Cultura, dívidas e dúvidas. Normal?

Memória e perplexidade


Minha infância foi regada a Monteiro Lobato e a Mark Twain. Com a panfletada do Walt Disney no meio. Digo panfletada porque embora os filmes fossem divinos - e olha que demorei para assistir a Fantasia - as histórias impressas vinham de épocas díspares do império. Nos meus seis  anos tinha uns livros bem, bem infância da Disney. Tipo Mickey é o tal! Era o camundongo básico, pretinho, sem camisa, os oito dedos enluvadinhos, a bermuda vermelha, de suspensórios, com botões amarelos. Na verdade um rato cubista, sempre de perfil com as orelhas de frente. Aqueles livros eram uma bobajada para crianças com umas quadrinhas no meio. Que eu sem notar decorei e recitei em uma das festinhas do primeiro ano primário, no palco, na frente de todo mundo da escola, para espanto da minha mãe. Lembro dela falando. "Meu filho declamando? Como assim? Ele não é disso". Lembro dela falando...

Por Redação
Sobre ratos e homens Foto: Estadão

Como eu posso lembrar dela falando se eu estava no palco? No palquinho. Foi em uma festinha do Instituto Lavaquial, na avenida Paissandú, no Flamengo (onde, milênios mais tarde Nelson Motta me falou que morou na mesma época, 1958). Ou será que foi no Instituto Bonsucesso, em Bonsucesso? Meu pai nessa época só dançava na Panair, caiu de posto, foi transferido - a própria Panair dançaria em 1965. E era por isso que só minha mãe aparecia nas festinhas da escola. E eu a lembrar dela olhando para mim no palco me deixa perplexo até hoje.

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A vida foi passando e quando me dei conta do outro Mickey eu já estava chegando aos 18 anos. O orelhudo agora usava chapéu, trench coat com a gola levantada e trabalhava para uma tal Polícia Internacional. Para mim era a CIA mesmo, 1968. Isso seria confirmado poucos anos depois quando cheguei à faculdade e O Pasquim às bancas. O Jaguar, o Lessa, o Tarso, o Henfil e as outras florzinhas me alertaram que "o Mickey nunca passou de um rato". No ambiente acadêmico Ariel Dorfman e seu Para ler o Pato Donald, comunicação de massa e colonialismo deu o respaldo que faltava a isso tudo. Choro e ranger de dentes. De um lado era a Disney, do outro a Coca-Cola, agora alçada à condição de l'acqua nera del'imperialismo, que ruíam fragorosamente. Antigas paixões dando ciao.

Perplexidade. AI-5. Os Beatles se separando. Brian, Janis, Jimi e o sonho morrendo. Marighela caindo na alameda Casa Branca, Lamarca no sertão baiano. Encontro um cara na rua, um músico que sob o sol inclemente de Barretos, onde fui fazer faculdade, me abraça e aos prantos me diz que "agora só falta o Sérgio Mendes!" Perplexidade. A minha e a dele. Eu mesmo caí no choro quando vi Caetano esquálido na televisão, cantando Adeus batucada no Som livre exportação.

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Só voltei 4o anos depois Foto: Estadão

Lembro que saí de casa com a minha namorada. Perplexo. Parei o carro perto do obelisco do MMDC e chorei no colo dela, vivenciando a letra de Soy loco por ti America (Gil, Torquato, Capinan). Morri de bruços nos braços, nos olhos dela, "mais apaixonado ainda / dentro dos braços da camponesa / guerrilheira, manequim, ai de mim / nos braços de quem me queira". Nos braços de quem me queria.

E fiquei chateado porque o Dorfman invocou com o Donald e não com o rato. Eu me relacionava com o mau humor do Donald e o do Tio Patinhas. Me considerava um irmãozinho do Pluto e do Pateta. Até achava a Margarida, a Minnie e a Clarabela interessantes. Mas o Mickey tinha ido longe demais. Só sei que aquelas orelhas foram ficando flou, foram ficando desimportantes, bobas, enfim, e acabaram desaparecendo para dar lugar às graphic novels de Will Eisner, as aventuras de Georges Wolinski, Jules Feiffer, Guido Crepax e de muitos outros. Mas acima de tudo de Robert Crumb. Lembro-me de ler uma entrevista do Clay Wilson, outro ícone quadrinista undergound, em que dizia que o Crumb ignorava os códigos. Como se não existisse HQ antes dele, Crumb desenhava o que via, como um pintor renascentista, como Bruegel.

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E naquela época, quem via o que estava acontecendo ficava perplexo. Em todas as épocas as pessoas ficam perplexas diante de uma realidade desconexa. Hoje em dia, por exemplo. Foi isso mesmo que uma amiga minha, companheira isca de polícia, escreveu na parte que lhe cabe no latifúndio das redes sociais depois de tocar no fim de semana na ocupação da Funarte paulistana. Ela classificou esse sentimento como "perigoso, porque parece que embota os sentidos da gente". Justo ela que achava que nunca mais iria vivenciar uma coisa assim. Só pode ser cirquinho, piada. Eu mesmo me "perplexo" todos os dias. Com gente se deixando ser gravada. Com gente chamando artista de vagabundo. Com obra de metrô na porta de casa sabendo que ela foi "pedalada" pelo governo estadual? Abrindo o jornal e dando com maluco que queria reformar a Candelária carioca para fazer festa de casamento sendo recebido em ministério! Ouvindo falar de estupros coletivos, cujos vídeos são compartilhados, com violência em todos os níveis, com a  vulnerabilidade da economia, do governo, da cidadania, da cultura, das minorias, do Aécio, da diplomacia. É de dar labirintite em estátua.

É pau, é pedra, é o fim. Foto: Estadão
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Como disse, minha infância foi regada a Monteiro Lobato e a Mark Twain. Levei anos para descobrir que este era um pseudônimo. O criador de Tom Sawyer e Huck chamava-se Samuel Clemens. Levei mais tempo ainda para descobrir que foi o próprio Lobato quem inventou para a editora Brasiliense os vendedores autônomos que "obrigaram" meu pai a comprar em suaves prestações além de seus livros, coleções curiosas que englobavam autores díspares. Caso de Twain, Hendrik Van Loon (A história das invenções), e Charles e Mary Lamb (Shakespere em contos - Tales from Shakespeare) na coleção Marcha do Tempo. Ou então de Mira Lobe (Anita e o cinema), Geoffrey Trease (Jovens atores em viagem) e Cor Bruijin (Lasse Länta, o menino lapão) na coleção Jovens do Mundo Todo. Que memória hein?

Mais cedo ou mais tarde isso também me deixaria perplexo. Nunca mais toquei mas também nunca me desfiz dos livros de infância de que só me separei quando me separei da mãe dos meus filhos. Shakespeare, Lobato, Twain, todos eles foram morar no interior de Minas. Em uma de minhas visitas mais demoradas, em uma tarde de calor típica de Urupês, obra-prima de Lobato, fui dar uma folheadinha em um Twain há muito lido e saboreado inúmeras vezes. Acredito que era As aventuras de Huckleberry Finn.

O que aconteceu comigo em seguida era mais digno de uma página de Poe ou Borges, típico de um personagem interpretado por um Vincent Price, Boris Karloff... não, o ideal seria Peter Cushing! Embotamento! Em poucas palavras, a temeridade que pratiquei foi abrir o livro ao acaso e ler. Era dia, mas eu me lembro dos raios, da câmera tremendo, da música explosiva de Bernard Herrmann! Eu havia escrito aquilo! Palavras, expressões, frases inteiras. E não estou falando de literalidade, de repetições. Mas de sensações, de conclusões. Seria eu plagiador? Se isso acontecia com literatura imagina com a música? Imagina com a minha memória? Minha vida seria um looping, um roteiro escrito nos anos 1950?

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Shake's tales Foto: Estadão

Essa perplexidade me acompanha desde então. Felizmente o Mickey eu larguei. Já a Coca-cola... não está sendo fácil.

Sobre ratos e homens Foto: Estadão

Como eu posso lembrar dela falando se eu estava no palco? No palquinho. Foi em uma festinha do Instituto Lavaquial, na avenida Paissandú, no Flamengo (onde, milênios mais tarde Nelson Motta me falou que morou na mesma época, 1958). Ou será que foi no Instituto Bonsucesso, em Bonsucesso? Meu pai nessa época só dançava na Panair, caiu de posto, foi transferido - a própria Panair dançaria em 1965. E era por isso que só minha mãe aparecia nas festinhas da escola. E eu a lembrar dela olhando para mim no palco me deixa perplexo até hoje.

A vida foi passando e quando me dei conta do outro Mickey eu já estava chegando aos 18 anos. O orelhudo agora usava chapéu, trench coat com a gola levantada e trabalhava para uma tal Polícia Internacional. Para mim era a CIA mesmo, 1968. Isso seria confirmado poucos anos depois quando cheguei à faculdade e O Pasquim às bancas. O Jaguar, o Lessa, o Tarso, o Henfil e as outras florzinhas me alertaram que "o Mickey nunca passou de um rato". No ambiente acadêmico Ariel Dorfman e seu Para ler o Pato Donald, comunicação de massa e colonialismo deu o respaldo que faltava a isso tudo. Choro e ranger de dentes. De um lado era a Disney, do outro a Coca-Cola, agora alçada à condição de l'acqua nera del'imperialismo, que ruíam fragorosamente. Antigas paixões dando ciao.

Perplexidade. AI-5. Os Beatles se separando. Brian, Janis, Jimi e o sonho morrendo. Marighela caindo na alameda Casa Branca, Lamarca no sertão baiano. Encontro um cara na rua, um músico que sob o sol inclemente de Barretos, onde fui fazer faculdade, me abraça e aos prantos me diz que "agora só falta o Sérgio Mendes!" Perplexidade. A minha e a dele. Eu mesmo caí no choro quando vi Caetano esquálido na televisão, cantando Adeus batucada no Som livre exportação.

Só voltei 4o anos depois Foto: Estadão

Lembro que saí de casa com a minha namorada. Perplexo. Parei o carro perto do obelisco do MMDC e chorei no colo dela, vivenciando a letra de Soy loco por ti America (Gil, Torquato, Capinan). Morri de bruços nos braços, nos olhos dela, "mais apaixonado ainda / dentro dos braços da camponesa / guerrilheira, manequim, ai de mim / nos braços de quem me queira". Nos braços de quem me queria.

E fiquei chateado porque o Dorfman invocou com o Donald e não com o rato. Eu me relacionava com o mau humor do Donald e o do Tio Patinhas. Me considerava um irmãozinho do Pluto e do Pateta. Até achava a Margarida, a Minnie e a Clarabela interessantes. Mas o Mickey tinha ido longe demais. Só sei que aquelas orelhas foram ficando flou, foram ficando desimportantes, bobas, enfim, e acabaram desaparecendo para dar lugar às graphic novels de Will Eisner, as aventuras de Georges Wolinski, Jules Feiffer, Guido Crepax e de muitos outros. Mas acima de tudo de Robert Crumb. Lembro-me de ler uma entrevista do Clay Wilson, outro ícone quadrinista undergound, em que dizia que o Crumb ignorava os códigos. Como se não existisse HQ antes dele, Crumb desenhava o que via, como um pintor renascentista, como Bruegel.

E naquela época, quem via o que estava acontecendo ficava perplexo. Em todas as épocas as pessoas ficam perplexas diante de uma realidade desconexa. Hoje em dia, por exemplo. Foi isso mesmo que uma amiga minha, companheira isca de polícia, escreveu na parte que lhe cabe no latifúndio das redes sociais depois de tocar no fim de semana na ocupação da Funarte paulistana. Ela classificou esse sentimento como "perigoso, porque parece que embota os sentidos da gente". Justo ela que achava que nunca mais iria vivenciar uma coisa assim. Só pode ser cirquinho, piada. Eu mesmo me "perplexo" todos os dias. Com gente se deixando ser gravada. Com gente chamando artista de vagabundo. Com obra de metrô na porta de casa sabendo que ela foi "pedalada" pelo governo estadual? Abrindo o jornal e dando com maluco que queria reformar a Candelária carioca para fazer festa de casamento sendo recebido em ministério! Ouvindo falar de estupros coletivos, cujos vídeos são compartilhados, com violência em todos os níveis, com a  vulnerabilidade da economia, do governo, da cidadania, da cultura, das minorias, do Aécio, da diplomacia. É de dar labirintite em estátua.

É pau, é pedra, é o fim. Foto: Estadão

Como disse, minha infância foi regada a Monteiro Lobato e a Mark Twain. Levei anos para descobrir que este era um pseudônimo. O criador de Tom Sawyer e Huck chamava-se Samuel Clemens. Levei mais tempo ainda para descobrir que foi o próprio Lobato quem inventou para a editora Brasiliense os vendedores autônomos que "obrigaram" meu pai a comprar em suaves prestações além de seus livros, coleções curiosas que englobavam autores díspares. Caso de Twain, Hendrik Van Loon (A história das invenções), e Charles e Mary Lamb (Shakespere em contos - Tales from Shakespeare) na coleção Marcha do Tempo. Ou então de Mira Lobe (Anita e o cinema), Geoffrey Trease (Jovens atores em viagem) e Cor Bruijin (Lasse Länta, o menino lapão) na coleção Jovens do Mundo Todo. Que memória hein?

Mais cedo ou mais tarde isso também me deixaria perplexo. Nunca mais toquei mas também nunca me desfiz dos livros de infância de que só me separei quando me separei da mãe dos meus filhos. Shakespeare, Lobato, Twain, todos eles foram morar no interior de Minas. Em uma de minhas visitas mais demoradas, em uma tarde de calor típica de Urupês, obra-prima de Lobato, fui dar uma folheadinha em um Twain há muito lido e saboreado inúmeras vezes. Acredito que era As aventuras de Huckleberry Finn.

O que aconteceu comigo em seguida era mais digno de uma página de Poe ou Borges, típico de um personagem interpretado por um Vincent Price, Boris Karloff... não, o ideal seria Peter Cushing! Embotamento! Em poucas palavras, a temeridade que pratiquei foi abrir o livro ao acaso e ler. Era dia, mas eu me lembro dos raios, da câmera tremendo, da música explosiva de Bernard Herrmann! Eu havia escrito aquilo! Palavras, expressões, frases inteiras. E não estou falando de literalidade, de repetições. Mas de sensações, de conclusões. Seria eu plagiador? Se isso acontecia com literatura imagina com a música? Imagina com a minha memória? Minha vida seria um looping, um roteiro escrito nos anos 1950?

Shake's tales Foto: Estadão

Essa perplexidade me acompanha desde então. Felizmente o Mickey eu larguei. Já a Coca-cola... não está sendo fácil.

Sobre ratos e homens Foto: Estadão

Como eu posso lembrar dela falando se eu estava no palco? No palquinho. Foi em uma festinha do Instituto Lavaquial, na avenida Paissandú, no Flamengo (onde, milênios mais tarde Nelson Motta me falou que morou na mesma época, 1958). Ou será que foi no Instituto Bonsucesso, em Bonsucesso? Meu pai nessa época só dançava na Panair, caiu de posto, foi transferido - a própria Panair dançaria em 1965. E era por isso que só minha mãe aparecia nas festinhas da escola. E eu a lembrar dela olhando para mim no palco me deixa perplexo até hoje.

A vida foi passando e quando me dei conta do outro Mickey eu já estava chegando aos 18 anos. O orelhudo agora usava chapéu, trench coat com a gola levantada e trabalhava para uma tal Polícia Internacional. Para mim era a CIA mesmo, 1968. Isso seria confirmado poucos anos depois quando cheguei à faculdade e O Pasquim às bancas. O Jaguar, o Lessa, o Tarso, o Henfil e as outras florzinhas me alertaram que "o Mickey nunca passou de um rato". No ambiente acadêmico Ariel Dorfman e seu Para ler o Pato Donald, comunicação de massa e colonialismo deu o respaldo que faltava a isso tudo. Choro e ranger de dentes. De um lado era a Disney, do outro a Coca-Cola, agora alçada à condição de l'acqua nera del'imperialismo, que ruíam fragorosamente. Antigas paixões dando ciao.

Perplexidade. AI-5. Os Beatles se separando. Brian, Janis, Jimi e o sonho morrendo. Marighela caindo na alameda Casa Branca, Lamarca no sertão baiano. Encontro um cara na rua, um músico que sob o sol inclemente de Barretos, onde fui fazer faculdade, me abraça e aos prantos me diz que "agora só falta o Sérgio Mendes!" Perplexidade. A minha e a dele. Eu mesmo caí no choro quando vi Caetano esquálido na televisão, cantando Adeus batucada no Som livre exportação.

Só voltei 4o anos depois Foto: Estadão

Lembro que saí de casa com a minha namorada. Perplexo. Parei o carro perto do obelisco do MMDC e chorei no colo dela, vivenciando a letra de Soy loco por ti America (Gil, Torquato, Capinan). Morri de bruços nos braços, nos olhos dela, "mais apaixonado ainda / dentro dos braços da camponesa / guerrilheira, manequim, ai de mim / nos braços de quem me queira". Nos braços de quem me queria.

E fiquei chateado porque o Dorfman invocou com o Donald e não com o rato. Eu me relacionava com o mau humor do Donald e o do Tio Patinhas. Me considerava um irmãozinho do Pluto e do Pateta. Até achava a Margarida, a Minnie e a Clarabela interessantes. Mas o Mickey tinha ido longe demais. Só sei que aquelas orelhas foram ficando flou, foram ficando desimportantes, bobas, enfim, e acabaram desaparecendo para dar lugar às graphic novels de Will Eisner, as aventuras de Georges Wolinski, Jules Feiffer, Guido Crepax e de muitos outros. Mas acima de tudo de Robert Crumb. Lembro-me de ler uma entrevista do Clay Wilson, outro ícone quadrinista undergound, em que dizia que o Crumb ignorava os códigos. Como se não existisse HQ antes dele, Crumb desenhava o que via, como um pintor renascentista, como Bruegel.

E naquela época, quem via o que estava acontecendo ficava perplexo. Em todas as épocas as pessoas ficam perplexas diante de uma realidade desconexa. Hoje em dia, por exemplo. Foi isso mesmo que uma amiga minha, companheira isca de polícia, escreveu na parte que lhe cabe no latifúndio das redes sociais depois de tocar no fim de semana na ocupação da Funarte paulistana. Ela classificou esse sentimento como "perigoso, porque parece que embota os sentidos da gente". Justo ela que achava que nunca mais iria vivenciar uma coisa assim. Só pode ser cirquinho, piada. Eu mesmo me "perplexo" todos os dias. Com gente se deixando ser gravada. Com gente chamando artista de vagabundo. Com obra de metrô na porta de casa sabendo que ela foi "pedalada" pelo governo estadual? Abrindo o jornal e dando com maluco que queria reformar a Candelária carioca para fazer festa de casamento sendo recebido em ministério! Ouvindo falar de estupros coletivos, cujos vídeos são compartilhados, com violência em todos os níveis, com a  vulnerabilidade da economia, do governo, da cidadania, da cultura, das minorias, do Aécio, da diplomacia. É de dar labirintite em estátua.

É pau, é pedra, é o fim. Foto: Estadão

Como disse, minha infância foi regada a Monteiro Lobato e a Mark Twain. Levei anos para descobrir que este era um pseudônimo. O criador de Tom Sawyer e Huck chamava-se Samuel Clemens. Levei mais tempo ainda para descobrir que foi o próprio Lobato quem inventou para a editora Brasiliense os vendedores autônomos que "obrigaram" meu pai a comprar em suaves prestações além de seus livros, coleções curiosas que englobavam autores díspares. Caso de Twain, Hendrik Van Loon (A história das invenções), e Charles e Mary Lamb (Shakespere em contos - Tales from Shakespeare) na coleção Marcha do Tempo. Ou então de Mira Lobe (Anita e o cinema), Geoffrey Trease (Jovens atores em viagem) e Cor Bruijin (Lasse Länta, o menino lapão) na coleção Jovens do Mundo Todo. Que memória hein?

Mais cedo ou mais tarde isso também me deixaria perplexo. Nunca mais toquei mas também nunca me desfiz dos livros de infância de que só me separei quando me separei da mãe dos meus filhos. Shakespeare, Lobato, Twain, todos eles foram morar no interior de Minas. Em uma de minhas visitas mais demoradas, em uma tarde de calor típica de Urupês, obra-prima de Lobato, fui dar uma folheadinha em um Twain há muito lido e saboreado inúmeras vezes. Acredito que era As aventuras de Huckleberry Finn.

O que aconteceu comigo em seguida era mais digno de uma página de Poe ou Borges, típico de um personagem interpretado por um Vincent Price, Boris Karloff... não, o ideal seria Peter Cushing! Embotamento! Em poucas palavras, a temeridade que pratiquei foi abrir o livro ao acaso e ler. Era dia, mas eu me lembro dos raios, da câmera tremendo, da música explosiva de Bernard Herrmann! Eu havia escrito aquilo! Palavras, expressões, frases inteiras. E não estou falando de literalidade, de repetições. Mas de sensações, de conclusões. Seria eu plagiador? Se isso acontecia com literatura imagina com a música? Imagina com a minha memória? Minha vida seria um looping, um roteiro escrito nos anos 1950?

Shake's tales Foto: Estadão

Essa perplexidade me acompanha desde então. Felizmente o Mickey eu larguei. Já a Coca-cola... não está sendo fácil.

Sobre ratos e homens Foto: Estadão

Como eu posso lembrar dela falando se eu estava no palco? No palquinho. Foi em uma festinha do Instituto Lavaquial, na avenida Paissandú, no Flamengo (onde, milênios mais tarde Nelson Motta me falou que morou na mesma época, 1958). Ou será que foi no Instituto Bonsucesso, em Bonsucesso? Meu pai nessa época só dançava na Panair, caiu de posto, foi transferido - a própria Panair dançaria em 1965. E era por isso que só minha mãe aparecia nas festinhas da escola. E eu a lembrar dela olhando para mim no palco me deixa perplexo até hoje.

A vida foi passando e quando me dei conta do outro Mickey eu já estava chegando aos 18 anos. O orelhudo agora usava chapéu, trench coat com a gola levantada e trabalhava para uma tal Polícia Internacional. Para mim era a CIA mesmo, 1968. Isso seria confirmado poucos anos depois quando cheguei à faculdade e O Pasquim às bancas. O Jaguar, o Lessa, o Tarso, o Henfil e as outras florzinhas me alertaram que "o Mickey nunca passou de um rato". No ambiente acadêmico Ariel Dorfman e seu Para ler o Pato Donald, comunicação de massa e colonialismo deu o respaldo que faltava a isso tudo. Choro e ranger de dentes. De um lado era a Disney, do outro a Coca-Cola, agora alçada à condição de l'acqua nera del'imperialismo, que ruíam fragorosamente. Antigas paixões dando ciao.

Perplexidade. AI-5. Os Beatles se separando. Brian, Janis, Jimi e o sonho morrendo. Marighela caindo na alameda Casa Branca, Lamarca no sertão baiano. Encontro um cara na rua, um músico que sob o sol inclemente de Barretos, onde fui fazer faculdade, me abraça e aos prantos me diz que "agora só falta o Sérgio Mendes!" Perplexidade. A minha e a dele. Eu mesmo caí no choro quando vi Caetano esquálido na televisão, cantando Adeus batucada no Som livre exportação.

Só voltei 4o anos depois Foto: Estadão

Lembro que saí de casa com a minha namorada. Perplexo. Parei o carro perto do obelisco do MMDC e chorei no colo dela, vivenciando a letra de Soy loco por ti America (Gil, Torquato, Capinan). Morri de bruços nos braços, nos olhos dela, "mais apaixonado ainda / dentro dos braços da camponesa / guerrilheira, manequim, ai de mim / nos braços de quem me queira". Nos braços de quem me queria.

E fiquei chateado porque o Dorfman invocou com o Donald e não com o rato. Eu me relacionava com o mau humor do Donald e o do Tio Patinhas. Me considerava um irmãozinho do Pluto e do Pateta. Até achava a Margarida, a Minnie e a Clarabela interessantes. Mas o Mickey tinha ido longe demais. Só sei que aquelas orelhas foram ficando flou, foram ficando desimportantes, bobas, enfim, e acabaram desaparecendo para dar lugar às graphic novels de Will Eisner, as aventuras de Georges Wolinski, Jules Feiffer, Guido Crepax e de muitos outros. Mas acima de tudo de Robert Crumb. Lembro-me de ler uma entrevista do Clay Wilson, outro ícone quadrinista undergound, em que dizia que o Crumb ignorava os códigos. Como se não existisse HQ antes dele, Crumb desenhava o que via, como um pintor renascentista, como Bruegel.

E naquela época, quem via o que estava acontecendo ficava perplexo. Em todas as épocas as pessoas ficam perplexas diante de uma realidade desconexa. Hoje em dia, por exemplo. Foi isso mesmo que uma amiga minha, companheira isca de polícia, escreveu na parte que lhe cabe no latifúndio das redes sociais depois de tocar no fim de semana na ocupação da Funarte paulistana. Ela classificou esse sentimento como "perigoso, porque parece que embota os sentidos da gente". Justo ela que achava que nunca mais iria vivenciar uma coisa assim. Só pode ser cirquinho, piada. Eu mesmo me "perplexo" todos os dias. Com gente se deixando ser gravada. Com gente chamando artista de vagabundo. Com obra de metrô na porta de casa sabendo que ela foi "pedalada" pelo governo estadual? Abrindo o jornal e dando com maluco que queria reformar a Candelária carioca para fazer festa de casamento sendo recebido em ministério! Ouvindo falar de estupros coletivos, cujos vídeos são compartilhados, com violência em todos os níveis, com a  vulnerabilidade da economia, do governo, da cidadania, da cultura, das minorias, do Aécio, da diplomacia. É de dar labirintite em estátua.

É pau, é pedra, é o fim. Foto: Estadão

Como disse, minha infância foi regada a Monteiro Lobato e a Mark Twain. Levei anos para descobrir que este era um pseudônimo. O criador de Tom Sawyer e Huck chamava-se Samuel Clemens. Levei mais tempo ainda para descobrir que foi o próprio Lobato quem inventou para a editora Brasiliense os vendedores autônomos que "obrigaram" meu pai a comprar em suaves prestações além de seus livros, coleções curiosas que englobavam autores díspares. Caso de Twain, Hendrik Van Loon (A história das invenções), e Charles e Mary Lamb (Shakespere em contos - Tales from Shakespeare) na coleção Marcha do Tempo. Ou então de Mira Lobe (Anita e o cinema), Geoffrey Trease (Jovens atores em viagem) e Cor Bruijin (Lasse Länta, o menino lapão) na coleção Jovens do Mundo Todo. Que memória hein?

Mais cedo ou mais tarde isso também me deixaria perplexo. Nunca mais toquei mas também nunca me desfiz dos livros de infância de que só me separei quando me separei da mãe dos meus filhos. Shakespeare, Lobato, Twain, todos eles foram morar no interior de Minas. Em uma de minhas visitas mais demoradas, em uma tarde de calor típica de Urupês, obra-prima de Lobato, fui dar uma folheadinha em um Twain há muito lido e saboreado inúmeras vezes. Acredito que era As aventuras de Huckleberry Finn.

O que aconteceu comigo em seguida era mais digno de uma página de Poe ou Borges, típico de um personagem interpretado por um Vincent Price, Boris Karloff... não, o ideal seria Peter Cushing! Embotamento! Em poucas palavras, a temeridade que pratiquei foi abrir o livro ao acaso e ler. Era dia, mas eu me lembro dos raios, da câmera tremendo, da música explosiva de Bernard Herrmann! Eu havia escrito aquilo! Palavras, expressões, frases inteiras. E não estou falando de literalidade, de repetições. Mas de sensações, de conclusões. Seria eu plagiador? Se isso acontecia com literatura imagina com a música? Imagina com a minha memória? Minha vida seria um looping, um roteiro escrito nos anos 1950?

Shake's tales Foto: Estadão

Essa perplexidade me acompanha desde então. Felizmente o Mickey eu larguei. Já a Coca-cola... não está sendo fácil.

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