Maria Alice Vergueiro reencontra Brecht


Co-fundadora do Teatro do Ornitorrinco celebra 40 anos de carreira protagonizando Mãe Coragem, a obra-prima do autor alemão, que terá direção de Sérgio Ferrara

Por Agencia Estado

Em meio aos ventos de guerra que correm agora o planeta, uma atriz paulistana prepara sua carroça e apronta-se para viajar. Em breve, partirá para a guerra. Não a real, mas a virtual, que se dá no território da arte, denunciando a absurda insensatez de todas as guerras. Notável figura, a premiada Maria Alice Vergueiro, co-fundadora do Teatro do Ornitorrinco, que criou em 1977 ao lado de Luiz Roberto Galizia (1952-1985) e Cacá Rosset, vai comemorar 40 anos de carreira em 2002. Sem protagonizar uma peça desde 1997, quando ganhou o Mambembe e o Shell por No Alvo, de Thomas Bernhard, Maria Alice celebrará suas quatro décadas teatrais em grande estilo. Voltará ao palco em meados de abril, puxando a carroça de Mãe Coragem, obra-prima de Bertolt Brecht (1898-1956), com música de Paul Dessau (1894-1979). Considerada uma das grandes peças do século 20, a tragédia, concluída em 1939, põe em cena uma mulher que, acompanhada por três filhos, segue exércitos europeus na Guerra dos 30 Anos (1618-1648). A guerra é o ganha-pão da família, que possui uma carroça e vende aos soldados comida, bebida e bugigangas. Quando Maria Alice Vergueiro pisar no palco do Teatro Sesc Anchieta encarnando a ambulante Coragem, estará seguindo pegadas de ilustríssimas predecessoras, entre elas Helene Weigel, mulher de Brecht, que desempenhou o papel na abertura do Berliner Ensemble, em 1949, e Lélia Abramo, a primeira brasileira que o interpretou, numa montagem de 1960 produzida por Ruth Escobar. Bertolt Brecht, que várias vezes usou o teatro clássico como mote para seus textos, criou em Coragem uma nova Hécuba. Como a rainha de As Troianas, de Eurípedes, a anti-heroína do autor alemão é forte, destemida. E forçada a enfrentar a guerra, que a despojará de tudo que tem. Sonho antigo - Fazer Mãe Coragem é um velho sonho de Maria Alice. E um tributo seu ao ator e diretor Luiz Roberto Galizia, dos mais talentosos e irrequietos artistas do palco brasileiro nos anos 70/80. "Era um projeto nosso, de Galizia, Cacá e meu", diz ela. "Aliás, Galizia tinha altos sonhos para mim, entre eles Mãe Coragem. Eu estava no teatro havia 15 anos e fazia sempre papéis debochados. Ele insistia comigo para ousar mais. Dirigiu-me em A Mais Forte, de Strindberg, primeira peça do Ornitorrinco. Pensávamos até em montar um Ibsen. Ele ficaria feliz ao ver que vou encarar Coragem." Maria Alice incluirá na peça uma canção de B.B. que Galizia traduziu para o show Ornitorrinco Canta Brecht e Weill (1970). O cenário da conversa com a reportagem é o estúdio de Maria Alice Vergueiro, diminuta e acolhedora casa numa miniatura de vila no bairro de Campos Elíseos. Em uma das paredes, de tijolos pintados de branco, destacam-se pôsteres de guerrilheiros do teatro: Antonin Artaud, Samuel Beckett e, claro, Bertolt Brecht. À sombra deles, a bela matrona de cabelos arruivados e porte altivo, nascida em família aristocrática e tornada ícone da contracultura, fala com veemência de seu novo projeto. "Não estou voltando ao teatro", diz. "Estou indo, seguindo adiante." Acrescenta: "A Mãe Coragem que vou fazer com Sérgio Ferrara na direção não tem muito a ver com essa guerra que George W. Bush iniciou depois do atentado de setembro. Fiquei horrorizada com aquilo. Mas não sei se estou do lado deles, pensando em tudo o que fizeram e fazem pelo mundo. A guerra que vamos pôr em cena tem tudo a ver, isso sim, com essa que vemos aqui, em cada rua, todos os dias. Nossas mães coragens são essas mulheres que puxam carroça, que lutam pra pôr comida na mesa da família e no domingo vão ver o filho que está no Carandiru porque já matou uns tantos." Professora da lendária Escola de Aplicação, mãe de dois filhos, mulher de magistrado, Maria Alice Vergueiro só se assumiu como atriz depois de se separar do marido. Em 1962 estreou em A Mandrágora, de Maquiavel, no Teatro de Arena, dirigida por Augusto Boal. E em 1964 teve seu primeiro encontro com Brecht, o dramaturgo que mais interpretou. Era uma das prostitutas da produção de Ruth Escobar de A Ópera dos Três Vinténs, dirigida por José Renato, com cenários de Flávio Império, em que Oswaldo Loureiro fez Mac Navalha. Em 1978, seria uma das estrelas da Ópera do Malandro, que Chico Buarque adaptou do original brechtiano, em célebre montagem dirigida por Luiz Antonio Martinez Correa. De Brecht, atuou ainda em Lux in Tenebris, O Casamento do Pequeno Burguês, Galileu Galilei, Mahagonny. Também estrelou shows alimentados pelo cancioneiro de Brecht e seus vários parceiros musicais: Ornitorrinco Canta..., Lírio do Inferno, E Ponha o Tédio no Ó... e A Velha Dama Indigna, nome de um conto do dramaturgo que durante muito tempo Maria Alice Vergueiro usou, com feroz humor, para se autodefinir. Mas não só de Brecht foi feita sua carreira. O trajeto de Maria Alice vai de O Rei da Vela e Gracias Señor, em 1971/72, com o Oficina de Zé Celso, a Katastrophé, de Samuel Beckett, sob direção de Rubens Rusche, em 1986, e Electra com Creta, de Gerald Thomas, em 1987. Não poucas vezes seus trabalhos foram causa de escândalo. Um dos mais rumorosos, a performance feminista A Pororoca, estreou em 1984 sob direção de Luiz Galizia. Durante as apresentações em um festival de Nova York, o texto provocador e a atuação extrovertida de Maria Alice e de Magali Biff causaram uma polêmica que foi parar nas páginas dos jornais e na tela da TV Globo, provocando acessos de ira nos censores e moralistas de plantão. Em Mãe Coragem, Maria Alice Vergueiro vai trabalhar pela primeira vez com Sérgio Ferrara, que, criando em seqüência Barrela, Pobre Super-Homem e Abajur Lilás, tornou-se um encenador em grande evidência. A atriz conheceu-o assistindo aos seus espetáculos. "Sou muito curiosa sobre o trabalho de diretores jovens. Ia ver os trabalhos de Serginho e ficava impressionada, percebia que ele é um diretor de atores, mais até que um diretor de espetáculos. Estava muito querendo trabalhar com alguém assim. Depois de ver Abajur Lilás, eu o encontrei no saguão do teatro e dei-lhe um grande abraço. Enquanto retribuía, Sérgio disse: ´Quero trabalhar com você.´ Respondi que também queria. Selamos um pacto. Uma semana depois ele me ligou e perguntou o que eu achava de fazermos Mãe Coragem. Tremi na base. Mas fiquei apaixonada pela idéia. Aceitei." Ironia - A produção vai estrear no primeiro semestre de 2002. Além do apoio do Sesc, conta com o das Oficinas Culturais Oswald de Andrade, da Secretaria de Estado da Cultura, que durante a montagem desenvolverá atividades de formação com os profissionais envolvidos em Mãe Coragem. Miguel Briamonte assina a direção musical. Os cenários e figurinos são de J.C. Serroni e da equipe do Espaço Cenográfico. A luz será de Davi de Brito. No elenco, que começa a ser formado agora, já estão certos os nomes de Luciano Chirolli e José Rubens Chachá. Sobre os outros papéis, alguns já têm candidatos em vista, outros permanecem em aberto. "Eu e Sérgio temos muita vontade de que alguns atores se escolham", diz. "Queremos gente disposta a mergulhar conosco nesse mundo." E como é o mundo de Mãe Coragem? "A peça é terrível, mas muito engraçada", diz Maria Alice. "Brecht começa falando da importância da guerra. Com sua ironia esmagadora, argumenta que só na guerra as pessoas têm disciplina, são alguém. Na paz todo mundo esbanja, come demais. Então, a guerra é boa. Assim pensa Coragem, que vive da guerra." Para a atriz, texto de Brecht mostra uma mulher que vê a guerra "não por um viés ideológico ou místico, mas de forma prática e objetiva. Olha o conflito como uma luta pelo poder, algo muito próximo do que estamos testemunhando neste momento." Preço da vida - Para Coragem, diz Maria Alice, "não há lado certo ou errado. Ela quer é fazer seu negócio. Esse é o tema de Brecht: o preço da vida. E ele mostra isso por meio de uma personagem forte, que cai e se levanta, vai adiante, não fraqueja. É uma mulher aventureira, vendedora ambulante na guerra. Coragem nunca seria dona de lojinha em uma cidade tranqüila". E essa mulher pragmática "é uma fera enquanto mãe. Defende a prole com unhas e dentes, até as últimas conseqüências. Mas tem algo de animal, também. Quando preciso, enterra filhos e segue o caminho. E esse seguir adiante não é um heróico. Ela avança, teimosa, contra a corrente". O reencontro com o teatro de Brecht é especialmente prazeroso para Maria Alice Vergueiro. "Desde 1964, quando fiz A Ópera dos Três Vinténs, eu me enamorei dele. Não o conhecia antes. Fui então ler seus textos, e as poesias, que comecei a trabalhar com meus alunos. Montei Luculus com uma turma da quarta série ginasial. Ao fazer a Ópera, comecei a perceber como Brecht via o mundo. E concordei com ele, com sua perspectiva das coisas, sua raiva da burguesia, da hipocrisia deste mundo. Sou apaixonada pelos anti-heróis de Brecht. E Mãe Coragem é uma das maiores figuras dele." "Já me sinto em estado de ensaios", afirma Maria Alice, embora falte mais um mês para o início dos trabalhos, marcado para meados de janeiro. "Começo a ´ver´ Mãe Coragem. Percebo seus contornos. Estou estudando o texto, revendo a tradução de Geir Campos. Mãe Coragem começou a me cercar." A atriz trabalha todas as tardes na revisão da tradução, em parceria com o diretor Ferrara. Ao redor do Natal deverá ser feita uma primeira leitura do texto. Mãe Coragem marca um retorno. "Nestes últimos anos, senti que já havia feito o que queria. Trabalhei com grandes diretores, excelentes atores, nunca concedi - exceto uma novela na Globo (Sassaricando, 1987), em que fiquei totalmente perdida -, e pensei ter dado minha contribuição." O encontro com Sérgio Ferrara e a interpretação de Mãe Coragem mudaram tudo. "Estou voltando. Ou melhor, estou indo, seguindo em frente", repete. E prepara-se para puxar a carroça. "Contei ao meu geriatra que ia ter de puxar uma carroça, perguntei a ele o que achava, e ele me disse para considerar, para ver se não arranjava quem puxasse em meu lugar." Uma gargalhada ampla, gostosa, encerra a frase e a conversa.

Em meio aos ventos de guerra que correm agora o planeta, uma atriz paulistana prepara sua carroça e apronta-se para viajar. Em breve, partirá para a guerra. Não a real, mas a virtual, que se dá no território da arte, denunciando a absurda insensatez de todas as guerras. Notável figura, a premiada Maria Alice Vergueiro, co-fundadora do Teatro do Ornitorrinco, que criou em 1977 ao lado de Luiz Roberto Galizia (1952-1985) e Cacá Rosset, vai comemorar 40 anos de carreira em 2002. Sem protagonizar uma peça desde 1997, quando ganhou o Mambembe e o Shell por No Alvo, de Thomas Bernhard, Maria Alice celebrará suas quatro décadas teatrais em grande estilo. Voltará ao palco em meados de abril, puxando a carroça de Mãe Coragem, obra-prima de Bertolt Brecht (1898-1956), com música de Paul Dessau (1894-1979). Considerada uma das grandes peças do século 20, a tragédia, concluída em 1939, põe em cena uma mulher que, acompanhada por três filhos, segue exércitos europeus na Guerra dos 30 Anos (1618-1648). A guerra é o ganha-pão da família, que possui uma carroça e vende aos soldados comida, bebida e bugigangas. Quando Maria Alice Vergueiro pisar no palco do Teatro Sesc Anchieta encarnando a ambulante Coragem, estará seguindo pegadas de ilustríssimas predecessoras, entre elas Helene Weigel, mulher de Brecht, que desempenhou o papel na abertura do Berliner Ensemble, em 1949, e Lélia Abramo, a primeira brasileira que o interpretou, numa montagem de 1960 produzida por Ruth Escobar. Bertolt Brecht, que várias vezes usou o teatro clássico como mote para seus textos, criou em Coragem uma nova Hécuba. Como a rainha de As Troianas, de Eurípedes, a anti-heroína do autor alemão é forte, destemida. E forçada a enfrentar a guerra, que a despojará de tudo que tem. Sonho antigo - Fazer Mãe Coragem é um velho sonho de Maria Alice. E um tributo seu ao ator e diretor Luiz Roberto Galizia, dos mais talentosos e irrequietos artistas do palco brasileiro nos anos 70/80. "Era um projeto nosso, de Galizia, Cacá e meu", diz ela. "Aliás, Galizia tinha altos sonhos para mim, entre eles Mãe Coragem. Eu estava no teatro havia 15 anos e fazia sempre papéis debochados. Ele insistia comigo para ousar mais. Dirigiu-me em A Mais Forte, de Strindberg, primeira peça do Ornitorrinco. Pensávamos até em montar um Ibsen. Ele ficaria feliz ao ver que vou encarar Coragem." Maria Alice incluirá na peça uma canção de B.B. que Galizia traduziu para o show Ornitorrinco Canta Brecht e Weill (1970). O cenário da conversa com a reportagem é o estúdio de Maria Alice Vergueiro, diminuta e acolhedora casa numa miniatura de vila no bairro de Campos Elíseos. Em uma das paredes, de tijolos pintados de branco, destacam-se pôsteres de guerrilheiros do teatro: Antonin Artaud, Samuel Beckett e, claro, Bertolt Brecht. À sombra deles, a bela matrona de cabelos arruivados e porte altivo, nascida em família aristocrática e tornada ícone da contracultura, fala com veemência de seu novo projeto. "Não estou voltando ao teatro", diz. "Estou indo, seguindo adiante." Acrescenta: "A Mãe Coragem que vou fazer com Sérgio Ferrara na direção não tem muito a ver com essa guerra que George W. Bush iniciou depois do atentado de setembro. Fiquei horrorizada com aquilo. Mas não sei se estou do lado deles, pensando em tudo o que fizeram e fazem pelo mundo. A guerra que vamos pôr em cena tem tudo a ver, isso sim, com essa que vemos aqui, em cada rua, todos os dias. Nossas mães coragens são essas mulheres que puxam carroça, que lutam pra pôr comida na mesa da família e no domingo vão ver o filho que está no Carandiru porque já matou uns tantos." Professora da lendária Escola de Aplicação, mãe de dois filhos, mulher de magistrado, Maria Alice Vergueiro só se assumiu como atriz depois de se separar do marido. Em 1962 estreou em A Mandrágora, de Maquiavel, no Teatro de Arena, dirigida por Augusto Boal. E em 1964 teve seu primeiro encontro com Brecht, o dramaturgo que mais interpretou. Era uma das prostitutas da produção de Ruth Escobar de A Ópera dos Três Vinténs, dirigida por José Renato, com cenários de Flávio Império, em que Oswaldo Loureiro fez Mac Navalha. Em 1978, seria uma das estrelas da Ópera do Malandro, que Chico Buarque adaptou do original brechtiano, em célebre montagem dirigida por Luiz Antonio Martinez Correa. De Brecht, atuou ainda em Lux in Tenebris, O Casamento do Pequeno Burguês, Galileu Galilei, Mahagonny. Também estrelou shows alimentados pelo cancioneiro de Brecht e seus vários parceiros musicais: Ornitorrinco Canta..., Lírio do Inferno, E Ponha o Tédio no Ó... e A Velha Dama Indigna, nome de um conto do dramaturgo que durante muito tempo Maria Alice Vergueiro usou, com feroz humor, para se autodefinir. Mas não só de Brecht foi feita sua carreira. O trajeto de Maria Alice vai de O Rei da Vela e Gracias Señor, em 1971/72, com o Oficina de Zé Celso, a Katastrophé, de Samuel Beckett, sob direção de Rubens Rusche, em 1986, e Electra com Creta, de Gerald Thomas, em 1987. Não poucas vezes seus trabalhos foram causa de escândalo. Um dos mais rumorosos, a performance feminista A Pororoca, estreou em 1984 sob direção de Luiz Galizia. Durante as apresentações em um festival de Nova York, o texto provocador e a atuação extrovertida de Maria Alice e de Magali Biff causaram uma polêmica que foi parar nas páginas dos jornais e na tela da TV Globo, provocando acessos de ira nos censores e moralistas de plantão. Em Mãe Coragem, Maria Alice Vergueiro vai trabalhar pela primeira vez com Sérgio Ferrara, que, criando em seqüência Barrela, Pobre Super-Homem e Abajur Lilás, tornou-se um encenador em grande evidência. A atriz conheceu-o assistindo aos seus espetáculos. "Sou muito curiosa sobre o trabalho de diretores jovens. Ia ver os trabalhos de Serginho e ficava impressionada, percebia que ele é um diretor de atores, mais até que um diretor de espetáculos. Estava muito querendo trabalhar com alguém assim. Depois de ver Abajur Lilás, eu o encontrei no saguão do teatro e dei-lhe um grande abraço. Enquanto retribuía, Sérgio disse: ´Quero trabalhar com você.´ Respondi que também queria. Selamos um pacto. Uma semana depois ele me ligou e perguntou o que eu achava de fazermos Mãe Coragem. Tremi na base. Mas fiquei apaixonada pela idéia. Aceitei." Ironia - A produção vai estrear no primeiro semestre de 2002. Além do apoio do Sesc, conta com o das Oficinas Culturais Oswald de Andrade, da Secretaria de Estado da Cultura, que durante a montagem desenvolverá atividades de formação com os profissionais envolvidos em Mãe Coragem. Miguel Briamonte assina a direção musical. Os cenários e figurinos são de J.C. Serroni e da equipe do Espaço Cenográfico. A luz será de Davi de Brito. No elenco, que começa a ser formado agora, já estão certos os nomes de Luciano Chirolli e José Rubens Chachá. Sobre os outros papéis, alguns já têm candidatos em vista, outros permanecem em aberto. "Eu e Sérgio temos muita vontade de que alguns atores se escolham", diz. "Queremos gente disposta a mergulhar conosco nesse mundo." E como é o mundo de Mãe Coragem? "A peça é terrível, mas muito engraçada", diz Maria Alice. "Brecht começa falando da importância da guerra. Com sua ironia esmagadora, argumenta que só na guerra as pessoas têm disciplina, são alguém. Na paz todo mundo esbanja, come demais. Então, a guerra é boa. Assim pensa Coragem, que vive da guerra." Para a atriz, texto de Brecht mostra uma mulher que vê a guerra "não por um viés ideológico ou místico, mas de forma prática e objetiva. Olha o conflito como uma luta pelo poder, algo muito próximo do que estamos testemunhando neste momento." Preço da vida - Para Coragem, diz Maria Alice, "não há lado certo ou errado. Ela quer é fazer seu negócio. Esse é o tema de Brecht: o preço da vida. E ele mostra isso por meio de uma personagem forte, que cai e se levanta, vai adiante, não fraqueja. É uma mulher aventureira, vendedora ambulante na guerra. Coragem nunca seria dona de lojinha em uma cidade tranqüila". E essa mulher pragmática "é uma fera enquanto mãe. Defende a prole com unhas e dentes, até as últimas conseqüências. Mas tem algo de animal, também. Quando preciso, enterra filhos e segue o caminho. E esse seguir adiante não é um heróico. Ela avança, teimosa, contra a corrente". O reencontro com o teatro de Brecht é especialmente prazeroso para Maria Alice Vergueiro. "Desde 1964, quando fiz A Ópera dos Três Vinténs, eu me enamorei dele. Não o conhecia antes. Fui então ler seus textos, e as poesias, que comecei a trabalhar com meus alunos. Montei Luculus com uma turma da quarta série ginasial. Ao fazer a Ópera, comecei a perceber como Brecht via o mundo. E concordei com ele, com sua perspectiva das coisas, sua raiva da burguesia, da hipocrisia deste mundo. Sou apaixonada pelos anti-heróis de Brecht. E Mãe Coragem é uma das maiores figuras dele." "Já me sinto em estado de ensaios", afirma Maria Alice, embora falte mais um mês para o início dos trabalhos, marcado para meados de janeiro. "Começo a ´ver´ Mãe Coragem. Percebo seus contornos. Estou estudando o texto, revendo a tradução de Geir Campos. Mãe Coragem começou a me cercar." A atriz trabalha todas as tardes na revisão da tradução, em parceria com o diretor Ferrara. Ao redor do Natal deverá ser feita uma primeira leitura do texto. Mãe Coragem marca um retorno. "Nestes últimos anos, senti que já havia feito o que queria. Trabalhei com grandes diretores, excelentes atores, nunca concedi - exceto uma novela na Globo (Sassaricando, 1987), em que fiquei totalmente perdida -, e pensei ter dado minha contribuição." O encontro com Sérgio Ferrara e a interpretação de Mãe Coragem mudaram tudo. "Estou voltando. Ou melhor, estou indo, seguindo em frente", repete. E prepara-se para puxar a carroça. "Contei ao meu geriatra que ia ter de puxar uma carroça, perguntei a ele o que achava, e ele me disse para considerar, para ver se não arranjava quem puxasse em meu lugar." Uma gargalhada ampla, gostosa, encerra a frase e a conversa.

Em meio aos ventos de guerra que correm agora o planeta, uma atriz paulistana prepara sua carroça e apronta-se para viajar. Em breve, partirá para a guerra. Não a real, mas a virtual, que se dá no território da arte, denunciando a absurda insensatez de todas as guerras. Notável figura, a premiada Maria Alice Vergueiro, co-fundadora do Teatro do Ornitorrinco, que criou em 1977 ao lado de Luiz Roberto Galizia (1952-1985) e Cacá Rosset, vai comemorar 40 anos de carreira em 2002. Sem protagonizar uma peça desde 1997, quando ganhou o Mambembe e o Shell por No Alvo, de Thomas Bernhard, Maria Alice celebrará suas quatro décadas teatrais em grande estilo. Voltará ao palco em meados de abril, puxando a carroça de Mãe Coragem, obra-prima de Bertolt Brecht (1898-1956), com música de Paul Dessau (1894-1979). Considerada uma das grandes peças do século 20, a tragédia, concluída em 1939, põe em cena uma mulher que, acompanhada por três filhos, segue exércitos europeus na Guerra dos 30 Anos (1618-1648). A guerra é o ganha-pão da família, que possui uma carroça e vende aos soldados comida, bebida e bugigangas. Quando Maria Alice Vergueiro pisar no palco do Teatro Sesc Anchieta encarnando a ambulante Coragem, estará seguindo pegadas de ilustríssimas predecessoras, entre elas Helene Weigel, mulher de Brecht, que desempenhou o papel na abertura do Berliner Ensemble, em 1949, e Lélia Abramo, a primeira brasileira que o interpretou, numa montagem de 1960 produzida por Ruth Escobar. Bertolt Brecht, que várias vezes usou o teatro clássico como mote para seus textos, criou em Coragem uma nova Hécuba. Como a rainha de As Troianas, de Eurípedes, a anti-heroína do autor alemão é forte, destemida. E forçada a enfrentar a guerra, que a despojará de tudo que tem. Sonho antigo - Fazer Mãe Coragem é um velho sonho de Maria Alice. E um tributo seu ao ator e diretor Luiz Roberto Galizia, dos mais talentosos e irrequietos artistas do palco brasileiro nos anos 70/80. "Era um projeto nosso, de Galizia, Cacá e meu", diz ela. "Aliás, Galizia tinha altos sonhos para mim, entre eles Mãe Coragem. Eu estava no teatro havia 15 anos e fazia sempre papéis debochados. Ele insistia comigo para ousar mais. Dirigiu-me em A Mais Forte, de Strindberg, primeira peça do Ornitorrinco. Pensávamos até em montar um Ibsen. Ele ficaria feliz ao ver que vou encarar Coragem." Maria Alice incluirá na peça uma canção de B.B. que Galizia traduziu para o show Ornitorrinco Canta Brecht e Weill (1970). O cenário da conversa com a reportagem é o estúdio de Maria Alice Vergueiro, diminuta e acolhedora casa numa miniatura de vila no bairro de Campos Elíseos. Em uma das paredes, de tijolos pintados de branco, destacam-se pôsteres de guerrilheiros do teatro: Antonin Artaud, Samuel Beckett e, claro, Bertolt Brecht. À sombra deles, a bela matrona de cabelos arruivados e porte altivo, nascida em família aristocrática e tornada ícone da contracultura, fala com veemência de seu novo projeto. "Não estou voltando ao teatro", diz. "Estou indo, seguindo adiante." Acrescenta: "A Mãe Coragem que vou fazer com Sérgio Ferrara na direção não tem muito a ver com essa guerra que George W. Bush iniciou depois do atentado de setembro. Fiquei horrorizada com aquilo. Mas não sei se estou do lado deles, pensando em tudo o que fizeram e fazem pelo mundo. A guerra que vamos pôr em cena tem tudo a ver, isso sim, com essa que vemos aqui, em cada rua, todos os dias. Nossas mães coragens são essas mulheres que puxam carroça, que lutam pra pôr comida na mesa da família e no domingo vão ver o filho que está no Carandiru porque já matou uns tantos." Professora da lendária Escola de Aplicação, mãe de dois filhos, mulher de magistrado, Maria Alice Vergueiro só se assumiu como atriz depois de se separar do marido. Em 1962 estreou em A Mandrágora, de Maquiavel, no Teatro de Arena, dirigida por Augusto Boal. E em 1964 teve seu primeiro encontro com Brecht, o dramaturgo que mais interpretou. Era uma das prostitutas da produção de Ruth Escobar de A Ópera dos Três Vinténs, dirigida por José Renato, com cenários de Flávio Império, em que Oswaldo Loureiro fez Mac Navalha. Em 1978, seria uma das estrelas da Ópera do Malandro, que Chico Buarque adaptou do original brechtiano, em célebre montagem dirigida por Luiz Antonio Martinez Correa. De Brecht, atuou ainda em Lux in Tenebris, O Casamento do Pequeno Burguês, Galileu Galilei, Mahagonny. Também estrelou shows alimentados pelo cancioneiro de Brecht e seus vários parceiros musicais: Ornitorrinco Canta..., Lírio do Inferno, E Ponha o Tédio no Ó... e A Velha Dama Indigna, nome de um conto do dramaturgo que durante muito tempo Maria Alice Vergueiro usou, com feroz humor, para se autodefinir. Mas não só de Brecht foi feita sua carreira. O trajeto de Maria Alice vai de O Rei da Vela e Gracias Señor, em 1971/72, com o Oficina de Zé Celso, a Katastrophé, de Samuel Beckett, sob direção de Rubens Rusche, em 1986, e Electra com Creta, de Gerald Thomas, em 1987. Não poucas vezes seus trabalhos foram causa de escândalo. Um dos mais rumorosos, a performance feminista A Pororoca, estreou em 1984 sob direção de Luiz Galizia. Durante as apresentações em um festival de Nova York, o texto provocador e a atuação extrovertida de Maria Alice e de Magali Biff causaram uma polêmica que foi parar nas páginas dos jornais e na tela da TV Globo, provocando acessos de ira nos censores e moralistas de plantão. Em Mãe Coragem, Maria Alice Vergueiro vai trabalhar pela primeira vez com Sérgio Ferrara, que, criando em seqüência Barrela, Pobre Super-Homem e Abajur Lilás, tornou-se um encenador em grande evidência. A atriz conheceu-o assistindo aos seus espetáculos. "Sou muito curiosa sobre o trabalho de diretores jovens. Ia ver os trabalhos de Serginho e ficava impressionada, percebia que ele é um diretor de atores, mais até que um diretor de espetáculos. Estava muito querendo trabalhar com alguém assim. Depois de ver Abajur Lilás, eu o encontrei no saguão do teatro e dei-lhe um grande abraço. Enquanto retribuía, Sérgio disse: ´Quero trabalhar com você.´ Respondi que também queria. Selamos um pacto. Uma semana depois ele me ligou e perguntou o que eu achava de fazermos Mãe Coragem. Tremi na base. Mas fiquei apaixonada pela idéia. Aceitei." Ironia - A produção vai estrear no primeiro semestre de 2002. Além do apoio do Sesc, conta com o das Oficinas Culturais Oswald de Andrade, da Secretaria de Estado da Cultura, que durante a montagem desenvolverá atividades de formação com os profissionais envolvidos em Mãe Coragem. Miguel Briamonte assina a direção musical. Os cenários e figurinos são de J.C. Serroni e da equipe do Espaço Cenográfico. A luz será de Davi de Brito. No elenco, que começa a ser formado agora, já estão certos os nomes de Luciano Chirolli e José Rubens Chachá. Sobre os outros papéis, alguns já têm candidatos em vista, outros permanecem em aberto. "Eu e Sérgio temos muita vontade de que alguns atores se escolham", diz. "Queremos gente disposta a mergulhar conosco nesse mundo." E como é o mundo de Mãe Coragem? "A peça é terrível, mas muito engraçada", diz Maria Alice. "Brecht começa falando da importância da guerra. Com sua ironia esmagadora, argumenta que só na guerra as pessoas têm disciplina, são alguém. Na paz todo mundo esbanja, come demais. Então, a guerra é boa. Assim pensa Coragem, que vive da guerra." Para a atriz, texto de Brecht mostra uma mulher que vê a guerra "não por um viés ideológico ou místico, mas de forma prática e objetiva. Olha o conflito como uma luta pelo poder, algo muito próximo do que estamos testemunhando neste momento." Preço da vida - Para Coragem, diz Maria Alice, "não há lado certo ou errado. Ela quer é fazer seu negócio. Esse é o tema de Brecht: o preço da vida. E ele mostra isso por meio de uma personagem forte, que cai e se levanta, vai adiante, não fraqueja. É uma mulher aventureira, vendedora ambulante na guerra. Coragem nunca seria dona de lojinha em uma cidade tranqüila". E essa mulher pragmática "é uma fera enquanto mãe. Defende a prole com unhas e dentes, até as últimas conseqüências. Mas tem algo de animal, também. Quando preciso, enterra filhos e segue o caminho. E esse seguir adiante não é um heróico. Ela avança, teimosa, contra a corrente". O reencontro com o teatro de Brecht é especialmente prazeroso para Maria Alice Vergueiro. "Desde 1964, quando fiz A Ópera dos Três Vinténs, eu me enamorei dele. Não o conhecia antes. Fui então ler seus textos, e as poesias, que comecei a trabalhar com meus alunos. Montei Luculus com uma turma da quarta série ginasial. Ao fazer a Ópera, comecei a perceber como Brecht via o mundo. E concordei com ele, com sua perspectiva das coisas, sua raiva da burguesia, da hipocrisia deste mundo. Sou apaixonada pelos anti-heróis de Brecht. E Mãe Coragem é uma das maiores figuras dele." "Já me sinto em estado de ensaios", afirma Maria Alice, embora falte mais um mês para o início dos trabalhos, marcado para meados de janeiro. "Começo a ´ver´ Mãe Coragem. Percebo seus contornos. Estou estudando o texto, revendo a tradução de Geir Campos. Mãe Coragem começou a me cercar." A atriz trabalha todas as tardes na revisão da tradução, em parceria com o diretor Ferrara. Ao redor do Natal deverá ser feita uma primeira leitura do texto. Mãe Coragem marca um retorno. "Nestes últimos anos, senti que já havia feito o que queria. Trabalhei com grandes diretores, excelentes atores, nunca concedi - exceto uma novela na Globo (Sassaricando, 1987), em que fiquei totalmente perdida -, e pensei ter dado minha contribuição." O encontro com Sérgio Ferrara e a interpretação de Mãe Coragem mudaram tudo. "Estou voltando. Ou melhor, estou indo, seguindo em frente", repete. E prepara-se para puxar a carroça. "Contei ao meu geriatra que ia ter de puxar uma carroça, perguntei a ele o que achava, e ele me disse para considerar, para ver se não arranjava quem puxasse em meu lugar." Uma gargalhada ampla, gostosa, encerra a frase e a conversa.

Em meio aos ventos de guerra que correm agora o planeta, uma atriz paulistana prepara sua carroça e apronta-se para viajar. Em breve, partirá para a guerra. Não a real, mas a virtual, que se dá no território da arte, denunciando a absurda insensatez de todas as guerras. Notável figura, a premiada Maria Alice Vergueiro, co-fundadora do Teatro do Ornitorrinco, que criou em 1977 ao lado de Luiz Roberto Galizia (1952-1985) e Cacá Rosset, vai comemorar 40 anos de carreira em 2002. Sem protagonizar uma peça desde 1997, quando ganhou o Mambembe e o Shell por No Alvo, de Thomas Bernhard, Maria Alice celebrará suas quatro décadas teatrais em grande estilo. Voltará ao palco em meados de abril, puxando a carroça de Mãe Coragem, obra-prima de Bertolt Brecht (1898-1956), com música de Paul Dessau (1894-1979). Considerada uma das grandes peças do século 20, a tragédia, concluída em 1939, põe em cena uma mulher que, acompanhada por três filhos, segue exércitos europeus na Guerra dos 30 Anos (1618-1648). A guerra é o ganha-pão da família, que possui uma carroça e vende aos soldados comida, bebida e bugigangas. Quando Maria Alice Vergueiro pisar no palco do Teatro Sesc Anchieta encarnando a ambulante Coragem, estará seguindo pegadas de ilustríssimas predecessoras, entre elas Helene Weigel, mulher de Brecht, que desempenhou o papel na abertura do Berliner Ensemble, em 1949, e Lélia Abramo, a primeira brasileira que o interpretou, numa montagem de 1960 produzida por Ruth Escobar. Bertolt Brecht, que várias vezes usou o teatro clássico como mote para seus textos, criou em Coragem uma nova Hécuba. Como a rainha de As Troianas, de Eurípedes, a anti-heroína do autor alemão é forte, destemida. E forçada a enfrentar a guerra, que a despojará de tudo que tem. Sonho antigo - Fazer Mãe Coragem é um velho sonho de Maria Alice. E um tributo seu ao ator e diretor Luiz Roberto Galizia, dos mais talentosos e irrequietos artistas do palco brasileiro nos anos 70/80. "Era um projeto nosso, de Galizia, Cacá e meu", diz ela. "Aliás, Galizia tinha altos sonhos para mim, entre eles Mãe Coragem. Eu estava no teatro havia 15 anos e fazia sempre papéis debochados. Ele insistia comigo para ousar mais. Dirigiu-me em A Mais Forte, de Strindberg, primeira peça do Ornitorrinco. Pensávamos até em montar um Ibsen. Ele ficaria feliz ao ver que vou encarar Coragem." Maria Alice incluirá na peça uma canção de B.B. que Galizia traduziu para o show Ornitorrinco Canta Brecht e Weill (1970). O cenário da conversa com a reportagem é o estúdio de Maria Alice Vergueiro, diminuta e acolhedora casa numa miniatura de vila no bairro de Campos Elíseos. Em uma das paredes, de tijolos pintados de branco, destacam-se pôsteres de guerrilheiros do teatro: Antonin Artaud, Samuel Beckett e, claro, Bertolt Brecht. À sombra deles, a bela matrona de cabelos arruivados e porte altivo, nascida em família aristocrática e tornada ícone da contracultura, fala com veemência de seu novo projeto. "Não estou voltando ao teatro", diz. "Estou indo, seguindo adiante." Acrescenta: "A Mãe Coragem que vou fazer com Sérgio Ferrara na direção não tem muito a ver com essa guerra que George W. Bush iniciou depois do atentado de setembro. Fiquei horrorizada com aquilo. Mas não sei se estou do lado deles, pensando em tudo o que fizeram e fazem pelo mundo. A guerra que vamos pôr em cena tem tudo a ver, isso sim, com essa que vemos aqui, em cada rua, todos os dias. Nossas mães coragens são essas mulheres que puxam carroça, que lutam pra pôr comida na mesa da família e no domingo vão ver o filho que está no Carandiru porque já matou uns tantos." Professora da lendária Escola de Aplicação, mãe de dois filhos, mulher de magistrado, Maria Alice Vergueiro só se assumiu como atriz depois de se separar do marido. Em 1962 estreou em A Mandrágora, de Maquiavel, no Teatro de Arena, dirigida por Augusto Boal. E em 1964 teve seu primeiro encontro com Brecht, o dramaturgo que mais interpretou. Era uma das prostitutas da produção de Ruth Escobar de A Ópera dos Três Vinténs, dirigida por José Renato, com cenários de Flávio Império, em que Oswaldo Loureiro fez Mac Navalha. Em 1978, seria uma das estrelas da Ópera do Malandro, que Chico Buarque adaptou do original brechtiano, em célebre montagem dirigida por Luiz Antonio Martinez Correa. De Brecht, atuou ainda em Lux in Tenebris, O Casamento do Pequeno Burguês, Galileu Galilei, Mahagonny. Também estrelou shows alimentados pelo cancioneiro de Brecht e seus vários parceiros musicais: Ornitorrinco Canta..., Lírio do Inferno, E Ponha o Tédio no Ó... e A Velha Dama Indigna, nome de um conto do dramaturgo que durante muito tempo Maria Alice Vergueiro usou, com feroz humor, para se autodefinir. Mas não só de Brecht foi feita sua carreira. O trajeto de Maria Alice vai de O Rei da Vela e Gracias Señor, em 1971/72, com o Oficina de Zé Celso, a Katastrophé, de Samuel Beckett, sob direção de Rubens Rusche, em 1986, e Electra com Creta, de Gerald Thomas, em 1987. Não poucas vezes seus trabalhos foram causa de escândalo. Um dos mais rumorosos, a performance feminista A Pororoca, estreou em 1984 sob direção de Luiz Galizia. Durante as apresentações em um festival de Nova York, o texto provocador e a atuação extrovertida de Maria Alice e de Magali Biff causaram uma polêmica que foi parar nas páginas dos jornais e na tela da TV Globo, provocando acessos de ira nos censores e moralistas de plantão. Em Mãe Coragem, Maria Alice Vergueiro vai trabalhar pela primeira vez com Sérgio Ferrara, que, criando em seqüência Barrela, Pobre Super-Homem e Abajur Lilás, tornou-se um encenador em grande evidência. A atriz conheceu-o assistindo aos seus espetáculos. "Sou muito curiosa sobre o trabalho de diretores jovens. Ia ver os trabalhos de Serginho e ficava impressionada, percebia que ele é um diretor de atores, mais até que um diretor de espetáculos. Estava muito querendo trabalhar com alguém assim. Depois de ver Abajur Lilás, eu o encontrei no saguão do teatro e dei-lhe um grande abraço. Enquanto retribuía, Sérgio disse: ´Quero trabalhar com você.´ Respondi que também queria. Selamos um pacto. Uma semana depois ele me ligou e perguntou o que eu achava de fazermos Mãe Coragem. Tremi na base. Mas fiquei apaixonada pela idéia. Aceitei." Ironia - A produção vai estrear no primeiro semestre de 2002. Além do apoio do Sesc, conta com o das Oficinas Culturais Oswald de Andrade, da Secretaria de Estado da Cultura, que durante a montagem desenvolverá atividades de formação com os profissionais envolvidos em Mãe Coragem. Miguel Briamonte assina a direção musical. Os cenários e figurinos são de J.C. Serroni e da equipe do Espaço Cenográfico. A luz será de Davi de Brito. No elenco, que começa a ser formado agora, já estão certos os nomes de Luciano Chirolli e José Rubens Chachá. Sobre os outros papéis, alguns já têm candidatos em vista, outros permanecem em aberto. "Eu e Sérgio temos muita vontade de que alguns atores se escolham", diz. "Queremos gente disposta a mergulhar conosco nesse mundo." E como é o mundo de Mãe Coragem? "A peça é terrível, mas muito engraçada", diz Maria Alice. "Brecht começa falando da importância da guerra. Com sua ironia esmagadora, argumenta que só na guerra as pessoas têm disciplina, são alguém. Na paz todo mundo esbanja, come demais. Então, a guerra é boa. Assim pensa Coragem, que vive da guerra." Para a atriz, texto de Brecht mostra uma mulher que vê a guerra "não por um viés ideológico ou místico, mas de forma prática e objetiva. Olha o conflito como uma luta pelo poder, algo muito próximo do que estamos testemunhando neste momento." Preço da vida - Para Coragem, diz Maria Alice, "não há lado certo ou errado. Ela quer é fazer seu negócio. Esse é o tema de Brecht: o preço da vida. E ele mostra isso por meio de uma personagem forte, que cai e se levanta, vai adiante, não fraqueja. É uma mulher aventureira, vendedora ambulante na guerra. Coragem nunca seria dona de lojinha em uma cidade tranqüila". E essa mulher pragmática "é uma fera enquanto mãe. Defende a prole com unhas e dentes, até as últimas conseqüências. Mas tem algo de animal, também. Quando preciso, enterra filhos e segue o caminho. E esse seguir adiante não é um heróico. Ela avança, teimosa, contra a corrente". O reencontro com o teatro de Brecht é especialmente prazeroso para Maria Alice Vergueiro. "Desde 1964, quando fiz A Ópera dos Três Vinténs, eu me enamorei dele. Não o conhecia antes. Fui então ler seus textos, e as poesias, que comecei a trabalhar com meus alunos. Montei Luculus com uma turma da quarta série ginasial. Ao fazer a Ópera, comecei a perceber como Brecht via o mundo. E concordei com ele, com sua perspectiva das coisas, sua raiva da burguesia, da hipocrisia deste mundo. Sou apaixonada pelos anti-heróis de Brecht. E Mãe Coragem é uma das maiores figuras dele." "Já me sinto em estado de ensaios", afirma Maria Alice, embora falte mais um mês para o início dos trabalhos, marcado para meados de janeiro. "Começo a ´ver´ Mãe Coragem. Percebo seus contornos. Estou estudando o texto, revendo a tradução de Geir Campos. Mãe Coragem começou a me cercar." A atriz trabalha todas as tardes na revisão da tradução, em parceria com o diretor Ferrara. Ao redor do Natal deverá ser feita uma primeira leitura do texto. Mãe Coragem marca um retorno. "Nestes últimos anos, senti que já havia feito o que queria. Trabalhei com grandes diretores, excelentes atores, nunca concedi - exceto uma novela na Globo (Sassaricando, 1987), em que fiquei totalmente perdida -, e pensei ter dado minha contribuição." O encontro com Sérgio Ferrara e a interpretação de Mãe Coragem mudaram tudo. "Estou voltando. Ou melhor, estou indo, seguindo em frente", repete. E prepara-se para puxar a carroça. "Contei ao meu geriatra que ia ter de puxar uma carroça, perguntei a ele o que achava, e ele me disse para considerar, para ver se não arranjava quem puxasse em meu lugar." Uma gargalhada ampla, gostosa, encerra a frase e a conversa.

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