Nos 130 anos da morte de Emily Dickinson, 'Não Sou Ninguém' ganha edição ampliada


Obra da poeta americana ganha 45 novos poemas, traduzidos por Augusto de Campos; leia alguns dos poemas

Por Mariana Mandelli

Em tempos de “escritores on show”, chega a ser de uma fina ironia que a poeta norte-americana mais aclamada desde a modernidade encarne a figura de uma mulher solitária, de vida reclusa e educação puritana, cuja palavra começou revolucionando anonimamente o cânone literário do século 19 até influenciar os caminhos da poesia moderna universal. Neste domingo, 15, completam-se 130 anos da morte de Emily Dickinson, e, durante o mês, novos eventos devem se somar ao já copioso inventário de homenagens à poeta, que teve sua primeira edição crítica completa organizada e publicada apenas em 1955, por Thomas H. Johnson, num volume de 1.775 poemas, até hoje principal referência em estudos e traduções.

O sentido irônico dessa celebrização, nada estranho a quem dominava a ironia tanto quanto se ocupava do duplo tema do anonimato e da fama, parece preservar da banalização uma obra que, além de satirizar da hipótese do próprio sucesso, é também uma obra de enigmas que permanecem indecifráveis, inclusive em seus aspectos gráficos. Alta densidade simbólica e abertura polissêmica, com travessões (ou disjunções) pesando sílaba e som, desarticulando sintagmas e sentidos, entre eles abrindo frestas, são algumas das características que continuam a instigar diferentes abordagens de ensaístas e tradutores. Entre os poetas portugueses e brasileiros que já encararam a complexidade dessa tarefa estão Jorge de Sena, Nuno Júdice, Ana Luísa Amaral, Manuel Bandeira, Mário Faustino e Augusto de Campos.

A poeta. Solitária, reclusa, de educação puritana e irônica Foto: Amherst College Archives and Special Collections
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Com Augusto de Campos, aconteceu à tradução de Dickinson o mesmo que anteriormente com a poesia de Rilke: o trabalho teve continuidade depois da publicação de uma primeira coletânea, desdobrando-se numa segunda edição revista e ampliada. No caso de Dickinson, o retorno se deu após a disponibilização dos manuscritos da poeta na internet e da seleção fac-similar, em 2013, de seus “poemas-envelope”. O resultado foi um acréscimo de 45 poemas aos 35 da primeira edição de 2008 da coletânea Não Sou Ninguém. Aos célebres Sépala, pétala e um espinho, Não sou Ninguém! Quem é você?, Morri pela Beleza – e assim que no Jazigo, já presentes na primeira seleção, vêm juntar-se agora, por exemplo, Na Casa eu era a mais esquiva, Há a solidão do espaço e Para fazer um prado abelha e trevo, poemas representativos de temas marcantes, como o do espaço doméstico do quarto ou de um jardim ressignificados pela alma que os imagina.

Um toque especial nesta nova seleção são os versos que fecham o volume, não incluídos em nenhuma das coleções de poesia de Dickinson por se tratar de um trecho de uma carta ao crítico Thomas W. Higginson. São versos que remetem a uma noção de circularidade inerente à obra da autora como um todo, o que mostra o zelo com que Augusto de Campos trabalha, contemplando na coletânea mais de 30 anos de criação, a metade dos poemas concentrados na primeira metade da década de 1860, período que também abrange a fase mais profícua da poesia de Dickinson.

Lembrando que existem outras coletâneas brasileiras em traduções de fôlego, como a da professora Aíla de Oliveira Gomes (Uma Centena de Poemas, Prêmio Jabuti 1985), com rico apêndice de notas, ou a mais recente, de José Lira (A Branca Voz da Solidão, 2011), mantém-se em destaque o cuidadoso trabalho de Augusto de Campos, que, mesmo reivindicando para si “a liberdade da improvisação e do rubato”, continuamente se preocupa com a fidedignidade à prosódia, ao estilo elíptico da autora e a suas particularidades gráficas.

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Na transposição dos enigmas do “idioma poético” de Emily Dickinson, é sensível o respeito com que são conseguidos paralelos estéticos sem prejuízo do seu contexto semântico. Isso merece ser ressaltado diante de tantas intervenções que já se fizeram, a começar pela decisão de Thomas W. Higginson, de “corrigir a gramática” de Dickinson em publicações póstumas ainda na década de 1890. Como observou uma vez o poeta português Jorge de Sena, diante da grandeza da “solitária de Amherst”, a fidedignidade de um tradutor, sopesadas as especificidades de cada língua, é o melhor com que ele pode contribuir sem cair na armadilha de tentar decifrar as idiossincrasias do texto ou tomá-las como um laboratório de invenções.

Muitas interpretações da crítica também recaem sobre a vida da poeta, que, como sua obra, é cheia de extravagantes acontecimentos mentais no lugar de aventuras concretas. Os espaços em branco em seus poemas (e em suas cartas) e seu vocabulário de maiúsculas – “Miúdas Fulgências, Ventos”; “Milhões de Eternidades”; “Fossos de Mistério” – são também lidos especularmente em sua biografia de escassas experiências exteriores. No entanto, sejam quais forem essas interpretações, importa que o leitor tenha acesso, antes de tudo, à fonte de onde as mesmas são deduzidas, ou seja, à palavra desta que, estoica ou rebelde, culturalmente ousada ou excêntrica, de temperamento romântico ou irônico, tem sido capaz de atravessar os séculos – e o “Honor sem honra da Fama” – sem perder seu elo verbal com o mundo.

Confira alguns dos poemas da obra:

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“Eu temo a Fala escassa –/ O Homem que fala Pouco – / O Falastrão – é oco – O Tagarela – passa –/... Mas O que pesa – Enquanto a Turba – / Ao máximo se expande – / Esse Homem – me perturba – / Temo que seja Grande –” * “Não sou Ninguém! Quem é você? / Ninguém – também? / Então somos um par? / Que triste – ser – Alguém! / Que pública – a Fama – / Dizer seu nome – como a Rã – / Para as palmas da Lama!” * “O Ocaso se abre, aéreo – / E alteia nossa vista / Com ameaças de Ametista / E Fossos de Mistério.” * “A Luz basta-se a si – / Aos Outros dá-se ela / Nos Vidros da Janela/ Certas Horas do Dia. / Mas não privilegia / Ninguém – o mesmo Brilho / Ela também revela / No Himalaia o esquilo.” * “Nesta Colmeia tais/ Dons de Mel eu suponho / Que a Realidade é Sonho / E os Sonhos, Reais –”

NÃO SOU NINGUÉM Autora: Emily Dickinson Tradução: Augusto de Campos Editora: Unicamp (192 págs.; R$ 42)

MARIANA IANELLI É POETA, AUTORA DE O AMOR E DEPOIS, TREVA ALVORADA, TEMPO DE VOLTAR, ENTRE OUTRAS OBRAS  

Em tempos de “escritores on show”, chega a ser de uma fina ironia que a poeta norte-americana mais aclamada desde a modernidade encarne a figura de uma mulher solitária, de vida reclusa e educação puritana, cuja palavra começou revolucionando anonimamente o cânone literário do século 19 até influenciar os caminhos da poesia moderna universal. Neste domingo, 15, completam-se 130 anos da morte de Emily Dickinson, e, durante o mês, novos eventos devem se somar ao já copioso inventário de homenagens à poeta, que teve sua primeira edição crítica completa organizada e publicada apenas em 1955, por Thomas H. Johnson, num volume de 1.775 poemas, até hoje principal referência em estudos e traduções.

O sentido irônico dessa celebrização, nada estranho a quem dominava a ironia tanto quanto se ocupava do duplo tema do anonimato e da fama, parece preservar da banalização uma obra que, além de satirizar da hipótese do próprio sucesso, é também uma obra de enigmas que permanecem indecifráveis, inclusive em seus aspectos gráficos. Alta densidade simbólica e abertura polissêmica, com travessões (ou disjunções) pesando sílaba e som, desarticulando sintagmas e sentidos, entre eles abrindo frestas, são algumas das características que continuam a instigar diferentes abordagens de ensaístas e tradutores. Entre os poetas portugueses e brasileiros que já encararam a complexidade dessa tarefa estão Jorge de Sena, Nuno Júdice, Ana Luísa Amaral, Manuel Bandeira, Mário Faustino e Augusto de Campos.

A poeta. Solitária, reclusa, de educação puritana e irônica Foto: Amherst College Archives and Special Collections

Com Augusto de Campos, aconteceu à tradução de Dickinson o mesmo que anteriormente com a poesia de Rilke: o trabalho teve continuidade depois da publicação de uma primeira coletânea, desdobrando-se numa segunda edição revista e ampliada. No caso de Dickinson, o retorno se deu após a disponibilização dos manuscritos da poeta na internet e da seleção fac-similar, em 2013, de seus “poemas-envelope”. O resultado foi um acréscimo de 45 poemas aos 35 da primeira edição de 2008 da coletânea Não Sou Ninguém. Aos célebres Sépala, pétala e um espinho, Não sou Ninguém! Quem é você?, Morri pela Beleza – e assim que no Jazigo, já presentes na primeira seleção, vêm juntar-se agora, por exemplo, Na Casa eu era a mais esquiva, Há a solidão do espaço e Para fazer um prado abelha e trevo, poemas representativos de temas marcantes, como o do espaço doméstico do quarto ou de um jardim ressignificados pela alma que os imagina.

Um toque especial nesta nova seleção são os versos que fecham o volume, não incluídos em nenhuma das coleções de poesia de Dickinson por se tratar de um trecho de uma carta ao crítico Thomas W. Higginson. São versos que remetem a uma noção de circularidade inerente à obra da autora como um todo, o que mostra o zelo com que Augusto de Campos trabalha, contemplando na coletânea mais de 30 anos de criação, a metade dos poemas concentrados na primeira metade da década de 1860, período que também abrange a fase mais profícua da poesia de Dickinson.

Lembrando que existem outras coletâneas brasileiras em traduções de fôlego, como a da professora Aíla de Oliveira Gomes (Uma Centena de Poemas, Prêmio Jabuti 1985), com rico apêndice de notas, ou a mais recente, de José Lira (A Branca Voz da Solidão, 2011), mantém-se em destaque o cuidadoso trabalho de Augusto de Campos, que, mesmo reivindicando para si “a liberdade da improvisação e do rubato”, continuamente se preocupa com a fidedignidade à prosódia, ao estilo elíptico da autora e a suas particularidades gráficas.

Na transposição dos enigmas do “idioma poético” de Emily Dickinson, é sensível o respeito com que são conseguidos paralelos estéticos sem prejuízo do seu contexto semântico. Isso merece ser ressaltado diante de tantas intervenções que já se fizeram, a começar pela decisão de Thomas W. Higginson, de “corrigir a gramática” de Dickinson em publicações póstumas ainda na década de 1890. Como observou uma vez o poeta português Jorge de Sena, diante da grandeza da “solitária de Amherst”, a fidedignidade de um tradutor, sopesadas as especificidades de cada língua, é o melhor com que ele pode contribuir sem cair na armadilha de tentar decifrar as idiossincrasias do texto ou tomá-las como um laboratório de invenções.

Muitas interpretações da crítica também recaem sobre a vida da poeta, que, como sua obra, é cheia de extravagantes acontecimentos mentais no lugar de aventuras concretas. Os espaços em branco em seus poemas (e em suas cartas) e seu vocabulário de maiúsculas – “Miúdas Fulgências, Ventos”; “Milhões de Eternidades”; “Fossos de Mistério” – são também lidos especularmente em sua biografia de escassas experiências exteriores. No entanto, sejam quais forem essas interpretações, importa que o leitor tenha acesso, antes de tudo, à fonte de onde as mesmas são deduzidas, ou seja, à palavra desta que, estoica ou rebelde, culturalmente ousada ou excêntrica, de temperamento romântico ou irônico, tem sido capaz de atravessar os séculos – e o “Honor sem honra da Fama” – sem perder seu elo verbal com o mundo.

Confira alguns dos poemas da obra:

“Eu temo a Fala escassa –/ O Homem que fala Pouco – / O Falastrão – é oco – O Tagarela – passa –/... Mas O que pesa – Enquanto a Turba – / Ao máximo se expande – / Esse Homem – me perturba – / Temo que seja Grande –” * “Não sou Ninguém! Quem é você? / Ninguém – também? / Então somos um par? / Que triste – ser – Alguém! / Que pública – a Fama – / Dizer seu nome – como a Rã – / Para as palmas da Lama!” * “O Ocaso se abre, aéreo – / E alteia nossa vista / Com ameaças de Ametista / E Fossos de Mistério.” * “A Luz basta-se a si – / Aos Outros dá-se ela / Nos Vidros da Janela/ Certas Horas do Dia. / Mas não privilegia / Ninguém – o mesmo Brilho / Ela também revela / No Himalaia o esquilo.” * “Nesta Colmeia tais/ Dons de Mel eu suponho / Que a Realidade é Sonho / E os Sonhos, Reais –”

NÃO SOU NINGUÉM Autora: Emily Dickinson Tradução: Augusto de Campos Editora: Unicamp (192 págs.; R$ 42)

MARIANA IANELLI É POETA, AUTORA DE O AMOR E DEPOIS, TREVA ALVORADA, TEMPO DE VOLTAR, ENTRE OUTRAS OBRAS  

Em tempos de “escritores on show”, chega a ser de uma fina ironia que a poeta norte-americana mais aclamada desde a modernidade encarne a figura de uma mulher solitária, de vida reclusa e educação puritana, cuja palavra começou revolucionando anonimamente o cânone literário do século 19 até influenciar os caminhos da poesia moderna universal. Neste domingo, 15, completam-se 130 anos da morte de Emily Dickinson, e, durante o mês, novos eventos devem se somar ao já copioso inventário de homenagens à poeta, que teve sua primeira edição crítica completa organizada e publicada apenas em 1955, por Thomas H. Johnson, num volume de 1.775 poemas, até hoje principal referência em estudos e traduções.

O sentido irônico dessa celebrização, nada estranho a quem dominava a ironia tanto quanto se ocupava do duplo tema do anonimato e da fama, parece preservar da banalização uma obra que, além de satirizar da hipótese do próprio sucesso, é também uma obra de enigmas que permanecem indecifráveis, inclusive em seus aspectos gráficos. Alta densidade simbólica e abertura polissêmica, com travessões (ou disjunções) pesando sílaba e som, desarticulando sintagmas e sentidos, entre eles abrindo frestas, são algumas das características que continuam a instigar diferentes abordagens de ensaístas e tradutores. Entre os poetas portugueses e brasileiros que já encararam a complexidade dessa tarefa estão Jorge de Sena, Nuno Júdice, Ana Luísa Amaral, Manuel Bandeira, Mário Faustino e Augusto de Campos.

A poeta. Solitária, reclusa, de educação puritana e irônica Foto: Amherst College Archives and Special Collections

Com Augusto de Campos, aconteceu à tradução de Dickinson o mesmo que anteriormente com a poesia de Rilke: o trabalho teve continuidade depois da publicação de uma primeira coletânea, desdobrando-se numa segunda edição revista e ampliada. No caso de Dickinson, o retorno se deu após a disponibilização dos manuscritos da poeta na internet e da seleção fac-similar, em 2013, de seus “poemas-envelope”. O resultado foi um acréscimo de 45 poemas aos 35 da primeira edição de 2008 da coletânea Não Sou Ninguém. Aos célebres Sépala, pétala e um espinho, Não sou Ninguém! Quem é você?, Morri pela Beleza – e assim que no Jazigo, já presentes na primeira seleção, vêm juntar-se agora, por exemplo, Na Casa eu era a mais esquiva, Há a solidão do espaço e Para fazer um prado abelha e trevo, poemas representativos de temas marcantes, como o do espaço doméstico do quarto ou de um jardim ressignificados pela alma que os imagina.

Um toque especial nesta nova seleção são os versos que fecham o volume, não incluídos em nenhuma das coleções de poesia de Dickinson por se tratar de um trecho de uma carta ao crítico Thomas W. Higginson. São versos que remetem a uma noção de circularidade inerente à obra da autora como um todo, o que mostra o zelo com que Augusto de Campos trabalha, contemplando na coletânea mais de 30 anos de criação, a metade dos poemas concentrados na primeira metade da década de 1860, período que também abrange a fase mais profícua da poesia de Dickinson.

Lembrando que existem outras coletâneas brasileiras em traduções de fôlego, como a da professora Aíla de Oliveira Gomes (Uma Centena de Poemas, Prêmio Jabuti 1985), com rico apêndice de notas, ou a mais recente, de José Lira (A Branca Voz da Solidão, 2011), mantém-se em destaque o cuidadoso trabalho de Augusto de Campos, que, mesmo reivindicando para si “a liberdade da improvisação e do rubato”, continuamente se preocupa com a fidedignidade à prosódia, ao estilo elíptico da autora e a suas particularidades gráficas.

Na transposição dos enigmas do “idioma poético” de Emily Dickinson, é sensível o respeito com que são conseguidos paralelos estéticos sem prejuízo do seu contexto semântico. Isso merece ser ressaltado diante de tantas intervenções que já se fizeram, a começar pela decisão de Thomas W. Higginson, de “corrigir a gramática” de Dickinson em publicações póstumas ainda na década de 1890. Como observou uma vez o poeta português Jorge de Sena, diante da grandeza da “solitária de Amherst”, a fidedignidade de um tradutor, sopesadas as especificidades de cada língua, é o melhor com que ele pode contribuir sem cair na armadilha de tentar decifrar as idiossincrasias do texto ou tomá-las como um laboratório de invenções.

Muitas interpretações da crítica também recaem sobre a vida da poeta, que, como sua obra, é cheia de extravagantes acontecimentos mentais no lugar de aventuras concretas. Os espaços em branco em seus poemas (e em suas cartas) e seu vocabulário de maiúsculas – “Miúdas Fulgências, Ventos”; “Milhões de Eternidades”; “Fossos de Mistério” – são também lidos especularmente em sua biografia de escassas experiências exteriores. No entanto, sejam quais forem essas interpretações, importa que o leitor tenha acesso, antes de tudo, à fonte de onde as mesmas são deduzidas, ou seja, à palavra desta que, estoica ou rebelde, culturalmente ousada ou excêntrica, de temperamento romântico ou irônico, tem sido capaz de atravessar os séculos – e o “Honor sem honra da Fama” – sem perder seu elo verbal com o mundo.

Confira alguns dos poemas da obra:

“Eu temo a Fala escassa –/ O Homem que fala Pouco – / O Falastrão – é oco – O Tagarela – passa –/... Mas O que pesa – Enquanto a Turba – / Ao máximo se expande – / Esse Homem – me perturba – / Temo que seja Grande –” * “Não sou Ninguém! Quem é você? / Ninguém – também? / Então somos um par? / Que triste – ser – Alguém! / Que pública – a Fama – / Dizer seu nome – como a Rã – / Para as palmas da Lama!” * “O Ocaso se abre, aéreo – / E alteia nossa vista / Com ameaças de Ametista / E Fossos de Mistério.” * “A Luz basta-se a si – / Aos Outros dá-se ela / Nos Vidros da Janela/ Certas Horas do Dia. / Mas não privilegia / Ninguém – o mesmo Brilho / Ela também revela / No Himalaia o esquilo.” * “Nesta Colmeia tais/ Dons de Mel eu suponho / Que a Realidade é Sonho / E os Sonhos, Reais –”

NÃO SOU NINGUÉM Autora: Emily Dickinson Tradução: Augusto de Campos Editora: Unicamp (192 págs.; R$ 42)

MARIANA IANELLI É POETA, AUTORA DE O AMOR E DEPOIS, TREVA ALVORADA, TEMPO DE VOLTAR, ENTRE OUTRAS OBRAS  

Em tempos de “escritores on show”, chega a ser de uma fina ironia que a poeta norte-americana mais aclamada desde a modernidade encarne a figura de uma mulher solitária, de vida reclusa e educação puritana, cuja palavra começou revolucionando anonimamente o cânone literário do século 19 até influenciar os caminhos da poesia moderna universal. Neste domingo, 15, completam-se 130 anos da morte de Emily Dickinson, e, durante o mês, novos eventos devem se somar ao já copioso inventário de homenagens à poeta, que teve sua primeira edição crítica completa organizada e publicada apenas em 1955, por Thomas H. Johnson, num volume de 1.775 poemas, até hoje principal referência em estudos e traduções.

O sentido irônico dessa celebrização, nada estranho a quem dominava a ironia tanto quanto se ocupava do duplo tema do anonimato e da fama, parece preservar da banalização uma obra que, além de satirizar da hipótese do próprio sucesso, é também uma obra de enigmas que permanecem indecifráveis, inclusive em seus aspectos gráficos. Alta densidade simbólica e abertura polissêmica, com travessões (ou disjunções) pesando sílaba e som, desarticulando sintagmas e sentidos, entre eles abrindo frestas, são algumas das características que continuam a instigar diferentes abordagens de ensaístas e tradutores. Entre os poetas portugueses e brasileiros que já encararam a complexidade dessa tarefa estão Jorge de Sena, Nuno Júdice, Ana Luísa Amaral, Manuel Bandeira, Mário Faustino e Augusto de Campos.

A poeta. Solitária, reclusa, de educação puritana e irônica Foto: Amherst College Archives and Special Collections

Com Augusto de Campos, aconteceu à tradução de Dickinson o mesmo que anteriormente com a poesia de Rilke: o trabalho teve continuidade depois da publicação de uma primeira coletânea, desdobrando-se numa segunda edição revista e ampliada. No caso de Dickinson, o retorno se deu após a disponibilização dos manuscritos da poeta na internet e da seleção fac-similar, em 2013, de seus “poemas-envelope”. O resultado foi um acréscimo de 45 poemas aos 35 da primeira edição de 2008 da coletânea Não Sou Ninguém. Aos célebres Sépala, pétala e um espinho, Não sou Ninguém! Quem é você?, Morri pela Beleza – e assim que no Jazigo, já presentes na primeira seleção, vêm juntar-se agora, por exemplo, Na Casa eu era a mais esquiva, Há a solidão do espaço e Para fazer um prado abelha e trevo, poemas representativos de temas marcantes, como o do espaço doméstico do quarto ou de um jardim ressignificados pela alma que os imagina.

Um toque especial nesta nova seleção são os versos que fecham o volume, não incluídos em nenhuma das coleções de poesia de Dickinson por se tratar de um trecho de uma carta ao crítico Thomas W. Higginson. São versos que remetem a uma noção de circularidade inerente à obra da autora como um todo, o que mostra o zelo com que Augusto de Campos trabalha, contemplando na coletânea mais de 30 anos de criação, a metade dos poemas concentrados na primeira metade da década de 1860, período que também abrange a fase mais profícua da poesia de Dickinson.

Lembrando que existem outras coletâneas brasileiras em traduções de fôlego, como a da professora Aíla de Oliveira Gomes (Uma Centena de Poemas, Prêmio Jabuti 1985), com rico apêndice de notas, ou a mais recente, de José Lira (A Branca Voz da Solidão, 2011), mantém-se em destaque o cuidadoso trabalho de Augusto de Campos, que, mesmo reivindicando para si “a liberdade da improvisação e do rubato”, continuamente se preocupa com a fidedignidade à prosódia, ao estilo elíptico da autora e a suas particularidades gráficas.

Na transposição dos enigmas do “idioma poético” de Emily Dickinson, é sensível o respeito com que são conseguidos paralelos estéticos sem prejuízo do seu contexto semântico. Isso merece ser ressaltado diante de tantas intervenções que já se fizeram, a começar pela decisão de Thomas W. Higginson, de “corrigir a gramática” de Dickinson em publicações póstumas ainda na década de 1890. Como observou uma vez o poeta português Jorge de Sena, diante da grandeza da “solitária de Amherst”, a fidedignidade de um tradutor, sopesadas as especificidades de cada língua, é o melhor com que ele pode contribuir sem cair na armadilha de tentar decifrar as idiossincrasias do texto ou tomá-las como um laboratório de invenções.

Muitas interpretações da crítica também recaem sobre a vida da poeta, que, como sua obra, é cheia de extravagantes acontecimentos mentais no lugar de aventuras concretas. Os espaços em branco em seus poemas (e em suas cartas) e seu vocabulário de maiúsculas – “Miúdas Fulgências, Ventos”; “Milhões de Eternidades”; “Fossos de Mistério” – são também lidos especularmente em sua biografia de escassas experiências exteriores. No entanto, sejam quais forem essas interpretações, importa que o leitor tenha acesso, antes de tudo, à fonte de onde as mesmas são deduzidas, ou seja, à palavra desta que, estoica ou rebelde, culturalmente ousada ou excêntrica, de temperamento romântico ou irônico, tem sido capaz de atravessar os séculos – e o “Honor sem honra da Fama” – sem perder seu elo verbal com o mundo.

Confira alguns dos poemas da obra:

“Eu temo a Fala escassa –/ O Homem que fala Pouco – / O Falastrão – é oco – O Tagarela – passa –/... Mas O que pesa – Enquanto a Turba – / Ao máximo se expande – / Esse Homem – me perturba – / Temo que seja Grande –” * “Não sou Ninguém! Quem é você? / Ninguém – também? / Então somos um par? / Que triste – ser – Alguém! / Que pública – a Fama – / Dizer seu nome – como a Rã – / Para as palmas da Lama!” * “O Ocaso se abre, aéreo – / E alteia nossa vista / Com ameaças de Ametista / E Fossos de Mistério.” * “A Luz basta-se a si – / Aos Outros dá-se ela / Nos Vidros da Janela/ Certas Horas do Dia. / Mas não privilegia / Ninguém – o mesmo Brilho / Ela também revela / No Himalaia o esquilo.” * “Nesta Colmeia tais/ Dons de Mel eu suponho / Que a Realidade é Sonho / E os Sonhos, Reais –”

NÃO SOU NINGUÉM Autora: Emily Dickinson Tradução: Augusto de Campos Editora: Unicamp (192 págs.; R$ 42)

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