Patricia Bastos canta o Amapá no disco ‘Batom Bacaba’


Produzida por Dante Ozzetti, cantora faz belas interpretações de obras criadas sobretudo por compositores nortistas

Por Julio Maria

Algo doía fundo sempre que Patricia Bastos via amigos músicos irem a programas de rádio ou TV acompanharem outros artistas. Quando o apresentador perguntava de onde eram, mentiam. Fortaleza, Recife, Maceió, mas nunca diziam Macapá. Do que tinham vergonha? Da origem nortista de pele morena, cabelos negros e sangue afro-indígena? Das piadas sobre as incertezas de um “fim de mundo” próximo ao Oiapoque? Ou seria a insegurança de uma terra que não produziu músicos que se tornassem referenciais de projeção nacional?

'Batom Bacaba': valorização de compositores do eixo Belém-Macapá Foto: Divulgação/Gal Oppido

Depois que Patricia cresceu e se tornou cantora, sentiu tudo ao contrário. Afirmar-se como amapaense lhe soava uma missão. Mais ainda. Se os anjos das águas amazônicas ajudassem, ela traria quem pudesse em seu barco. O Amapá tem uma música que o Brasil não conhece e uma gente que cria canções com uma sensibilidade arrebatadora. Seu novo disco, Batom Bacaba, tem força para dois feitos. Ao mesmo tempo em que a coloca como uma das grandes cantoras em ação, pode dar voz a compositores locais que nunca estiveram em uma cena, que nunca contaram com um porta-voz. Os tambores do marabaixo, o ritmo mais forte da região, jamais tiveram algo parecido com um presente que o maracatu pernambucano recebeu nos anos 1990 chamado mangue beat. Foi só depois dele que uma geração inteira conheceria a produção cultural de Pernambuco.

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Há duas forças disputando espaços no álbum Batom Bacaba, com produção e lançamento patrocinado pela empresa de cosméticos Natura. De um lado, existe a presença dos dois produtores de personalidade artística forte, o violonista e compositor Dante Ozzetti e o músico Du Moreira. De outro, as informações trazidas nos genes de Patricia. A boa notícia é que a disputa não tem vencedores, o que faz o álbum chegar a um equilíbrio saudável entre a busca pelos tempos de hoje nos detalhes de estúdio e a expressão de uma música que brota do chão de Macapá há muitos anos. Se um dos dois lados vencesse, o resultado não seria o mesmo. O show de lançamento em São Paulo, depois de uma apresentação no Rio de Janeiro, será na próxima quinta-feira, dia 6, no Centro Cultural Rio Verde. 

A abertura do disco com Loba Boba, de Zeca Baleiro e Joãozinho Gomes, grande compositor paraense que vive no Amapá, é uma falsa pista. Nada será de novo tão sintetizado quanto esta base. Os caminhos se abrem mais com o passar do tempo, mas Patricia sempre vai caminhar entre o lirismo das canções e os arranjos pequenos e sutis de Dante. Luz de Lampião, de Nilson Chaves, também paraense, e Joãozinho, deixa a voz livre para cortar o som das cordas e de poucos ruídos eletrônicos até ganhar uma base mais cheia de teclados e mais violão. Tudo isso enquanto a música ganha força na poesia de dialeto nortista: “Nos sentu naquela terra, pra modiar / Sob o pé da gameleira tinha um luar / E a lua disse em verso / Com a voz do vento / Que nós semu como o sol / Vivemo nos bucejo da manhã”.

O encontro de Patricia com o Dante compositor acontece em O Desenho da Cidade, que ele fez com Luiz Tatit. E a parceria volta em Brisa e Brasa e Horizonte (com a voz de Ná Ozzetti). Depois, Dante aparece com Joãozinho Gomes como autores de Tudinha Acesa. São os momentos de encontro da linguagem de Patricia com a visão lírica e harmônica de Dante, algo que blinda o álbum de qualquer possibilidade de torna-se didático, regional, folclórico.

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Batom Bacaba, a música, é dos momentos maiores do álbum. A canção é do violonista amapaense Enrico Di Miceli com versos de Joãzinho Gomes, sempre ele. Enrico é um craque. Suas escolhas nunca são as mais fáceis mas sua música nunca fica difícil, intransponível. Ele é dono de uma habilidade harmônica impressionante e criador de melodias desconcertantes. Isso tudo sobre letra de lirismo feminino de Joãozinho: “E a maloca então ficou maluca / Como se ali passasse a pororoca / E a passarada fez uma muvuca / Cantando essa cantiga curiboca...”.

Outro nome das terras do Norte é o de Paulinho Bastos, irmão de Patricia. Percussionista, pesquisador, especialista nos tambores de marabaixo e da batucada amapaense (outra expressão que não existe fora de Macapá), ele é também autor de três das músicas de maior poder de comunicação no disco, Domingo de Páscoa, O Batom Que Não Viu e o afro Banto. Paulo está em processo de finalização de seu próprio álbum, uma promessa quando se conhece um pouco da forma como ele pensa música. A parceria de Joãozinho Gomes com Val Milhomem, outro importante compositor macapaense, entrega duas músicas de força pop e poesia afiada, a bela Mei Mei e a dançante Mameluca. Se fossem outros tempos, a primeira seria forte candidata ao que se chamava de “carro-chefe”, a que primeiro tocaria nas rádios.

Patrícia Bastos é filha de pai educador e músico e mãe cantora, Dona Oneida, a primeira mulher do Amapá a gravar um disco, produzido pelo mestre das guitarradas Manoel Cordeiro. É desse barro, dos encontros entre músicos em sua sala com todos os quatro irmãos tocando e cantando, que Patricia foi feita. Aos 18 anos ela já cantava em um grupo da noite com o qual aprendeu os primeiros truques no Bar Carinhoso, a Banda Brinds. Depois, cantou em grupo de baile e passou pelo avassalador teste dos cantores de carnaval.

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Seu primeiro álbum saiu em 2000, chamado Pólvora e Fogo, só com compositores do Amapá. Depois vieram Patrícia Bastos In Concert (ao vivo, de 2004); Sobre Tudo (2007); Eu Sou Caboca (2009) e o premiado Zulusa (2013). Foi com este disco que Patrícia ganhou, em 2014, os prêmios de melhor cantora regional e melhor disco regional durante o 25.º Prêmio da Música Brasileira. Chamá-la de regional é redutor, mas o mercado ainda entende assim, em catalogação por prateleiras. Seu disco de agora faz exatamente o contrário, a retira da seção dos regionais para torná-la mais abrangente.

“Eu senti a necessidade de procurar a história de Amapá e de levá-la para o mundo”, diz Patricia. “Eu sempre senti falta dessa história, as pessoas daqui tinham vergonha de dizer que eram do Norte. Resolvi então que, a partir de agora, eu iria cantar a minha aldeia.” E é assim que ela acaba cantando o mundo.

Algo doía fundo sempre que Patricia Bastos via amigos músicos irem a programas de rádio ou TV acompanharem outros artistas. Quando o apresentador perguntava de onde eram, mentiam. Fortaleza, Recife, Maceió, mas nunca diziam Macapá. Do que tinham vergonha? Da origem nortista de pele morena, cabelos negros e sangue afro-indígena? Das piadas sobre as incertezas de um “fim de mundo” próximo ao Oiapoque? Ou seria a insegurança de uma terra que não produziu músicos que se tornassem referenciais de projeção nacional?

'Batom Bacaba': valorização de compositores do eixo Belém-Macapá Foto: Divulgação/Gal Oppido

Depois que Patricia cresceu e se tornou cantora, sentiu tudo ao contrário. Afirmar-se como amapaense lhe soava uma missão. Mais ainda. Se os anjos das águas amazônicas ajudassem, ela traria quem pudesse em seu barco. O Amapá tem uma música que o Brasil não conhece e uma gente que cria canções com uma sensibilidade arrebatadora. Seu novo disco, Batom Bacaba, tem força para dois feitos. Ao mesmo tempo em que a coloca como uma das grandes cantoras em ação, pode dar voz a compositores locais que nunca estiveram em uma cena, que nunca contaram com um porta-voz. Os tambores do marabaixo, o ritmo mais forte da região, jamais tiveram algo parecido com um presente que o maracatu pernambucano recebeu nos anos 1990 chamado mangue beat. Foi só depois dele que uma geração inteira conheceria a produção cultural de Pernambuco.

Há duas forças disputando espaços no álbum Batom Bacaba, com produção e lançamento patrocinado pela empresa de cosméticos Natura. De um lado, existe a presença dos dois produtores de personalidade artística forte, o violonista e compositor Dante Ozzetti e o músico Du Moreira. De outro, as informações trazidas nos genes de Patricia. A boa notícia é que a disputa não tem vencedores, o que faz o álbum chegar a um equilíbrio saudável entre a busca pelos tempos de hoje nos detalhes de estúdio e a expressão de uma música que brota do chão de Macapá há muitos anos. Se um dos dois lados vencesse, o resultado não seria o mesmo. O show de lançamento em São Paulo, depois de uma apresentação no Rio de Janeiro, será na próxima quinta-feira, dia 6, no Centro Cultural Rio Verde. 

A abertura do disco com Loba Boba, de Zeca Baleiro e Joãozinho Gomes, grande compositor paraense que vive no Amapá, é uma falsa pista. Nada será de novo tão sintetizado quanto esta base. Os caminhos se abrem mais com o passar do tempo, mas Patricia sempre vai caminhar entre o lirismo das canções e os arranjos pequenos e sutis de Dante. Luz de Lampião, de Nilson Chaves, também paraense, e Joãozinho, deixa a voz livre para cortar o som das cordas e de poucos ruídos eletrônicos até ganhar uma base mais cheia de teclados e mais violão. Tudo isso enquanto a música ganha força na poesia de dialeto nortista: “Nos sentu naquela terra, pra modiar / Sob o pé da gameleira tinha um luar / E a lua disse em verso / Com a voz do vento / Que nós semu como o sol / Vivemo nos bucejo da manhã”.

O encontro de Patricia com o Dante compositor acontece em O Desenho da Cidade, que ele fez com Luiz Tatit. E a parceria volta em Brisa e Brasa e Horizonte (com a voz de Ná Ozzetti). Depois, Dante aparece com Joãozinho Gomes como autores de Tudinha Acesa. São os momentos de encontro da linguagem de Patricia com a visão lírica e harmônica de Dante, algo que blinda o álbum de qualquer possibilidade de torna-se didático, regional, folclórico.

Batom Bacaba, a música, é dos momentos maiores do álbum. A canção é do violonista amapaense Enrico Di Miceli com versos de Joãzinho Gomes, sempre ele. Enrico é um craque. Suas escolhas nunca são as mais fáceis mas sua música nunca fica difícil, intransponível. Ele é dono de uma habilidade harmônica impressionante e criador de melodias desconcertantes. Isso tudo sobre letra de lirismo feminino de Joãozinho: “E a maloca então ficou maluca / Como se ali passasse a pororoca / E a passarada fez uma muvuca / Cantando essa cantiga curiboca...”.

Outro nome das terras do Norte é o de Paulinho Bastos, irmão de Patricia. Percussionista, pesquisador, especialista nos tambores de marabaixo e da batucada amapaense (outra expressão que não existe fora de Macapá), ele é também autor de três das músicas de maior poder de comunicação no disco, Domingo de Páscoa, O Batom Que Não Viu e o afro Banto. Paulo está em processo de finalização de seu próprio álbum, uma promessa quando se conhece um pouco da forma como ele pensa música. A parceria de Joãozinho Gomes com Val Milhomem, outro importante compositor macapaense, entrega duas músicas de força pop e poesia afiada, a bela Mei Mei e a dançante Mameluca. Se fossem outros tempos, a primeira seria forte candidata ao que se chamava de “carro-chefe”, a que primeiro tocaria nas rádios.

Patrícia Bastos é filha de pai educador e músico e mãe cantora, Dona Oneida, a primeira mulher do Amapá a gravar um disco, produzido pelo mestre das guitarradas Manoel Cordeiro. É desse barro, dos encontros entre músicos em sua sala com todos os quatro irmãos tocando e cantando, que Patricia foi feita. Aos 18 anos ela já cantava em um grupo da noite com o qual aprendeu os primeiros truques no Bar Carinhoso, a Banda Brinds. Depois, cantou em grupo de baile e passou pelo avassalador teste dos cantores de carnaval.

Seu primeiro álbum saiu em 2000, chamado Pólvora e Fogo, só com compositores do Amapá. Depois vieram Patrícia Bastos In Concert (ao vivo, de 2004); Sobre Tudo (2007); Eu Sou Caboca (2009) e o premiado Zulusa (2013). Foi com este disco que Patrícia ganhou, em 2014, os prêmios de melhor cantora regional e melhor disco regional durante o 25.º Prêmio da Música Brasileira. Chamá-la de regional é redutor, mas o mercado ainda entende assim, em catalogação por prateleiras. Seu disco de agora faz exatamente o contrário, a retira da seção dos regionais para torná-la mais abrangente.

“Eu senti a necessidade de procurar a história de Amapá e de levá-la para o mundo”, diz Patricia. “Eu sempre senti falta dessa história, as pessoas daqui tinham vergonha de dizer que eram do Norte. Resolvi então que, a partir de agora, eu iria cantar a minha aldeia.” E é assim que ela acaba cantando o mundo.

Algo doía fundo sempre que Patricia Bastos via amigos músicos irem a programas de rádio ou TV acompanharem outros artistas. Quando o apresentador perguntava de onde eram, mentiam. Fortaleza, Recife, Maceió, mas nunca diziam Macapá. Do que tinham vergonha? Da origem nortista de pele morena, cabelos negros e sangue afro-indígena? Das piadas sobre as incertezas de um “fim de mundo” próximo ao Oiapoque? Ou seria a insegurança de uma terra que não produziu músicos que se tornassem referenciais de projeção nacional?

'Batom Bacaba': valorização de compositores do eixo Belém-Macapá Foto: Divulgação/Gal Oppido

Depois que Patricia cresceu e se tornou cantora, sentiu tudo ao contrário. Afirmar-se como amapaense lhe soava uma missão. Mais ainda. Se os anjos das águas amazônicas ajudassem, ela traria quem pudesse em seu barco. O Amapá tem uma música que o Brasil não conhece e uma gente que cria canções com uma sensibilidade arrebatadora. Seu novo disco, Batom Bacaba, tem força para dois feitos. Ao mesmo tempo em que a coloca como uma das grandes cantoras em ação, pode dar voz a compositores locais que nunca estiveram em uma cena, que nunca contaram com um porta-voz. Os tambores do marabaixo, o ritmo mais forte da região, jamais tiveram algo parecido com um presente que o maracatu pernambucano recebeu nos anos 1990 chamado mangue beat. Foi só depois dele que uma geração inteira conheceria a produção cultural de Pernambuco.

Há duas forças disputando espaços no álbum Batom Bacaba, com produção e lançamento patrocinado pela empresa de cosméticos Natura. De um lado, existe a presença dos dois produtores de personalidade artística forte, o violonista e compositor Dante Ozzetti e o músico Du Moreira. De outro, as informações trazidas nos genes de Patricia. A boa notícia é que a disputa não tem vencedores, o que faz o álbum chegar a um equilíbrio saudável entre a busca pelos tempos de hoje nos detalhes de estúdio e a expressão de uma música que brota do chão de Macapá há muitos anos. Se um dos dois lados vencesse, o resultado não seria o mesmo. O show de lançamento em São Paulo, depois de uma apresentação no Rio de Janeiro, será na próxima quinta-feira, dia 6, no Centro Cultural Rio Verde. 

A abertura do disco com Loba Boba, de Zeca Baleiro e Joãozinho Gomes, grande compositor paraense que vive no Amapá, é uma falsa pista. Nada será de novo tão sintetizado quanto esta base. Os caminhos se abrem mais com o passar do tempo, mas Patricia sempre vai caminhar entre o lirismo das canções e os arranjos pequenos e sutis de Dante. Luz de Lampião, de Nilson Chaves, também paraense, e Joãozinho, deixa a voz livre para cortar o som das cordas e de poucos ruídos eletrônicos até ganhar uma base mais cheia de teclados e mais violão. Tudo isso enquanto a música ganha força na poesia de dialeto nortista: “Nos sentu naquela terra, pra modiar / Sob o pé da gameleira tinha um luar / E a lua disse em verso / Com a voz do vento / Que nós semu como o sol / Vivemo nos bucejo da manhã”.

O encontro de Patricia com o Dante compositor acontece em O Desenho da Cidade, que ele fez com Luiz Tatit. E a parceria volta em Brisa e Brasa e Horizonte (com a voz de Ná Ozzetti). Depois, Dante aparece com Joãozinho Gomes como autores de Tudinha Acesa. São os momentos de encontro da linguagem de Patricia com a visão lírica e harmônica de Dante, algo que blinda o álbum de qualquer possibilidade de torna-se didático, regional, folclórico.

Batom Bacaba, a música, é dos momentos maiores do álbum. A canção é do violonista amapaense Enrico Di Miceli com versos de Joãzinho Gomes, sempre ele. Enrico é um craque. Suas escolhas nunca são as mais fáceis mas sua música nunca fica difícil, intransponível. Ele é dono de uma habilidade harmônica impressionante e criador de melodias desconcertantes. Isso tudo sobre letra de lirismo feminino de Joãozinho: “E a maloca então ficou maluca / Como se ali passasse a pororoca / E a passarada fez uma muvuca / Cantando essa cantiga curiboca...”.

Outro nome das terras do Norte é o de Paulinho Bastos, irmão de Patricia. Percussionista, pesquisador, especialista nos tambores de marabaixo e da batucada amapaense (outra expressão que não existe fora de Macapá), ele é também autor de três das músicas de maior poder de comunicação no disco, Domingo de Páscoa, O Batom Que Não Viu e o afro Banto. Paulo está em processo de finalização de seu próprio álbum, uma promessa quando se conhece um pouco da forma como ele pensa música. A parceria de Joãozinho Gomes com Val Milhomem, outro importante compositor macapaense, entrega duas músicas de força pop e poesia afiada, a bela Mei Mei e a dançante Mameluca. Se fossem outros tempos, a primeira seria forte candidata ao que se chamava de “carro-chefe”, a que primeiro tocaria nas rádios.

Patrícia Bastos é filha de pai educador e músico e mãe cantora, Dona Oneida, a primeira mulher do Amapá a gravar um disco, produzido pelo mestre das guitarradas Manoel Cordeiro. É desse barro, dos encontros entre músicos em sua sala com todos os quatro irmãos tocando e cantando, que Patricia foi feita. Aos 18 anos ela já cantava em um grupo da noite com o qual aprendeu os primeiros truques no Bar Carinhoso, a Banda Brinds. Depois, cantou em grupo de baile e passou pelo avassalador teste dos cantores de carnaval.

Seu primeiro álbum saiu em 2000, chamado Pólvora e Fogo, só com compositores do Amapá. Depois vieram Patrícia Bastos In Concert (ao vivo, de 2004); Sobre Tudo (2007); Eu Sou Caboca (2009) e o premiado Zulusa (2013). Foi com este disco que Patrícia ganhou, em 2014, os prêmios de melhor cantora regional e melhor disco regional durante o 25.º Prêmio da Música Brasileira. Chamá-la de regional é redutor, mas o mercado ainda entende assim, em catalogação por prateleiras. Seu disco de agora faz exatamente o contrário, a retira da seção dos regionais para torná-la mais abrangente.

“Eu senti a necessidade de procurar a história de Amapá e de levá-la para o mundo”, diz Patricia. “Eu sempre senti falta dessa história, as pessoas daqui tinham vergonha de dizer que eram do Norte. Resolvi então que, a partir de agora, eu iria cantar a minha aldeia.” E é assim que ela acaba cantando o mundo.

Algo doía fundo sempre que Patricia Bastos via amigos músicos irem a programas de rádio ou TV acompanharem outros artistas. Quando o apresentador perguntava de onde eram, mentiam. Fortaleza, Recife, Maceió, mas nunca diziam Macapá. Do que tinham vergonha? Da origem nortista de pele morena, cabelos negros e sangue afro-indígena? Das piadas sobre as incertezas de um “fim de mundo” próximo ao Oiapoque? Ou seria a insegurança de uma terra que não produziu músicos que se tornassem referenciais de projeção nacional?

'Batom Bacaba': valorização de compositores do eixo Belém-Macapá Foto: Divulgação/Gal Oppido

Depois que Patricia cresceu e se tornou cantora, sentiu tudo ao contrário. Afirmar-se como amapaense lhe soava uma missão. Mais ainda. Se os anjos das águas amazônicas ajudassem, ela traria quem pudesse em seu barco. O Amapá tem uma música que o Brasil não conhece e uma gente que cria canções com uma sensibilidade arrebatadora. Seu novo disco, Batom Bacaba, tem força para dois feitos. Ao mesmo tempo em que a coloca como uma das grandes cantoras em ação, pode dar voz a compositores locais que nunca estiveram em uma cena, que nunca contaram com um porta-voz. Os tambores do marabaixo, o ritmo mais forte da região, jamais tiveram algo parecido com um presente que o maracatu pernambucano recebeu nos anos 1990 chamado mangue beat. Foi só depois dele que uma geração inteira conheceria a produção cultural de Pernambuco.

Há duas forças disputando espaços no álbum Batom Bacaba, com produção e lançamento patrocinado pela empresa de cosméticos Natura. De um lado, existe a presença dos dois produtores de personalidade artística forte, o violonista e compositor Dante Ozzetti e o músico Du Moreira. De outro, as informações trazidas nos genes de Patricia. A boa notícia é que a disputa não tem vencedores, o que faz o álbum chegar a um equilíbrio saudável entre a busca pelos tempos de hoje nos detalhes de estúdio e a expressão de uma música que brota do chão de Macapá há muitos anos. Se um dos dois lados vencesse, o resultado não seria o mesmo. O show de lançamento em São Paulo, depois de uma apresentação no Rio de Janeiro, será na próxima quinta-feira, dia 6, no Centro Cultural Rio Verde. 

A abertura do disco com Loba Boba, de Zeca Baleiro e Joãozinho Gomes, grande compositor paraense que vive no Amapá, é uma falsa pista. Nada será de novo tão sintetizado quanto esta base. Os caminhos se abrem mais com o passar do tempo, mas Patricia sempre vai caminhar entre o lirismo das canções e os arranjos pequenos e sutis de Dante. Luz de Lampião, de Nilson Chaves, também paraense, e Joãozinho, deixa a voz livre para cortar o som das cordas e de poucos ruídos eletrônicos até ganhar uma base mais cheia de teclados e mais violão. Tudo isso enquanto a música ganha força na poesia de dialeto nortista: “Nos sentu naquela terra, pra modiar / Sob o pé da gameleira tinha um luar / E a lua disse em verso / Com a voz do vento / Que nós semu como o sol / Vivemo nos bucejo da manhã”.

O encontro de Patricia com o Dante compositor acontece em O Desenho da Cidade, que ele fez com Luiz Tatit. E a parceria volta em Brisa e Brasa e Horizonte (com a voz de Ná Ozzetti). Depois, Dante aparece com Joãozinho Gomes como autores de Tudinha Acesa. São os momentos de encontro da linguagem de Patricia com a visão lírica e harmônica de Dante, algo que blinda o álbum de qualquer possibilidade de torna-se didático, regional, folclórico.

Batom Bacaba, a música, é dos momentos maiores do álbum. A canção é do violonista amapaense Enrico Di Miceli com versos de Joãzinho Gomes, sempre ele. Enrico é um craque. Suas escolhas nunca são as mais fáceis mas sua música nunca fica difícil, intransponível. Ele é dono de uma habilidade harmônica impressionante e criador de melodias desconcertantes. Isso tudo sobre letra de lirismo feminino de Joãozinho: “E a maloca então ficou maluca / Como se ali passasse a pororoca / E a passarada fez uma muvuca / Cantando essa cantiga curiboca...”.

Outro nome das terras do Norte é o de Paulinho Bastos, irmão de Patricia. Percussionista, pesquisador, especialista nos tambores de marabaixo e da batucada amapaense (outra expressão que não existe fora de Macapá), ele é também autor de três das músicas de maior poder de comunicação no disco, Domingo de Páscoa, O Batom Que Não Viu e o afro Banto. Paulo está em processo de finalização de seu próprio álbum, uma promessa quando se conhece um pouco da forma como ele pensa música. A parceria de Joãozinho Gomes com Val Milhomem, outro importante compositor macapaense, entrega duas músicas de força pop e poesia afiada, a bela Mei Mei e a dançante Mameluca. Se fossem outros tempos, a primeira seria forte candidata ao que se chamava de “carro-chefe”, a que primeiro tocaria nas rádios.

Patrícia Bastos é filha de pai educador e músico e mãe cantora, Dona Oneida, a primeira mulher do Amapá a gravar um disco, produzido pelo mestre das guitarradas Manoel Cordeiro. É desse barro, dos encontros entre músicos em sua sala com todos os quatro irmãos tocando e cantando, que Patricia foi feita. Aos 18 anos ela já cantava em um grupo da noite com o qual aprendeu os primeiros truques no Bar Carinhoso, a Banda Brinds. Depois, cantou em grupo de baile e passou pelo avassalador teste dos cantores de carnaval.

Seu primeiro álbum saiu em 2000, chamado Pólvora e Fogo, só com compositores do Amapá. Depois vieram Patrícia Bastos In Concert (ao vivo, de 2004); Sobre Tudo (2007); Eu Sou Caboca (2009) e o premiado Zulusa (2013). Foi com este disco que Patrícia ganhou, em 2014, os prêmios de melhor cantora regional e melhor disco regional durante o 25.º Prêmio da Música Brasileira. Chamá-la de regional é redutor, mas o mercado ainda entende assim, em catalogação por prateleiras. Seu disco de agora faz exatamente o contrário, a retira da seção dos regionais para torná-la mais abrangente.

“Eu senti a necessidade de procurar a história de Amapá e de levá-la para o mundo”, diz Patricia. “Eu sempre senti falta dessa história, as pessoas daqui tinham vergonha de dizer que eram do Norte. Resolvi então que, a partir de agora, eu iria cantar a minha aldeia.” E é assim que ela acaba cantando o mundo.

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