Uma âncora, exumada do corpo morto de um navio, repousa no jardim da casa de Neruda em Isla Negra. Essa imagem, do poema Ode à Âncora, cabe como metáfora incidental dos 21 poemas inéditos que a Fundação Pablo Neruda encontrou ao catalogar os originais manuscritos e datilografados da obra do poeta em 2011, localizando-os e comparando-os aos livros já publicados, inclusive os póstumos.
Como aquela âncora inesperadamente entre plantas e flores, porém sempre alusiva ao mar, ainda que fora dele, essa recolha de inéditos tem forte relação com os livros de odes e navegações de Neruda da década de 1950 e, ao mesmo tempo, em seu conjunto, compõe um livro completamente novo. Com tradução e texto de orelha de Alexei Bueno, introdução e notas de Darío Oses, diretor da Biblioteca e Arquivos da Fundação Pablo Neruda, Teus Pés Toco na Sombra traz ainda, na edição brasileira bilíngue, prólogo de Pere Gimferrer e uma edição fac-similar dos manuscritos.
Pela riqueza de informações fornecida por Oses, sobre a genealogia dos poemas e os prováveis livros aos quais estariam destinados, é possível presumir a época e o lugar de cada texto dentro da incomensurável geografia dos cantos de Neruda, isso quando os próprios inéditos não aparecem datados, alguns deles com registro de local e horário. Entre esses, há a curiosidade de um poema que o autor escreveu no verso de um programa musical, a bordo de um transatlântico, em 1967, e outro manuscrito num menu, contendo uma anotação com a letra de Matilde: “Día 29 - Diciembre 1952 - 11 de la mañana - volando a 3500 metros - de altura entre - Recife y Río Janeiro”.
O conjunto vai de 1952, quando Neruda regressa ao Chile após anos de exílio, a 1973, pouco antes de sua morte. Na maioria, são (14) poemas encontrados em meio a manuscritos de odes de 1954 a 1959. Os demais (exceto o poema de 1973) pertencem à década de 1960 e estão ligados à casa e às recordações do poeta em Isla Negra. Poemas de Amor, seção que abre o livro, reúne seis elogios a Matilde Urrutia, a amada que Neruda mitificou em sua poesia. Na seção Outros Poemas, diversificam-se os motivos, são genealogias do poeta e sua pátria, elementos do homem e do cosmo confundidos, recorrências à força da terra, dos povos, das raças, e aos emblemas vários de sua exploração, como o que está simbolizado em “um siclo de sombra”.
Num inventário de temas representativos do caráter elementar e planetário desse, como dizia Vinicius de Moraes, “cantor geral” que foi Neruda, têm destaque no livro os poemas mais longos, de cunho biográfico, em que o autor trata da própria poética num tom crítico ou sarcástico. Ultrapassando a oposição entre “o literário” e “a vida”, Neruda coloca outro dilema mais difícil: o da vida sem tempo para o tempo da poesia. Exemplo disso é o poema que lembra o terremoto na cidade chilena de Valdivia em 1960: “Agora o homem está ocupado / e não mira o bosque profundo / já não investiga a folhagem / nem lhe caem do céu as folhas / está ocupado o homem agora / ocupado em cavar sua cova”. Ou ainda os antológicos versos que falam da relação do poeta com o telefone: “Eu, poeta torpe como um pato na terra, / fui me corrompendo até conceder / minha orelha superior (que consagrei / com inocência a pássaros e música) / a uma prostituição de cada dia, conectando ao ouvido o inimigo / que foi se apoderando do meu ser”.
Embora diversos poemas tenham sido encontrados entre manuscritos destinados à publicação, caso do poema ao telefone, que seria incluído no livro Defeitos Escolhidos, todos os inéditos formam agora uma geografia especial, que não é apenas do espaço senão também do tempo, quando, depois de aprender a ser tão necessário para um povo como um “bom foguista”, o poeta se torna também “capaz de céu”. É aí que uma estrela, para Neruda, além de encarnar a estrela de Maiakóvski, faz-se matéria de uma poesia futura.
O traço do poeta
Um poema sobre os primeiros astronautas confirma esse interesse (com exemplos em outros livros) por novos descobrimentos, ao que se acrescentam as observações de Darío Oses sobre a interlocução de Neruda com o cosmonauta Alexei Leonov e quanto o atraía essa nova perspectiva da Terra a ponto de escrever em 1962: “A poesia tem que buscar novas palavras para falar dessas coisas”. Sob esse ponto de vista, o leitor poderá ressignificar o verso: “Digo bom-dia ao céu”. Também enriquecedora a nota ao último poema, que remete à “massa existencial” dos mares de Neruda. Desses mares, como aquela âncora num jardim em Isla Negra, carregada de memórias transmigrantes, Teus Pés Toco na Sombra, como um todo, é o poema vivo e necessariamente póstumo de um regresso. Neruda para velhos e novos leitores.
TEUS PÉS TOCO NA SOMBRA E OUTROS POEMAS INÉDITOS
Autor: Pablo Neruda
Trad.: Alexei Bueno
Editora: José Olympio (144 págs.; R$ 28,90; bilíngue)
MARIANA IANELLI É POETA E AUTORA DE O AMOR E DEPOIS, ENTRE OUTRAS OBRAS
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