, com milhares de outras mulheres – e, desta vez, ela mesma fez um discurso –, viu muita coisa acontecer nas últimas seis décadas de ativismo. 

'Muita coisa depende da forma como criamos nossas crianças e tratamos os jovens porque será assim que eles tratarão os outros' Foto: Kevin Scanlon/The New York Times

Nesses anos todos, Gloria escolheu a estrada – uma paixão que remete à infância e a seu pai. Onde quer que solicitem sua presença, sua voz, ou se uma questão lhe causa revolta, lá está ela. É essa história – a história de uma incansável mulher – que ela conta em Minha Vida na Estrada. O livro é dedicado ao médico que fez um aborto em Gloria, quando isso ainda era proibido na Inglaterra, e a fez prometer, aos 22, que faria o que quisesse com sua vida. Aos 83, ela falou ao Estado, por telefone, de Nova York – para onde volta ao final de suas andanças.

Como o fato de ter crescido em uma família como a sua, na estrada, a ajudou a se tornar quem é? Somos todos como aquelas bonecas russas. Nosso eu criança está sempre dentro de nós e depois vamos ficando mais velhos e mais velhos. Meu pai tinha dois motivos de orgulho: nunca ter usado chapéu e nunca ter tido um patrão. Isso me preparou para ser uma escritora e jornalista freelancer e para viajar como uma forma de viver. Naquela época, eu queria ser como as outras crianças, que viviam em casa, perto da escola, mas, olhando em retrospecto, valorizo o que aprendi. 

E sobre sua mãe? Com ela, aprendi a amar os livros e a escrita. Antes de eu nascer, ela queria seguir sua carreira como jornalista, mas não conseguiu. De uma certa forma, vivo a vida que ela não viveu.

A situação da mulher é melhor hoje, mas ainda não é boa o suficiente. Estamos nos contentando com pouco? O mundo é um lugar melhor para as mulheres hoje do que quando você começou ou esses avanços são ilusórios? Muito melhor porque hoje sabemos que não somos loucas; o sistema é que é louco. No meu tempo, por exemplo, não havia uma palavra para violência doméstica. Ela era chamada “vida”. E as mulheres eram culpadas pelo ato de seus maridos. Hoje, há abrigos para essas mulheres – e isso é um avanço enorme. A consciência vem antes da mudança física e agora, definitivamente, há consciência – e alguma mudança também. Mas ainda é verdade que o lugar onde a mulher americana corre mais risco de morrer é em sua própria casa. 

Quais são as questões enfrentadas já nos anos 1960 que ainda não foram resolvidas? Nos anos 1960, enfrentamos o fato de que estávamos vivendo uma guerra, uma guerra injusta. Além disso, o racismo crescia em todo o país, sobretudo no Sul por causa da luta pelos direitos civis e porque o sexismo está intrinsecamente ligado ao racismo e a uma certa ideia masculina de naturalismo. O movimento feminista surgiu de todas essas mudanças principalmente porque percebemos que é preciso ter controle sobre o corpo da mulher para manter a diferença de gênero. 

Gloria Steinem com Betty Friedan, Elinor Guggenheimer e Eleanor Holmes Norton em 1971 Foto: Don Hogan Charles/The New York Times

Em que fase do feminismo estamos hoje? Quais são os desafios e as demandas? Quando vejo uma jovem de uma família tradicional religiosa, ela está na primeira ou na segunda onda. Quando encontro uma jovem da segunda geração de feministas, ela está na quarta onda. E elas podem ter a mesma idade. Mas, no geral, ultrapassamos o estágio da mudança de consciência para o de organizar e mudar os sistemas, mas sem ainda fazer conexões entre as questões. Por exemplo, falamos sobre aquecimento global, mas ainda preciso ver uma campanha contra o aquecimento global que fale, por exemplo, que forçar a mulher a ter um filho que ela não quer é um caminho para o aquecimento global. 

O feminismo tem perdido seu aspecto político? As mulheres estão de fato engajadas na luta ou apenas conversando sobre essas questões nas redes sociais? E as redes sociais ajudam, mesmo, a promover o debate? As redes sociais são um grande avanço no sentido de serem um lugar onde se pode obter informações e se conectar com outras pessoas. Mas ela não muda nada. E há dois perigos. Ela faz uma divisão econômica das mulheres, já que muitas não têm computador ou não são alfabetizadas. E é um espaço de um sexismo inacreditável. O índice de ameaças a que as mulheres são submetidas por levantarem suas vozes online, a patrulha, é impressionante. 

Estamos numa onda conservadora. Um tempo em que algumas pessoas acham ok, de novo, ofender mulheres, gays, negros e até crianças, e que encontram eco nas redes sociais e em grupos de ódio que estão se revelando não tão secretos. Alguma vez a senhora imaginou, depois de tudo o que conquistou, que estaríamos vivendo num mundo como esse e combatendo, mais uma vez, por exemplo, a supremacia branca? Isso não me surpreende. Viajo muito e vejo que há pessoas que dizem que este é um país de brancos e que se dizem ameaçadas porque em breve deixaremos de ser a maioria no dito país branco. Uma geração com mais bebês negros que brancos já nasceu. O mais chocante é o sistema ter permitido que um presidente eleito por um terço do país esteja na Casa Branca. A esperança é que agora que tudo está tão visível e que a maioria está atenta ao perigo seremos mais realistas e mais capazes de lidar com isso.

O que a eleição de Trump diz sobre nós? É importante ressaltar que ele perdeu por 10 milhões de votos. Ele não ganhou pela maioria dos votos. Para a opinião pública, ele representa um terço dos Estados Unidos. Sua vitória está nos levando a nos livrarmos do que chamamos de colégio eleitoral. De forma alguma ele representa a maioria, mas isso não quer dizer que ele não seja perigoso. Ele é muito perigoso e já está causando muito estrago. O pictograma chinês para crise é uma combinação de perigo e oportunidade. Acho que é aí que estamos agora: no limite do perigo e da oportunidade.

É otimista? Sou otimista e realista. A minoria pode sair vencedora.

Como formar uma nova geração de meninos feministas? O mais importante é escutá-los. Só saberemos ouvir quando alguém nos ouvir. As crianças no Brasil não dizem coisas como ‘isso não é justo’, ‘você não é o meu dono’? Essa é a base de toda justiça cultural. Temos que respeitar as crianças, ouvi-las, e, então, elas também vão ouvir. Precisamos tratá-las como seres humanos únicos e como parte de uma comunidade. Estou dizendo o óbvio, mas acredito que muita coisa depende da forma como criamos nossas crianças e tratamos os jovens porque será assim que eles tratarão os outros.

Qual é a sua luta hoje? Dizer que as mudanças ocorrem de baixo para cima, que devemos usar nossas vozes sempre que pudermos. Sou feliz por ser uma escritora e ter acesso a leitores por meio dos livros e da imprensa. Faço o meu melhor usar minha voz para refletir a voz dos que não têm esse espaço.

MINHA VIDA NA ESTRADA Autora: Gloria Steinem Trad.: Janda Montenegro Editora: Bertrand (392 págs.; R$ 49,90)

Quando a americana Gloria Steinem aderiu à luta pelos direitos humanos e, sobretudo, pela causa feminista, a expressão violência doméstica não existia. Era como se aquilo fizesse parte da vida e ponto. A jornalista que se disfarçou de Coelhinha da Playboy para escrever sobre o famoso clube masculino; que estava no Lincoln Memorial, em 1963, quando Martin Luther King fez o histórico discurso ‘Eu tenho um sonho’; que ouviu Gay Talese fazer um comentário machista sobre ela a Saul Bellow quando estavam os três num táxi e ela tinha acabado de contar sobre uma entrevista que faria com Bobby Kennedy; que fundou a importante revista Ms. em 1971; e que voltou a marchar em Washington em março deste ano, com milhares de outras mulheres – e, desta vez, ela mesma fez um discurso –, viu muita coisa acontecer nas últimas seis décadas de ativismo. 

'Muita coisa depende da forma como criamos nossas crianças e tratamos os jovens porque será assim que eles tratarão os outros' Foto: Kevin Scanlon/The New York Times

Nesses anos todos, Gloria escolheu a estrada – uma paixão que remete à infância e a seu pai. Onde quer que solicitem sua presença, sua voz, ou se uma questão lhe causa revolta, lá está ela. É essa história – a história de uma incansável mulher – que ela conta em Minha Vida na Estrada. O livro é dedicado ao médico que fez um aborto em Gloria, quando isso ainda era proibido na Inglaterra, e a fez prometer, aos 22, que faria o que quisesse com sua vida. Aos 83, ela falou ao Estado, por telefone, de Nova York – para onde volta ao final de suas andanças.

Como o fato de ter crescido em uma família como a sua, na estrada, a ajudou a se tornar quem é? Somos todos como aquelas bonecas russas. Nosso eu criança está sempre dentro de nós e depois vamos ficando mais velhos e mais velhos. Meu pai tinha dois motivos de orgulho: nunca ter usado chapéu e nunca ter tido um patrão. Isso me preparou para ser uma escritora e jornalista freelancer e para viajar como uma forma de viver. Naquela época, eu queria ser como as outras crianças, que viviam em casa, perto da escola, mas, olhando em retrospecto, valorizo o que aprendi. 

E sobre sua mãe? Com ela, aprendi a amar os livros e a escrita. Antes de eu nascer, ela queria seguir sua carreira como jornalista, mas não conseguiu. De uma certa forma, vivo a vida que ela não viveu.

A situação da mulher é melhor hoje, mas ainda não é boa o suficiente. Estamos nos contentando com pouco? O mundo é um lugar melhor para as mulheres hoje do que quando você começou ou esses avanços são ilusórios? Muito melhor porque hoje sabemos que não somos loucas; o sistema é que é louco. No meu tempo, por exemplo, não havia uma palavra para violência doméstica. Ela era chamada “vida”. E as mulheres eram culpadas pelo ato de seus maridos. Hoje, há abrigos para essas mulheres – e isso é um avanço enorme. A consciência vem antes da mudança física e agora, definitivamente, há consciência – e alguma mudança também. Mas ainda é verdade que o lugar onde a mulher americana corre mais risco de morrer é em sua própria casa. 

Quais são as questões enfrentadas já nos anos 1960 que ainda não foram resolvidas? Nos anos 1960, enfrentamos o fato de que estávamos vivendo uma guerra, uma guerra injusta. Além disso, o racismo crescia em todo o país, sobretudo no Sul por causa da luta pelos direitos civis e porque o sexismo está intrinsecamente ligado ao racismo e a uma certa ideia masculina de naturalismo. O movimento feminista surgiu de todas essas mudanças principalmente porque percebemos que é preciso ter controle sobre o corpo da mulher para manter a diferença de gênero. 

Gloria Steinem com Betty Friedan, Elinor Guggenheimer e Eleanor Holmes Norton em 1971 Foto: Don Hogan Charles/The New York Times

Em que fase do feminismo estamos hoje? Quais são os desafios e as demandas? Quando vejo uma jovem de uma família tradicional religiosa, ela está na primeira ou na segunda onda. Quando encontro uma jovem da segunda geração de feministas, ela está na quarta onda. E elas podem ter a mesma idade. Mas, no geral, ultrapassamos o estágio da mudança de consciência para o de organizar e mudar os sistemas, mas sem ainda fazer conexões entre as questões. Por exemplo, falamos sobre aquecimento global, mas ainda preciso ver uma campanha contra o aquecimento global que fale, por exemplo, que forçar a mulher a ter um filho que ela não quer é um caminho para o aquecimento global. 

O feminismo tem perdido seu aspecto político? As mulheres estão de fato engajadas na luta ou apenas conversando sobre essas questões nas redes sociais? E as redes sociais ajudam, mesmo, a promover o debate? As redes sociais são um grande avanço no sentido de serem um lugar onde se pode obter informações e se conectar com outras pessoas. Mas ela não muda nada. E há dois perigos. Ela faz uma divisão econômica das mulheres, já que muitas não têm computador ou não são alfabetizadas. E é um espaço de um sexismo inacreditável. O índice de ameaças a que as mulheres são submetidas por levantarem suas vozes online, a patrulha, é impressionante. 

Estamos numa onda conservadora. Um tempo em que algumas pessoas acham ok, de novo, ofender mulheres, gays, negros e até crianças, e que encontram eco nas redes sociais e em grupos de ódio que estão se revelando não tão secretos. Alguma vez a senhora imaginou, depois de tudo o que conquistou, que estaríamos vivendo num mundo como esse e combatendo, mais uma vez, por exemplo, a supremacia branca? Isso não me surpreende. Viajo muito e vejo que há pessoas que dizem que este é um país de brancos e que se dizem ameaçadas porque em breve deixaremos de ser a maioria no dito país branco. Uma geração com mais bebês negros que brancos já nasceu. O mais chocante é o sistema ter permitido que um presidente eleito por um terço do país esteja na Casa Branca. A esperança é que agora que tudo está tão visível e que a maioria está atenta ao perigo seremos mais realistas e mais capazes de lidar com isso.

O que a eleição de Trump diz sobre nós? É importante ressaltar que ele perdeu por 10 milhões de votos. Ele não ganhou pela maioria dos votos. Para a opinião pública, ele representa um terço dos Estados Unidos. Sua vitória está nos levando a nos livrarmos do que chamamos de colégio eleitoral. De forma alguma ele representa a maioria, mas isso não quer dizer que ele não seja perigoso. Ele é muito perigoso e já está causando muito estrago. O pictograma chinês para crise é uma combinação de perigo e oportunidade. Acho que é aí que estamos agora: no limite do perigo e da oportunidade.

É otimista? Sou otimista e realista. A minoria pode sair vencedora.

Como formar uma nova geração de meninos feministas? O mais importante é escutá-los. Só saberemos ouvir quando alguém nos ouvir. As crianças no Brasil não dizem coisas como ‘isso não é justo’, ‘você não é o meu dono’? Essa é a base de toda justiça cultural. Temos que respeitar as crianças, ouvi-las, e, então, elas também vão ouvir. Precisamos tratá-las como seres humanos únicos e como parte de uma comunidade. Estou dizendo o óbvio, mas acredito que muita coisa depende da forma como criamos nossas crianças e tratamos os jovens porque será assim que eles tratarão os outros.

Qual é a sua luta hoje? Dizer que as mudanças ocorrem de baixo para cima, que devemos usar nossas vozes sempre que pudermos. Sou feliz por ser uma escritora e ter acesso a leitores por meio dos livros e da imprensa. Faço o meu melhor usar minha voz para refletir a voz dos que não têm esse espaço.

MINHA VIDA NA ESTRADA Autora: Gloria Steinem Trad.: Janda Montenegro Editora: Bertrand (392 págs.; R$ 49,90)

Quando a americana Gloria Steinem aderiu à luta pelos direitos humanos e, sobretudo, pela causa feminista, a expressão violência doméstica não existia. Era como se aquilo fizesse parte da vida e ponto. A jornalista que se disfarçou de Coelhinha da Playboy para escrever sobre o famoso clube masculino; que estava no Lincoln Memorial, em 1963, quando Martin Luther King fez o histórico discurso ‘Eu tenho um sonho’; que ouviu Gay Talese fazer um comentário machista sobre ela a Saul Bellow quando estavam os três num táxi e ela tinha acabado de contar sobre uma entrevista que faria com Bobby Kennedy; que fundou a importante revista Ms. em 1971; e que voltou a marchar em Washington em março deste ano, com milhares de outras mulheres – e, desta vez, ela mesma fez um discurso –, viu muita coisa acontecer nas últimas seis décadas de ativismo. 

'Muita coisa depende da forma como criamos nossas crianças e tratamos os jovens porque será assim que eles tratarão os outros' Foto: Kevin Scanlon/The New York Times

Nesses anos todos, Gloria escolheu a estrada – uma paixão que remete à infância e a seu pai. Onde quer que solicitem sua presença, sua voz, ou se uma questão lhe causa revolta, lá está ela. É essa história – a história de uma incansável mulher – que ela conta em Minha Vida na Estrada. O livro é dedicado ao médico que fez um aborto em Gloria, quando isso ainda era proibido na Inglaterra, e a fez prometer, aos 22, que faria o que quisesse com sua vida. Aos 83, ela falou ao Estado, por telefone, de Nova York – para onde volta ao final de suas andanças.

Como o fato de ter crescido em uma família como a sua, na estrada, a ajudou a se tornar quem é? Somos todos como aquelas bonecas russas. Nosso eu criança está sempre dentro de nós e depois vamos ficando mais velhos e mais velhos. Meu pai tinha dois motivos de orgulho: nunca ter usado chapéu e nunca ter tido um patrão. Isso me preparou para ser uma escritora e jornalista freelancer e para viajar como uma forma de viver. Naquela época, eu queria ser como as outras crianças, que viviam em casa, perto da escola, mas, olhando em retrospecto, valorizo o que aprendi. 

E sobre sua mãe? Com ela, aprendi a amar os livros e a escrita. Antes de eu nascer, ela queria seguir sua carreira como jornalista, mas não conseguiu. De uma certa forma, vivo a vida que ela não viveu.

A situação da mulher é melhor hoje, mas ainda não é boa o suficiente. Estamos nos contentando com pouco? O mundo é um lugar melhor para as mulheres hoje do que quando você começou ou esses avanços são ilusórios? Muito melhor porque hoje sabemos que não somos loucas; o sistema é que é louco. No meu tempo, por exemplo, não havia uma palavra para violência doméstica. Ela era chamada “vida”. E as mulheres eram culpadas pelo ato de seus maridos. Hoje, há abrigos para essas mulheres – e isso é um avanço enorme. A consciência vem antes da mudança física e agora, definitivamente, há consciência – e alguma mudança também. Mas ainda é verdade que o lugar onde a mulher americana corre mais risco de morrer é em sua própria casa. 

Quais são as questões enfrentadas já nos anos 1960 que ainda não foram resolvidas? Nos anos 1960, enfrentamos o fato de que estávamos vivendo uma guerra, uma guerra injusta. Além disso, o racismo crescia em todo o país, sobretudo no Sul por causa da luta pelos direitos civis e porque o sexismo está intrinsecamente ligado ao racismo e a uma certa ideia masculina de naturalismo. O movimento feminista surgiu de todas essas mudanças principalmente porque percebemos que é preciso ter controle sobre o corpo da mulher para manter a diferença de gênero. 

Gloria Steinem com Betty Friedan, Elinor Guggenheimer e Eleanor Holmes Norton em 1971 Foto: Don Hogan Charles/The New York Times

Em que fase do feminismo estamos hoje? Quais são os desafios e as demandas? Quando vejo uma jovem de uma família tradicional religiosa, ela está na primeira ou na segunda onda. Quando encontro uma jovem da segunda geração de feministas, ela está na quarta onda. E elas podem ter a mesma idade. Mas, no geral, ultrapassamos o estágio da mudança de consciência para o de organizar e mudar os sistemas, mas sem ainda fazer conexões entre as questões. Por exemplo, falamos sobre aquecimento global, mas ainda preciso ver uma campanha contra o aquecimento global que fale, por exemplo, que forçar a mulher a ter um filho que ela não quer é um caminho para o aquecimento global. 

O feminismo tem perdido seu aspecto político? As mulheres estão de fato engajadas na luta ou apenas conversando sobre essas questões nas redes sociais? E as redes sociais ajudam, mesmo, a promover o debate? As redes sociais são um grande avanço no sentido de serem um lugar onde se pode obter informações e se conectar com outras pessoas. Mas ela não muda nada. E há dois perigos. Ela faz uma divisão econômica das mulheres, já que muitas não têm computador ou não são alfabetizadas. E é um espaço de um sexismo inacreditável. O índice de ameaças a que as mulheres são submetidas por levantarem suas vozes online, a patrulha, é impressionante. 

Estamos numa onda conservadora. Um tempo em que algumas pessoas acham ok, de novo, ofender mulheres, gays, negros e até crianças, e que encontram eco nas redes sociais e em grupos de ódio que estão se revelando não tão secretos. Alguma vez a senhora imaginou, depois de tudo o que conquistou, que estaríamos vivendo num mundo como esse e combatendo, mais uma vez, por exemplo, a supremacia branca? Isso não me surpreende. Viajo muito e vejo que há pessoas que dizem que este é um país de brancos e que se dizem ameaçadas porque em breve deixaremos de ser a maioria no dito país branco. Uma geração com mais bebês negros que brancos já nasceu. O mais chocante é o sistema ter permitido que um presidente eleito por um terço do país esteja na Casa Branca. A esperança é que agora que tudo está tão visível e que a maioria está atenta ao perigo seremos mais realistas e mais capazes de lidar com isso.

O que a eleição de Trump diz sobre nós? É importante ressaltar que ele perdeu por 10 milhões de votos. Ele não ganhou pela maioria dos votos. Para a opinião pública, ele representa um terço dos Estados Unidos. Sua vitória está nos levando a nos livrarmos do que chamamos de colégio eleitoral. De forma alguma ele representa a maioria, mas isso não quer dizer que ele não seja perigoso. Ele é muito perigoso e já está causando muito estrago. O pictograma chinês para crise é uma combinação de perigo e oportunidade. Acho que é aí que estamos agora: no limite do perigo e da oportunidade.

É otimista? Sou otimista e realista. A minoria pode sair vencedora.

Como formar uma nova geração de meninos feministas? O mais importante é escutá-los. Só saberemos ouvir quando alguém nos ouvir. As crianças no Brasil não dizem coisas como ‘isso não é justo’, ‘você não é o meu dono’? Essa é a base de toda justiça cultural. Temos que respeitar as crianças, ouvi-las, e, então, elas também vão ouvir. Precisamos tratá-las como seres humanos únicos e como parte de uma comunidade. Estou dizendo o óbvio, mas acredito que muita coisa depende da forma como criamos nossas crianças e tratamos os jovens porque será assim que eles tratarão os outros.

Qual é a sua luta hoje? Dizer que as mudanças ocorrem de baixo para cima, que devemos usar nossas vozes sempre que pudermos. Sou feliz por ser uma escritora e ter acesso a leitores por meio dos livros e da imprensa. Faço o meu melhor usar minha voz para refletir a voz dos que não têm esse espaço.

MINHA VIDA NA ESTRADA Autora: Gloria Steinem Trad.: Janda Montenegro Editora: Bertrand (392 págs.; R$ 49,90)

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