O cinema pode ser muitas coisas - ferramenta crítica, de conhecimento ou autoconhecimento, denúncia social, fascínio ou sedução. Em especial estes últimos, principalmente quando se fala do cinema de Hollywood. E é sobre este, de maneira preferencial, que Cabrera Infante se debruça. Com uma lucidez muito grande, mas também com seu senso de ironia afiado, um tipo de distanciamento que jamais abole a paixão, esse combustível indispensável a todo cinéfilo digno desse nome. E Cabrera Infante era um, antes de tudo.
Em primeiro lugar, vamos distinguir as coisas - não se trata aqui de uma coletânea de textos críticos. Cabrera Infante foi crítico de cinema durante muitos anos, escrevendo sob o pseudônimo de G. Caín. Há uma coletânea desses textos críticos, em espanhol, chamada de El Cronista de Cine. Em Cinema ou Sardinha temos escritos de outra ordem, mais gerais, digamos assim, abordando aspectos mais amplos do cinema e não filmes em particular. As obras entram como partes da exposição, e não como objetos de análise em si, como costuma acontecer na crítica. Digamos assim, para simplificar: a crítica seria mais "objetiva", enquanto os textos aqui propostos respiram mais a paixão do escritor e, portanto, sua subjetividade. De fato, para ser rigoroso, não existe crítica "objetiva" e nem delas as paixões estão ausentes.
E de que trata Cabrera Infante? De assuntos gerais do cinema, mas acima de tudo de seus personagens - pioneiros como Louis Lumière e Georges Mélies, diretores como Vincente Minelli, John Ford e Howard Hawks, atores como Humphrey Bogart e John Wayne e, acima de tudo, atrizes, as deusas de Hollywood e também de outras paragens. Se fôssemos tomar como destaque algum ponto desse livro multifacetado seria o amor por essas mulheres transformadas em deusas pela (perdão, leitores) "magia do cinema".
Há uma passagem que diz bem dessa paixão cinéfila pelas deusas, assim descrita por Cabrera Infante. Conta ele de uma conversa entre grande fotógrafo espanhol-cubano Néstor Almendros ao escritor argentino Manuel Puig, ambos residentes em Nova York. Na época nenhum dos dois era famoso e viviam com pouco dinheiro. Puig insistiu para que Almendros deixasse o hotel e viesse morar em seu cubículo. Começaram a conversar sobre cinema, claro. E, a certa altura, Almendros declarou que não gostava nada de Lana Turner. "Sério?", espantou-se Puig. "Seríssimo", respondeu o outro, pelo que foi imediatamente expulso da residência. "Não posso ficar debaixo do mesmo teto com uma pessoa que detesta a divina Lana!", gritava Puig, de fato indignado.
Era uma época em que paixões cinematográficas podiam desfazer amizades e mesmo casamentos. Cabrera não se faz de rogado e declara sua devoção a María Félix, a atriz mexicana de Doña Bárbara. No índice Cabrera Infante de sedução feminina, vinham, em seguida, Hedy Lamaar, Marlene Dietrich, Dolores del Río e Greta Garbo. Mas nenhuma competia com María que, por isso, ganha um artigo inteiro só para si: Ave Félix. A ponto de escrever: "Ela é seu próprio padrão de beleza, só se pode compará-la a ela mesma. Sua gestalt decompõe-se na longa cabeleira ondulada, no queixo dividido e nos olhos onde dança uma chispa: - a dança do fogo fátuo". A ponto de um amigo ter-se encontrado com María, já entrada em anos e comentado que ainda era bela. O "ainda" magoou Cabrera. Não a ponto de expulsar o interlocutor do recinto, mas de lhe explicar que "ainda" bela não fazia justiça a María Félix, como não faria a Vênus. A cronologia dos mortais não se aplica a deusas.
Ah, sim, o título. O próprio Cabrera conta: "Na minha cidadezinha, quando éramos crianças, minha mãe perguntava a mim e a meu irmão se preferíamos ir ao cinema ou comer, com a frase festiva: cinema ou sardinha? Nunca escolhíamos a sardinha."
Cinema é devoção. E vale mais que a fome.