Pelas letras, a reinvenção de tempo e espaço


Escritor peruano e colunista do Estado defende em Estocolmo o tão temido poder libertador da literatura

Por Mario Vargas Llosa

Aprendi a ler aos 5 anos, na classe do irmão Justiniano, no Colégio de la Salle, em Cochabamba, na Bolívia. Foi a coisa mais importante da minha vida. Quase 70 anos depois, lembro-me com nitidez como essa magia, transformar as palavras dos livros em imagens, enriqueceu a minha vida, quebrando as barreiras do tempo e do espaço e permitindo-me viajar com o capitão Nemo 20 mil léguas abaixo do nível do mar, lutar junto com D"Artagnan, Athos, Portos e Aramis contra as intrigas que ameaçavam a rainha nos tempos do sinuoso Richelieu, ou arrastar-me pelas entranhas de Paris com o corpo inerte de Marius às costas.A leitura convertia o sonho em vida e a vida em sonho e punha ao alcance do pedacinho de homem que eu era o universo da literatura. Minha mãe me disse que as primeiras coisas que escrevi foram continuações das histórias que lia (...). E talvez seja isso que acabei fazendo na vida sem perceber: prolongar no tempo, enquanto crescia, amadurecia e envelhecia, as histórias que encheram minha infância de exaltação e de aventuras.Gostaria que a minha mãe estivesse aqui, e também meu avô Pedro e o tio Lucho, que tanto me animou a dedicar-me de corpo e alma a escrever (...). Toda a vida tive ao meu lado gente assim, que gostava de mim e me animava e contagiava com a sua fé quando eu duvidava. Graças a eles e, sem dúvida, também à minha insistência e um pouco de sorte, pude dedicar boa parte do meu tempo a essa paixão, vício e maravilha que é escrever, criar uma vida paralela onde nos refugiamos contra a adversidade, que torna natural o extraordinário e o extraordinário natural, que dissipa o caos, embeleza o feio, eterniza o instante e torna a morte um espetáculo passageiro. Não era fácil escrever histórias. Ao se transformarem em palavras, os projetos passeavam pelo papel e as ideias e imagens morriam. (...) Por sorte, ali estavam os mestres para que eu aprendesse com eles e seguisse seu exemplo. Flaubert me ensinou que o talento é uma disciplina tenaz e uma longa paciência. Faulkner, que é a forma que engrandece ou empobrece os temas. Martorell, Cervantes, Dickens, Balzac, Tolstoi, Conrad, Thomas Mann, que o número e a ambição são tão importantes numa novela quanto a destreza estilística e a estratégia narrativa. Sartre, que as palavras são atos e que uma novela, uma peça de teatro, um ensaio, comprometidos com a atualidade e as melhores opções, podem mudar o curso da História. Camus e Orwell, que uma literatura desprovida de moral é desumana, e Malraux que o heroísmo e o épico cabiam na atualidade tanto quanto no tempo dos argonautas, da Odisseia e da Ilíada. (...)Algumas vezes me perguntei se em países como o meu, com poucos leitores e tantos pobres, analfabetos e injustiças, onde a cultura era privilégio de tão poucos, escrever não era um luxo escapista. Mas essas dúvidas nunca asfixiaram minha vocação (...). Acho que fiz a coisa certa, pois, se para a literatura florescer numa sociedade fosse preciso lançar primeiro a alta cultura, a liberdade, a prosperidade e a justiça, isso não teria existido nunca. Ao contrário, graças à literatura, às consciências que ela formou, aos desejos e anseios que inspirou, ao desencanto do real com que retornamos da viagem a uma bela fantasia, a civilização é agora menos cruel do que quando os contadores de contos começaram a humanizar a vida com suas fábulas. Seríamos piores do que somos sem os bons livros que lemos, mais conformistas, menos inquietos e insubmissos, e o espírito crítico, o motor do progresso, nem sequer existiria. A exemplo de escrever, ler é protestar contra as insuficiências da vida. (...)Sem as ficções seríamos menos conscientes da importância da liberdade para que a vida seja suportável e do inferno em que ela se converte quando dominada por um tirano, uma ideologia ou uma religião. Quem duvida que a literatura, além de nos levar ao sonho da beleza e da felicidade, nos alerta contra toda forma de opressão, pergunte por que todos os regimes empenhados em controlar a conduta dos cidadãos, do berço ao túmulo, a temem tanto a ponto de estabelecerem regras de censura para reprimi-la (...). Fazem isso porque sabem o risco que correm ao deixarem que a imaginação flua pelos livros (...). Queiram ou não, saibam disso ou não, os criadores de fábulas, ao inventar histórias, propagam a insatisfação, mostrando que o mundo é mal feito, que a vida da fantasia é mais rica que a rotina cotidiana. Essa constatação cria raízes na sensibilidade e na consciência, torna os cidadãos mais difíceis de manipular (...). A boa literatura cria pontes entre pessoas diferentes, (...) nos une sobre as barreiras das línguas, crenças, usos, costumes e preconceitos que nos separam. Quando a grande baleia branca sepulta o capitão Ahab no mar, o coração dos leitores se oprime do mesmo modo em Tóquio, Lima ou Tombuctu. (...) A literatura cria uma fraternidade dentro da diversidade humana e apaga as fronteiras que erguem entre os homens e mulheres a ignorância, as ideologias, as religiões, os idiomas e a estupidez. (...)Quando criança, sonhava chegar um dia a Paris porque, deslumbrado com a literatura francesa, acreditava que viver ali e respirar o ar que respiraram Balzac, Stendhal, Baudelaire, Proust me ajudaria a tornar-me um verdadeiro escritor, que se eu não saísse do Peru seria um pseudoescritor de fins de semana e feriados. E a verdade é que devo à França, à cultura francesa, lições inesquecíveis, como a de que a literatura é tanto vocação quanto disciplina, um trabalho e uma perseverança. (...) Mas talvez o que mais agradeço à França seja a descoberta da América Latina. Ali descobri que o Peru fazia parte de uma vasta comunidade irmanada pela história, geografia, problemática social e política, por uma certa maneira de ser e pela saborosa língua que eu falava e na qual escrevia. E que nessa mesma época produzia uma literatura nova e pujante. Foi lá que li Borges, Octavio Paz, Cortázar, García Márquez, Fuentes, Cabrera Infante, Rulfo, Onetti, Carpentier, Edwards, Donoso e muitos outros, cujos textos estavam revolucionando a narrativa em língua espanhola, e graças aos quais a Europa e boa parte do mundo descobriram que a América Latina não era só o continente dos golpes de Estado, dos caudilhos de opereta, dos guerrilheiros barbudos e das maracas do mambo e do chachachá, mas também das ideias, formas artísticas e fantasias literárias que transcendiam o pitoresco e falavam uma linguagem universal. (...)Eu levo o Peru nas minhas entranhas, porque nele nasci, cresci, formei-me e vivi aquelas experiências da infância e da juventude que modelaram minha personalidade e que forjaram minha vocação; e porque lá amei, odiei, gozei, sofri e sonhei. O que nele acontece me afeta mais e me comove e irrita mais do que o que acontece em outros lugares. (...) Alguns compatriotas me acusaram de traidor, e cheguei a ponto de quase perder a cidadania quando, durante a última ditadura, pedi que os governos democráticos do mundo punissem o regime com sanções diplomáticas e econômicas, como sempre fiz com relação a todas as ditaduras, as de qualquer espécie: a de Pinochet, a de Fidel Castro, a dos talebães no Afeganistão, a dos aiatolás no Irã, a do apartheid na África do Sul, a dos sátrapas uniformizados na Birmânia (hoje Mianmar). (...) Não foi aquela uma ação precipitada e passional de um ressentido. Foi um ato coerente com a minha convicção de que uma ditadura representa o mal absoluto para um país, uma fonte de brutalidade e corrupção, e de feridas profundas, que demoram muito para se fecharem, envenenam seu futuro e criam hábitos e práticas prejudiciais que se estendem ao longo de gerações, adiando a reconstrução democrática. Por isso as ditaduras devem ser combatidas sem contemplações, por todos os meios ao nosso alcance, incluindo as sanções econômicas. É lamentável que os governos democráticos, em vez de darem o exemplo, solidarizando-se com aqueles que enfrentam com temeridade as ditaduras que sofrem, frequentemente tenham se mostrado complacentes não com eles, mas com seus carrascos. (...)A conquista da América foi cruel e violenta, como todas as conquistas, sem dúvida, e deve ser criticada, porém sem esquecermos, ao criticarmos, que os que cometeram aqueles despojos e crimes foram, em grande número, nossos bisavós e tataravós, os espanhóis que foram à América e aí se adaptaram, não os que ficaram na sua terra. As críticas, para serem justas, devem ser uma autocrítica. Porque, ao nos emanciparmos da Espanha, há 200 anos, os que tomaram posse nas antigas colônias, em vez de redimir os índios e fazerem justiça pelos antigos agravos, continuaram a explorá-los, com tanta cobiça e ferocidade quanto os conquistadores, e, em alguns países, dizimando-os e exterminando-os. Digamos com total clareza: há dois séculos, a emancipação dos indígenas é de responsabilidade exclusivamente nossa, e não temos cumprido com ela, que continua a ser uma matéria pendente em toda a América Latina. Não há uma exceção a essa afronta e essa vergonha. (...)De todos os anos que vivi em solo espanhol, lembro com fulgor dos cinco que passei na querida Barcelona, a começo dos anos 70. A ditadura de Franco ainda estava em pé e fuzilava, mas era um fóssil em fiapos, e, sobretudo no campo da cultura, era incapaz de manter os controles de outrora. Abriam-se fendas e resquícios que a censura não conseguia sanar e, por eles, a sociedade espanhola absorvia novas ideias, livros, correntes de pensamento, valores e formas artísticas até então proibidos por serem subversivos. Nenhuma cidade aproveitou tanto e tão bem quanto Barcelona esse começo da abertura, nem viveu uma efervescência semelhante em todos os campos das ideias e da criação. Tornou-se a capital cultural da Espanha. E, de certa forma, foi também a capital cultural da América Latina, dada a quantidade de pintores, escritores, editores e artistas oriundos dos países latino-americanos que lá se instalaram (...). Para mim, aqueles foram anos inesquecíveis de companheirismo, amizade, conspirações e de fecundo trabalho intelectual. Como havia sido Paris antes, Barcelona foi uma Torre de Babel, uma cidade cosmopolita e universal, onde era estimulante morar e trabalhar, e onde, pela primeira vez desde os tempos da guerra civil, escritores espanhóis e latino-americanos se misturavam e confraternizavam, reconhecendo-se como donos de uma mesma tradição (...).(...) A transição espanhola do autoritarismo para a liberdade, do subdesenvolvimento para a prosperidade, de uma sociedade de contrastes econômicos e desigualdades terceiro-mundistas para um país de classes médias, a sua integração à Europa e a sua adoção em poucos anos de uma cultura democrática, surpreendeu o mundo e disparou a modernização da Espanha. Foi uma experiência emocionante e instrutiva vivê-la de muito perto e por dentro em alguns momentos. Tomara que os nacionalismos, a praga incurável do mundo moderno e também na Espanha, não estraguem essa história feliz. (...)O Peru é para mim a Arequipa onde nasci, mas onde nunca morei, a cidade que minha mãe, meus avós e meus tios me ensinaram a conhecer através das suas lembranças e nostalgias, porque toda minha tribo familiar, como costumam fazer os arequipenses, sempre levou consigo para a Cidade Branca em sua andarilha existência. (...) É o Colégio San Miguel e o Teatro Variedades, onde pela primeira vez vi encenada uma obrinha escrita por mim. É a esquina de Diego Ferré e Colón, no bairro de Miraflores, em Lima, - o chamávamos de o Bairro Alegre, onde troquei as calças curtas pelas compridas, fumei meu primeiro cigarro, aprendi a dançar, a namorar e a fazer declarações de amor às moças. É a empoeirada e arrepiante redação do jornal La Crónica no qual, nos meus 16 anos, fiz minhas primeiras armas como jornalista, ofício que ocupou quase toda a minha vida e me fez, como os livros, viver mais, conhecer melhor o mundo e frequentar pessoas de todas as partes e de todos os tipos, pessoas excelentes, boas, más e execráveis. É o Colégio Militar Leoncio Prado, onde aprendi que o Peru não era o pequeno reduto de classe média em que eu havia vivido até então confinado e protegido, mas um país grande, antigo, exasperado, desigual e sacudido por todo tipo de tormentas sociais. São as células clandestinas de Cahuide nas quais com um punhado da Universidade de San Marcos preparávamos a revolução mundial. E o Peru são os meus amigos e as minhas amigas do Movimento Libertad, com os quais por três anos, entre bombas, apagões e assassinatos do terrorismo, trabalhamos em defesa da democracia e da cultura da liberdade.O Peru é Patrícia, a prima de narizinho arrebitado e caráter indomável com a qual tive a ventura de me casar há 45 anos, e que ainda suporta as minhas manias, neuroses e meus chiliques que me ajudam a escrever. Sem ela, minha vida teria se dissolvido há muito tempo em um turbilhão caótico, e não haveriam nascido Álvaro, Gonzalo e Morgana, nem os seis netos que nos prolongam e alegram a existência. Ela faz tudo e faz tudo bem. Resolve os problemas, administra a economia, põe ordem no caos, mantém os limites para os jornalistas e intrusos, defende meu tempo dos compromissos e das viagens, faz e desfaz as malas, e é tão generosa que até quando acha que está me desafiando, faz o melhor dos elogios. "Mario, você só serve é para escrever." / TRADUÇÃO DE DAMIAN KRAUS E ANTONIO ALBERTO DIAS CASTROLembranças de uma trajetória SOBRE A INFLUÊNCIA DE AUTORES COMO FLAUBERT"Não era fácil escrever. Ao se transformarem em palavras, os projetos passeavam pelo papel e as ideias e imagens morriam. Mas ali estavam os mestres para que eu aprendesse com eles e seguisse seu exemplo."SOBRE O PERÍODO EM QUE VIVEU NA FRANÇA"A verdade é que devo à França,à cultura francesa, lições inesquecíveis, como a de que a literatura é tanto vocação quanto disciplina, um trabalho e uma perseverança. Mas talvez o que mais agradeço à França seja a descoberta da América Latina. Ali descobri que o Peru fazia parte de uma vasta comunidade irmanada pela história, geografia, problemática social."SOBRE A RELAÇÃO COM SUA TERRA NATAL"Eu levo o Peru nas minhas entranhas, porque nele nasci, cresci, me formei e vivi aquelas experiências da infância e da juventude que modelaram minha personalidade e que forjaram minha vocação; e porque lá amei, odiei, gozei, sofri e sonhei. O que nele acontece me afeta mais e me comove e irrita mais do que o que acontece em outros lugares." SOBRE A UNIVERSALIDADE DA LITERATURA"Sem as ficções seríamos menos conscientes da importância da liberdade para que a vida seja suportável. Elas criam pontes entre as pessoas, nos unem sobre as barreiras das línguas, crenças, usos, costumes e preconceitos que nos separam. Quando a grande baleia branca sepulta o capitão Ahab no mar, o coração dos leitores se oprime do mesmo modo em Tóquio, Lima ou Tombuctu."

Aprendi a ler aos 5 anos, na classe do irmão Justiniano, no Colégio de la Salle, em Cochabamba, na Bolívia. Foi a coisa mais importante da minha vida. Quase 70 anos depois, lembro-me com nitidez como essa magia, transformar as palavras dos livros em imagens, enriqueceu a minha vida, quebrando as barreiras do tempo e do espaço e permitindo-me viajar com o capitão Nemo 20 mil léguas abaixo do nível do mar, lutar junto com D"Artagnan, Athos, Portos e Aramis contra as intrigas que ameaçavam a rainha nos tempos do sinuoso Richelieu, ou arrastar-me pelas entranhas de Paris com o corpo inerte de Marius às costas.A leitura convertia o sonho em vida e a vida em sonho e punha ao alcance do pedacinho de homem que eu era o universo da literatura. Minha mãe me disse que as primeiras coisas que escrevi foram continuações das histórias que lia (...). E talvez seja isso que acabei fazendo na vida sem perceber: prolongar no tempo, enquanto crescia, amadurecia e envelhecia, as histórias que encheram minha infância de exaltação e de aventuras.Gostaria que a minha mãe estivesse aqui, e também meu avô Pedro e o tio Lucho, que tanto me animou a dedicar-me de corpo e alma a escrever (...). Toda a vida tive ao meu lado gente assim, que gostava de mim e me animava e contagiava com a sua fé quando eu duvidava. Graças a eles e, sem dúvida, também à minha insistência e um pouco de sorte, pude dedicar boa parte do meu tempo a essa paixão, vício e maravilha que é escrever, criar uma vida paralela onde nos refugiamos contra a adversidade, que torna natural o extraordinário e o extraordinário natural, que dissipa o caos, embeleza o feio, eterniza o instante e torna a morte um espetáculo passageiro. Não era fácil escrever histórias. Ao se transformarem em palavras, os projetos passeavam pelo papel e as ideias e imagens morriam. (...) Por sorte, ali estavam os mestres para que eu aprendesse com eles e seguisse seu exemplo. Flaubert me ensinou que o talento é uma disciplina tenaz e uma longa paciência. Faulkner, que é a forma que engrandece ou empobrece os temas. Martorell, Cervantes, Dickens, Balzac, Tolstoi, Conrad, Thomas Mann, que o número e a ambição são tão importantes numa novela quanto a destreza estilística e a estratégia narrativa. Sartre, que as palavras são atos e que uma novela, uma peça de teatro, um ensaio, comprometidos com a atualidade e as melhores opções, podem mudar o curso da História. Camus e Orwell, que uma literatura desprovida de moral é desumana, e Malraux que o heroísmo e o épico cabiam na atualidade tanto quanto no tempo dos argonautas, da Odisseia e da Ilíada. (...)Algumas vezes me perguntei se em países como o meu, com poucos leitores e tantos pobres, analfabetos e injustiças, onde a cultura era privilégio de tão poucos, escrever não era um luxo escapista. Mas essas dúvidas nunca asfixiaram minha vocação (...). Acho que fiz a coisa certa, pois, se para a literatura florescer numa sociedade fosse preciso lançar primeiro a alta cultura, a liberdade, a prosperidade e a justiça, isso não teria existido nunca. Ao contrário, graças à literatura, às consciências que ela formou, aos desejos e anseios que inspirou, ao desencanto do real com que retornamos da viagem a uma bela fantasia, a civilização é agora menos cruel do que quando os contadores de contos começaram a humanizar a vida com suas fábulas. Seríamos piores do que somos sem os bons livros que lemos, mais conformistas, menos inquietos e insubmissos, e o espírito crítico, o motor do progresso, nem sequer existiria. A exemplo de escrever, ler é protestar contra as insuficiências da vida. (...)Sem as ficções seríamos menos conscientes da importância da liberdade para que a vida seja suportável e do inferno em que ela se converte quando dominada por um tirano, uma ideologia ou uma religião. Quem duvida que a literatura, além de nos levar ao sonho da beleza e da felicidade, nos alerta contra toda forma de opressão, pergunte por que todos os regimes empenhados em controlar a conduta dos cidadãos, do berço ao túmulo, a temem tanto a ponto de estabelecerem regras de censura para reprimi-la (...). Fazem isso porque sabem o risco que correm ao deixarem que a imaginação flua pelos livros (...). Queiram ou não, saibam disso ou não, os criadores de fábulas, ao inventar histórias, propagam a insatisfação, mostrando que o mundo é mal feito, que a vida da fantasia é mais rica que a rotina cotidiana. Essa constatação cria raízes na sensibilidade e na consciência, torna os cidadãos mais difíceis de manipular (...). A boa literatura cria pontes entre pessoas diferentes, (...) nos une sobre as barreiras das línguas, crenças, usos, costumes e preconceitos que nos separam. Quando a grande baleia branca sepulta o capitão Ahab no mar, o coração dos leitores se oprime do mesmo modo em Tóquio, Lima ou Tombuctu. (...) A literatura cria uma fraternidade dentro da diversidade humana e apaga as fronteiras que erguem entre os homens e mulheres a ignorância, as ideologias, as religiões, os idiomas e a estupidez. (...)Quando criança, sonhava chegar um dia a Paris porque, deslumbrado com a literatura francesa, acreditava que viver ali e respirar o ar que respiraram Balzac, Stendhal, Baudelaire, Proust me ajudaria a tornar-me um verdadeiro escritor, que se eu não saísse do Peru seria um pseudoescritor de fins de semana e feriados. E a verdade é que devo à França, à cultura francesa, lições inesquecíveis, como a de que a literatura é tanto vocação quanto disciplina, um trabalho e uma perseverança. (...) Mas talvez o que mais agradeço à França seja a descoberta da América Latina. Ali descobri que o Peru fazia parte de uma vasta comunidade irmanada pela história, geografia, problemática social e política, por uma certa maneira de ser e pela saborosa língua que eu falava e na qual escrevia. E que nessa mesma época produzia uma literatura nova e pujante. Foi lá que li Borges, Octavio Paz, Cortázar, García Márquez, Fuentes, Cabrera Infante, Rulfo, Onetti, Carpentier, Edwards, Donoso e muitos outros, cujos textos estavam revolucionando a narrativa em língua espanhola, e graças aos quais a Europa e boa parte do mundo descobriram que a América Latina não era só o continente dos golpes de Estado, dos caudilhos de opereta, dos guerrilheiros barbudos e das maracas do mambo e do chachachá, mas também das ideias, formas artísticas e fantasias literárias que transcendiam o pitoresco e falavam uma linguagem universal. (...)Eu levo o Peru nas minhas entranhas, porque nele nasci, cresci, formei-me e vivi aquelas experiências da infância e da juventude que modelaram minha personalidade e que forjaram minha vocação; e porque lá amei, odiei, gozei, sofri e sonhei. O que nele acontece me afeta mais e me comove e irrita mais do que o que acontece em outros lugares. (...) Alguns compatriotas me acusaram de traidor, e cheguei a ponto de quase perder a cidadania quando, durante a última ditadura, pedi que os governos democráticos do mundo punissem o regime com sanções diplomáticas e econômicas, como sempre fiz com relação a todas as ditaduras, as de qualquer espécie: a de Pinochet, a de Fidel Castro, a dos talebães no Afeganistão, a dos aiatolás no Irã, a do apartheid na África do Sul, a dos sátrapas uniformizados na Birmânia (hoje Mianmar). (...) Não foi aquela uma ação precipitada e passional de um ressentido. Foi um ato coerente com a minha convicção de que uma ditadura representa o mal absoluto para um país, uma fonte de brutalidade e corrupção, e de feridas profundas, que demoram muito para se fecharem, envenenam seu futuro e criam hábitos e práticas prejudiciais que se estendem ao longo de gerações, adiando a reconstrução democrática. Por isso as ditaduras devem ser combatidas sem contemplações, por todos os meios ao nosso alcance, incluindo as sanções econômicas. É lamentável que os governos democráticos, em vez de darem o exemplo, solidarizando-se com aqueles que enfrentam com temeridade as ditaduras que sofrem, frequentemente tenham se mostrado complacentes não com eles, mas com seus carrascos. (...)A conquista da América foi cruel e violenta, como todas as conquistas, sem dúvida, e deve ser criticada, porém sem esquecermos, ao criticarmos, que os que cometeram aqueles despojos e crimes foram, em grande número, nossos bisavós e tataravós, os espanhóis que foram à América e aí se adaptaram, não os que ficaram na sua terra. As críticas, para serem justas, devem ser uma autocrítica. Porque, ao nos emanciparmos da Espanha, há 200 anos, os que tomaram posse nas antigas colônias, em vez de redimir os índios e fazerem justiça pelos antigos agravos, continuaram a explorá-los, com tanta cobiça e ferocidade quanto os conquistadores, e, em alguns países, dizimando-os e exterminando-os. Digamos com total clareza: há dois séculos, a emancipação dos indígenas é de responsabilidade exclusivamente nossa, e não temos cumprido com ela, que continua a ser uma matéria pendente em toda a América Latina. Não há uma exceção a essa afronta e essa vergonha. (...)De todos os anos que vivi em solo espanhol, lembro com fulgor dos cinco que passei na querida Barcelona, a começo dos anos 70. A ditadura de Franco ainda estava em pé e fuzilava, mas era um fóssil em fiapos, e, sobretudo no campo da cultura, era incapaz de manter os controles de outrora. Abriam-se fendas e resquícios que a censura não conseguia sanar e, por eles, a sociedade espanhola absorvia novas ideias, livros, correntes de pensamento, valores e formas artísticas até então proibidos por serem subversivos. Nenhuma cidade aproveitou tanto e tão bem quanto Barcelona esse começo da abertura, nem viveu uma efervescência semelhante em todos os campos das ideias e da criação. Tornou-se a capital cultural da Espanha. E, de certa forma, foi também a capital cultural da América Latina, dada a quantidade de pintores, escritores, editores e artistas oriundos dos países latino-americanos que lá se instalaram (...). Para mim, aqueles foram anos inesquecíveis de companheirismo, amizade, conspirações e de fecundo trabalho intelectual. Como havia sido Paris antes, Barcelona foi uma Torre de Babel, uma cidade cosmopolita e universal, onde era estimulante morar e trabalhar, e onde, pela primeira vez desde os tempos da guerra civil, escritores espanhóis e latino-americanos se misturavam e confraternizavam, reconhecendo-se como donos de uma mesma tradição (...).(...) A transição espanhola do autoritarismo para a liberdade, do subdesenvolvimento para a prosperidade, de uma sociedade de contrastes econômicos e desigualdades terceiro-mundistas para um país de classes médias, a sua integração à Europa e a sua adoção em poucos anos de uma cultura democrática, surpreendeu o mundo e disparou a modernização da Espanha. Foi uma experiência emocionante e instrutiva vivê-la de muito perto e por dentro em alguns momentos. Tomara que os nacionalismos, a praga incurável do mundo moderno e também na Espanha, não estraguem essa história feliz. (...)O Peru é para mim a Arequipa onde nasci, mas onde nunca morei, a cidade que minha mãe, meus avós e meus tios me ensinaram a conhecer através das suas lembranças e nostalgias, porque toda minha tribo familiar, como costumam fazer os arequipenses, sempre levou consigo para a Cidade Branca em sua andarilha existência. (...) É o Colégio San Miguel e o Teatro Variedades, onde pela primeira vez vi encenada uma obrinha escrita por mim. É a esquina de Diego Ferré e Colón, no bairro de Miraflores, em Lima, - o chamávamos de o Bairro Alegre, onde troquei as calças curtas pelas compridas, fumei meu primeiro cigarro, aprendi a dançar, a namorar e a fazer declarações de amor às moças. É a empoeirada e arrepiante redação do jornal La Crónica no qual, nos meus 16 anos, fiz minhas primeiras armas como jornalista, ofício que ocupou quase toda a minha vida e me fez, como os livros, viver mais, conhecer melhor o mundo e frequentar pessoas de todas as partes e de todos os tipos, pessoas excelentes, boas, más e execráveis. É o Colégio Militar Leoncio Prado, onde aprendi que o Peru não era o pequeno reduto de classe média em que eu havia vivido até então confinado e protegido, mas um país grande, antigo, exasperado, desigual e sacudido por todo tipo de tormentas sociais. São as células clandestinas de Cahuide nas quais com um punhado da Universidade de San Marcos preparávamos a revolução mundial. E o Peru são os meus amigos e as minhas amigas do Movimento Libertad, com os quais por três anos, entre bombas, apagões e assassinatos do terrorismo, trabalhamos em defesa da democracia e da cultura da liberdade.O Peru é Patrícia, a prima de narizinho arrebitado e caráter indomável com a qual tive a ventura de me casar há 45 anos, e que ainda suporta as minhas manias, neuroses e meus chiliques que me ajudam a escrever. Sem ela, minha vida teria se dissolvido há muito tempo em um turbilhão caótico, e não haveriam nascido Álvaro, Gonzalo e Morgana, nem os seis netos que nos prolongam e alegram a existência. Ela faz tudo e faz tudo bem. Resolve os problemas, administra a economia, põe ordem no caos, mantém os limites para os jornalistas e intrusos, defende meu tempo dos compromissos e das viagens, faz e desfaz as malas, e é tão generosa que até quando acha que está me desafiando, faz o melhor dos elogios. "Mario, você só serve é para escrever." / TRADUÇÃO DE DAMIAN KRAUS E ANTONIO ALBERTO DIAS CASTROLembranças de uma trajetória SOBRE A INFLUÊNCIA DE AUTORES COMO FLAUBERT"Não era fácil escrever. Ao se transformarem em palavras, os projetos passeavam pelo papel e as ideias e imagens morriam. Mas ali estavam os mestres para que eu aprendesse com eles e seguisse seu exemplo."SOBRE O PERÍODO EM QUE VIVEU NA FRANÇA"A verdade é que devo à França,à cultura francesa, lições inesquecíveis, como a de que a literatura é tanto vocação quanto disciplina, um trabalho e uma perseverança. Mas talvez o que mais agradeço à França seja a descoberta da América Latina. Ali descobri que o Peru fazia parte de uma vasta comunidade irmanada pela história, geografia, problemática social."SOBRE A RELAÇÃO COM SUA TERRA NATAL"Eu levo o Peru nas minhas entranhas, porque nele nasci, cresci, me formei e vivi aquelas experiências da infância e da juventude que modelaram minha personalidade e que forjaram minha vocação; e porque lá amei, odiei, gozei, sofri e sonhei. O que nele acontece me afeta mais e me comove e irrita mais do que o que acontece em outros lugares." SOBRE A UNIVERSALIDADE DA LITERATURA"Sem as ficções seríamos menos conscientes da importância da liberdade para que a vida seja suportável. Elas criam pontes entre as pessoas, nos unem sobre as barreiras das línguas, crenças, usos, costumes e preconceitos que nos separam. Quando a grande baleia branca sepulta o capitão Ahab no mar, o coração dos leitores se oprime do mesmo modo em Tóquio, Lima ou Tombuctu."

Aprendi a ler aos 5 anos, na classe do irmão Justiniano, no Colégio de la Salle, em Cochabamba, na Bolívia. Foi a coisa mais importante da minha vida. Quase 70 anos depois, lembro-me com nitidez como essa magia, transformar as palavras dos livros em imagens, enriqueceu a minha vida, quebrando as barreiras do tempo e do espaço e permitindo-me viajar com o capitão Nemo 20 mil léguas abaixo do nível do mar, lutar junto com D"Artagnan, Athos, Portos e Aramis contra as intrigas que ameaçavam a rainha nos tempos do sinuoso Richelieu, ou arrastar-me pelas entranhas de Paris com o corpo inerte de Marius às costas.A leitura convertia o sonho em vida e a vida em sonho e punha ao alcance do pedacinho de homem que eu era o universo da literatura. Minha mãe me disse que as primeiras coisas que escrevi foram continuações das histórias que lia (...). E talvez seja isso que acabei fazendo na vida sem perceber: prolongar no tempo, enquanto crescia, amadurecia e envelhecia, as histórias que encheram minha infância de exaltação e de aventuras.Gostaria que a minha mãe estivesse aqui, e também meu avô Pedro e o tio Lucho, que tanto me animou a dedicar-me de corpo e alma a escrever (...). Toda a vida tive ao meu lado gente assim, que gostava de mim e me animava e contagiava com a sua fé quando eu duvidava. Graças a eles e, sem dúvida, também à minha insistência e um pouco de sorte, pude dedicar boa parte do meu tempo a essa paixão, vício e maravilha que é escrever, criar uma vida paralela onde nos refugiamos contra a adversidade, que torna natural o extraordinário e o extraordinário natural, que dissipa o caos, embeleza o feio, eterniza o instante e torna a morte um espetáculo passageiro. Não era fácil escrever histórias. Ao se transformarem em palavras, os projetos passeavam pelo papel e as ideias e imagens morriam. (...) Por sorte, ali estavam os mestres para que eu aprendesse com eles e seguisse seu exemplo. Flaubert me ensinou que o talento é uma disciplina tenaz e uma longa paciência. Faulkner, que é a forma que engrandece ou empobrece os temas. Martorell, Cervantes, Dickens, Balzac, Tolstoi, Conrad, Thomas Mann, que o número e a ambição são tão importantes numa novela quanto a destreza estilística e a estratégia narrativa. Sartre, que as palavras são atos e que uma novela, uma peça de teatro, um ensaio, comprometidos com a atualidade e as melhores opções, podem mudar o curso da História. Camus e Orwell, que uma literatura desprovida de moral é desumana, e Malraux que o heroísmo e o épico cabiam na atualidade tanto quanto no tempo dos argonautas, da Odisseia e da Ilíada. (...)Algumas vezes me perguntei se em países como o meu, com poucos leitores e tantos pobres, analfabetos e injustiças, onde a cultura era privilégio de tão poucos, escrever não era um luxo escapista. Mas essas dúvidas nunca asfixiaram minha vocação (...). Acho que fiz a coisa certa, pois, se para a literatura florescer numa sociedade fosse preciso lançar primeiro a alta cultura, a liberdade, a prosperidade e a justiça, isso não teria existido nunca. Ao contrário, graças à literatura, às consciências que ela formou, aos desejos e anseios que inspirou, ao desencanto do real com que retornamos da viagem a uma bela fantasia, a civilização é agora menos cruel do que quando os contadores de contos começaram a humanizar a vida com suas fábulas. Seríamos piores do que somos sem os bons livros que lemos, mais conformistas, menos inquietos e insubmissos, e o espírito crítico, o motor do progresso, nem sequer existiria. A exemplo de escrever, ler é protestar contra as insuficiências da vida. (...)Sem as ficções seríamos menos conscientes da importância da liberdade para que a vida seja suportável e do inferno em que ela se converte quando dominada por um tirano, uma ideologia ou uma religião. Quem duvida que a literatura, além de nos levar ao sonho da beleza e da felicidade, nos alerta contra toda forma de opressão, pergunte por que todos os regimes empenhados em controlar a conduta dos cidadãos, do berço ao túmulo, a temem tanto a ponto de estabelecerem regras de censura para reprimi-la (...). Fazem isso porque sabem o risco que correm ao deixarem que a imaginação flua pelos livros (...). Queiram ou não, saibam disso ou não, os criadores de fábulas, ao inventar histórias, propagam a insatisfação, mostrando que o mundo é mal feito, que a vida da fantasia é mais rica que a rotina cotidiana. Essa constatação cria raízes na sensibilidade e na consciência, torna os cidadãos mais difíceis de manipular (...). A boa literatura cria pontes entre pessoas diferentes, (...) nos une sobre as barreiras das línguas, crenças, usos, costumes e preconceitos que nos separam. Quando a grande baleia branca sepulta o capitão Ahab no mar, o coração dos leitores se oprime do mesmo modo em Tóquio, Lima ou Tombuctu. (...) A literatura cria uma fraternidade dentro da diversidade humana e apaga as fronteiras que erguem entre os homens e mulheres a ignorância, as ideologias, as religiões, os idiomas e a estupidez. (...)Quando criança, sonhava chegar um dia a Paris porque, deslumbrado com a literatura francesa, acreditava que viver ali e respirar o ar que respiraram Balzac, Stendhal, Baudelaire, Proust me ajudaria a tornar-me um verdadeiro escritor, que se eu não saísse do Peru seria um pseudoescritor de fins de semana e feriados. E a verdade é que devo à França, à cultura francesa, lições inesquecíveis, como a de que a literatura é tanto vocação quanto disciplina, um trabalho e uma perseverança. (...) Mas talvez o que mais agradeço à França seja a descoberta da América Latina. Ali descobri que o Peru fazia parte de uma vasta comunidade irmanada pela história, geografia, problemática social e política, por uma certa maneira de ser e pela saborosa língua que eu falava e na qual escrevia. E que nessa mesma época produzia uma literatura nova e pujante. Foi lá que li Borges, Octavio Paz, Cortázar, García Márquez, Fuentes, Cabrera Infante, Rulfo, Onetti, Carpentier, Edwards, Donoso e muitos outros, cujos textos estavam revolucionando a narrativa em língua espanhola, e graças aos quais a Europa e boa parte do mundo descobriram que a América Latina não era só o continente dos golpes de Estado, dos caudilhos de opereta, dos guerrilheiros barbudos e das maracas do mambo e do chachachá, mas também das ideias, formas artísticas e fantasias literárias que transcendiam o pitoresco e falavam uma linguagem universal. (...)Eu levo o Peru nas minhas entranhas, porque nele nasci, cresci, formei-me e vivi aquelas experiências da infância e da juventude que modelaram minha personalidade e que forjaram minha vocação; e porque lá amei, odiei, gozei, sofri e sonhei. O que nele acontece me afeta mais e me comove e irrita mais do que o que acontece em outros lugares. (...) Alguns compatriotas me acusaram de traidor, e cheguei a ponto de quase perder a cidadania quando, durante a última ditadura, pedi que os governos democráticos do mundo punissem o regime com sanções diplomáticas e econômicas, como sempre fiz com relação a todas as ditaduras, as de qualquer espécie: a de Pinochet, a de Fidel Castro, a dos talebães no Afeganistão, a dos aiatolás no Irã, a do apartheid na África do Sul, a dos sátrapas uniformizados na Birmânia (hoje Mianmar). (...) Não foi aquela uma ação precipitada e passional de um ressentido. Foi um ato coerente com a minha convicção de que uma ditadura representa o mal absoluto para um país, uma fonte de brutalidade e corrupção, e de feridas profundas, que demoram muito para se fecharem, envenenam seu futuro e criam hábitos e práticas prejudiciais que se estendem ao longo de gerações, adiando a reconstrução democrática. Por isso as ditaduras devem ser combatidas sem contemplações, por todos os meios ao nosso alcance, incluindo as sanções econômicas. É lamentável que os governos democráticos, em vez de darem o exemplo, solidarizando-se com aqueles que enfrentam com temeridade as ditaduras que sofrem, frequentemente tenham se mostrado complacentes não com eles, mas com seus carrascos. (...)A conquista da América foi cruel e violenta, como todas as conquistas, sem dúvida, e deve ser criticada, porém sem esquecermos, ao criticarmos, que os que cometeram aqueles despojos e crimes foram, em grande número, nossos bisavós e tataravós, os espanhóis que foram à América e aí se adaptaram, não os que ficaram na sua terra. As críticas, para serem justas, devem ser uma autocrítica. Porque, ao nos emanciparmos da Espanha, há 200 anos, os que tomaram posse nas antigas colônias, em vez de redimir os índios e fazerem justiça pelos antigos agravos, continuaram a explorá-los, com tanta cobiça e ferocidade quanto os conquistadores, e, em alguns países, dizimando-os e exterminando-os. Digamos com total clareza: há dois séculos, a emancipação dos indígenas é de responsabilidade exclusivamente nossa, e não temos cumprido com ela, que continua a ser uma matéria pendente em toda a América Latina. Não há uma exceção a essa afronta e essa vergonha. (...)De todos os anos que vivi em solo espanhol, lembro com fulgor dos cinco que passei na querida Barcelona, a começo dos anos 70. A ditadura de Franco ainda estava em pé e fuzilava, mas era um fóssil em fiapos, e, sobretudo no campo da cultura, era incapaz de manter os controles de outrora. Abriam-se fendas e resquícios que a censura não conseguia sanar e, por eles, a sociedade espanhola absorvia novas ideias, livros, correntes de pensamento, valores e formas artísticas até então proibidos por serem subversivos. Nenhuma cidade aproveitou tanto e tão bem quanto Barcelona esse começo da abertura, nem viveu uma efervescência semelhante em todos os campos das ideias e da criação. Tornou-se a capital cultural da Espanha. E, de certa forma, foi também a capital cultural da América Latina, dada a quantidade de pintores, escritores, editores e artistas oriundos dos países latino-americanos que lá se instalaram (...). Para mim, aqueles foram anos inesquecíveis de companheirismo, amizade, conspirações e de fecundo trabalho intelectual. Como havia sido Paris antes, Barcelona foi uma Torre de Babel, uma cidade cosmopolita e universal, onde era estimulante morar e trabalhar, e onde, pela primeira vez desde os tempos da guerra civil, escritores espanhóis e latino-americanos se misturavam e confraternizavam, reconhecendo-se como donos de uma mesma tradição (...).(...) A transição espanhola do autoritarismo para a liberdade, do subdesenvolvimento para a prosperidade, de uma sociedade de contrastes econômicos e desigualdades terceiro-mundistas para um país de classes médias, a sua integração à Europa e a sua adoção em poucos anos de uma cultura democrática, surpreendeu o mundo e disparou a modernização da Espanha. Foi uma experiência emocionante e instrutiva vivê-la de muito perto e por dentro em alguns momentos. Tomara que os nacionalismos, a praga incurável do mundo moderno e também na Espanha, não estraguem essa história feliz. (...)O Peru é para mim a Arequipa onde nasci, mas onde nunca morei, a cidade que minha mãe, meus avós e meus tios me ensinaram a conhecer através das suas lembranças e nostalgias, porque toda minha tribo familiar, como costumam fazer os arequipenses, sempre levou consigo para a Cidade Branca em sua andarilha existência. (...) É o Colégio San Miguel e o Teatro Variedades, onde pela primeira vez vi encenada uma obrinha escrita por mim. É a esquina de Diego Ferré e Colón, no bairro de Miraflores, em Lima, - o chamávamos de o Bairro Alegre, onde troquei as calças curtas pelas compridas, fumei meu primeiro cigarro, aprendi a dançar, a namorar e a fazer declarações de amor às moças. É a empoeirada e arrepiante redação do jornal La Crónica no qual, nos meus 16 anos, fiz minhas primeiras armas como jornalista, ofício que ocupou quase toda a minha vida e me fez, como os livros, viver mais, conhecer melhor o mundo e frequentar pessoas de todas as partes e de todos os tipos, pessoas excelentes, boas, más e execráveis. É o Colégio Militar Leoncio Prado, onde aprendi que o Peru não era o pequeno reduto de classe média em que eu havia vivido até então confinado e protegido, mas um país grande, antigo, exasperado, desigual e sacudido por todo tipo de tormentas sociais. São as células clandestinas de Cahuide nas quais com um punhado da Universidade de San Marcos preparávamos a revolução mundial. E o Peru são os meus amigos e as minhas amigas do Movimento Libertad, com os quais por três anos, entre bombas, apagões e assassinatos do terrorismo, trabalhamos em defesa da democracia e da cultura da liberdade.O Peru é Patrícia, a prima de narizinho arrebitado e caráter indomável com a qual tive a ventura de me casar há 45 anos, e que ainda suporta as minhas manias, neuroses e meus chiliques que me ajudam a escrever. Sem ela, minha vida teria se dissolvido há muito tempo em um turbilhão caótico, e não haveriam nascido Álvaro, Gonzalo e Morgana, nem os seis netos que nos prolongam e alegram a existência. Ela faz tudo e faz tudo bem. Resolve os problemas, administra a economia, põe ordem no caos, mantém os limites para os jornalistas e intrusos, defende meu tempo dos compromissos e das viagens, faz e desfaz as malas, e é tão generosa que até quando acha que está me desafiando, faz o melhor dos elogios. "Mario, você só serve é para escrever." / TRADUÇÃO DE DAMIAN KRAUS E ANTONIO ALBERTO DIAS CASTROLembranças de uma trajetória SOBRE A INFLUÊNCIA DE AUTORES COMO FLAUBERT"Não era fácil escrever. Ao se transformarem em palavras, os projetos passeavam pelo papel e as ideias e imagens morriam. Mas ali estavam os mestres para que eu aprendesse com eles e seguisse seu exemplo."SOBRE O PERÍODO EM QUE VIVEU NA FRANÇA"A verdade é que devo à França,à cultura francesa, lições inesquecíveis, como a de que a literatura é tanto vocação quanto disciplina, um trabalho e uma perseverança. Mas talvez o que mais agradeço à França seja a descoberta da América Latina. Ali descobri que o Peru fazia parte de uma vasta comunidade irmanada pela história, geografia, problemática social."SOBRE A RELAÇÃO COM SUA TERRA NATAL"Eu levo o Peru nas minhas entranhas, porque nele nasci, cresci, me formei e vivi aquelas experiências da infância e da juventude que modelaram minha personalidade e que forjaram minha vocação; e porque lá amei, odiei, gozei, sofri e sonhei. O que nele acontece me afeta mais e me comove e irrita mais do que o que acontece em outros lugares." SOBRE A UNIVERSALIDADE DA LITERATURA"Sem as ficções seríamos menos conscientes da importância da liberdade para que a vida seja suportável. Elas criam pontes entre as pessoas, nos unem sobre as barreiras das línguas, crenças, usos, costumes e preconceitos que nos separam. Quando a grande baleia branca sepulta o capitão Ahab no mar, o coração dos leitores se oprime do mesmo modo em Tóquio, Lima ou Tombuctu."

Aprendi a ler aos 5 anos, na classe do irmão Justiniano, no Colégio de la Salle, em Cochabamba, na Bolívia. Foi a coisa mais importante da minha vida. Quase 70 anos depois, lembro-me com nitidez como essa magia, transformar as palavras dos livros em imagens, enriqueceu a minha vida, quebrando as barreiras do tempo e do espaço e permitindo-me viajar com o capitão Nemo 20 mil léguas abaixo do nível do mar, lutar junto com D"Artagnan, Athos, Portos e Aramis contra as intrigas que ameaçavam a rainha nos tempos do sinuoso Richelieu, ou arrastar-me pelas entranhas de Paris com o corpo inerte de Marius às costas.A leitura convertia o sonho em vida e a vida em sonho e punha ao alcance do pedacinho de homem que eu era o universo da literatura. Minha mãe me disse que as primeiras coisas que escrevi foram continuações das histórias que lia (...). E talvez seja isso que acabei fazendo na vida sem perceber: prolongar no tempo, enquanto crescia, amadurecia e envelhecia, as histórias que encheram minha infância de exaltação e de aventuras.Gostaria que a minha mãe estivesse aqui, e também meu avô Pedro e o tio Lucho, que tanto me animou a dedicar-me de corpo e alma a escrever (...). Toda a vida tive ao meu lado gente assim, que gostava de mim e me animava e contagiava com a sua fé quando eu duvidava. Graças a eles e, sem dúvida, também à minha insistência e um pouco de sorte, pude dedicar boa parte do meu tempo a essa paixão, vício e maravilha que é escrever, criar uma vida paralela onde nos refugiamos contra a adversidade, que torna natural o extraordinário e o extraordinário natural, que dissipa o caos, embeleza o feio, eterniza o instante e torna a morte um espetáculo passageiro. Não era fácil escrever histórias. Ao se transformarem em palavras, os projetos passeavam pelo papel e as ideias e imagens morriam. (...) Por sorte, ali estavam os mestres para que eu aprendesse com eles e seguisse seu exemplo. Flaubert me ensinou que o talento é uma disciplina tenaz e uma longa paciência. Faulkner, que é a forma que engrandece ou empobrece os temas. Martorell, Cervantes, Dickens, Balzac, Tolstoi, Conrad, Thomas Mann, que o número e a ambição são tão importantes numa novela quanto a destreza estilística e a estratégia narrativa. Sartre, que as palavras são atos e que uma novela, uma peça de teatro, um ensaio, comprometidos com a atualidade e as melhores opções, podem mudar o curso da História. Camus e Orwell, que uma literatura desprovida de moral é desumana, e Malraux que o heroísmo e o épico cabiam na atualidade tanto quanto no tempo dos argonautas, da Odisseia e da Ilíada. (...)Algumas vezes me perguntei se em países como o meu, com poucos leitores e tantos pobres, analfabetos e injustiças, onde a cultura era privilégio de tão poucos, escrever não era um luxo escapista. Mas essas dúvidas nunca asfixiaram minha vocação (...). Acho que fiz a coisa certa, pois, se para a literatura florescer numa sociedade fosse preciso lançar primeiro a alta cultura, a liberdade, a prosperidade e a justiça, isso não teria existido nunca. Ao contrário, graças à literatura, às consciências que ela formou, aos desejos e anseios que inspirou, ao desencanto do real com que retornamos da viagem a uma bela fantasia, a civilização é agora menos cruel do que quando os contadores de contos começaram a humanizar a vida com suas fábulas. Seríamos piores do que somos sem os bons livros que lemos, mais conformistas, menos inquietos e insubmissos, e o espírito crítico, o motor do progresso, nem sequer existiria. A exemplo de escrever, ler é protestar contra as insuficiências da vida. (...)Sem as ficções seríamos menos conscientes da importância da liberdade para que a vida seja suportável e do inferno em que ela se converte quando dominada por um tirano, uma ideologia ou uma religião. Quem duvida que a literatura, além de nos levar ao sonho da beleza e da felicidade, nos alerta contra toda forma de opressão, pergunte por que todos os regimes empenhados em controlar a conduta dos cidadãos, do berço ao túmulo, a temem tanto a ponto de estabelecerem regras de censura para reprimi-la (...). Fazem isso porque sabem o risco que correm ao deixarem que a imaginação flua pelos livros (...). Queiram ou não, saibam disso ou não, os criadores de fábulas, ao inventar histórias, propagam a insatisfação, mostrando que o mundo é mal feito, que a vida da fantasia é mais rica que a rotina cotidiana. Essa constatação cria raízes na sensibilidade e na consciência, torna os cidadãos mais difíceis de manipular (...). A boa literatura cria pontes entre pessoas diferentes, (...) nos une sobre as barreiras das línguas, crenças, usos, costumes e preconceitos que nos separam. Quando a grande baleia branca sepulta o capitão Ahab no mar, o coração dos leitores se oprime do mesmo modo em Tóquio, Lima ou Tombuctu. (...) A literatura cria uma fraternidade dentro da diversidade humana e apaga as fronteiras que erguem entre os homens e mulheres a ignorância, as ideologias, as religiões, os idiomas e a estupidez. (...)Quando criança, sonhava chegar um dia a Paris porque, deslumbrado com a literatura francesa, acreditava que viver ali e respirar o ar que respiraram Balzac, Stendhal, Baudelaire, Proust me ajudaria a tornar-me um verdadeiro escritor, que se eu não saísse do Peru seria um pseudoescritor de fins de semana e feriados. E a verdade é que devo à França, à cultura francesa, lições inesquecíveis, como a de que a literatura é tanto vocação quanto disciplina, um trabalho e uma perseverança. (...) Mas talvez o que mais agradeço à França seja a descoberta da América Latina. Ali descobri que o Peru fazia parte de uma vasta comunidade irmanada pela história, geografia, problemática social e política, por uma certa maneira de ser e pela saborosa língua que eu falava e na qual escrevia. E que nessa mesma época produzia uma literatura nova e pujante. Foi lá que li Borges, Octavio Paz, Cortázar, García Márquez, Fuentes, Cabrera Infante, Rulfo, Onetti, Carpentier, Edwards, Donoso e muitos outros, cujos textos estavam revolucionando a narrativa em língua espanhola, e graças aos quais a Europa e boa parte do mundo descobriram que a América Latina não era só o continente dos golpes de Estado, dos caudilhos de opereta, dos guerrilheiros barbudos e das maracas do mambo e do chachachá, mas também das ideias, formas artísticas e fantasias literárias que transcendiam o pitoresco e falavam uma linguagem universal. (...)Eu levo o Peru nas minhas entranhas, porque nele nasci, cresci, formei-me e vivi aquelas experiências da infância e da juventude que modelaram minha personalidade e que forjaram minha vocação; e porque lá amei, odiei, gozei, sofri e sonhei. O que nele acontece me afeta mais e me comove e irrita mais do que o que acontece em outros lugares. (...) Alguns compatriotas me acusaram de traidor, e cheguei a ponto de quase perder a cidadania quando, durante a última ditadura, pedi que os governos democráticos do mundo punissem o regime com sanções diplomáticas e econômicas, como sempre fiz com relação a todas as ditaduras, as de qualquer espécie: a de Pinochet, a de Fidel Castro, a dos talebães no Afeganistão, a dos aiatolás no Irã, a do apartheid na África do Sul, a dos sátrapas uniformizados na Birmânia (hoje Mianmar). (...) Não foi aquela uma ação precipitada e passional de um ressentido. Foi um ato coerente com a minha convicção de que uma ditadura representa o mal absoluto para um país, uma fonte de brutalidade e corrupção, e de feridas profundas, que demoram muito para se fecharem, envenenam seu futuro e criam hábitos e práticas prejudiciais que se estendem ao longo de gerações, adiando a reconstrução democrática. Por isso as ditaduras devem ser combatidas sem contemplações, por todos os meios ao nosso alcance, incluindo as sanções econômicas. É lamentável que os governos democráticos, em vez de darem o exemplo, solidarizando-se com aqueles que enfrentam com temeridade as ditaduras que sofrem, frequentemente tenham se mostrado complacentes não com eles, mas com seus carrascos. (...)A conquista da América foi cruel e violenta, como todas as conquistas, sem dúvida, e deve ser criticada, porém sem esquecermos, ao criticarmos, que os que cometeram aqueles despojos e crimes foram, em grande número, nossos bisavós e tataravós, os espanhóis que foram à América e aí se adaptaram, não os que ficaram na sua terra. As críticas, para serem justas, devem ser uma autocrítica. Porque, ao nos emanciparmos da Espanha, há 200 anos, os que tomaram posse nas antigas colônias, em vez de redimir os índios e fazerem justiça pelos antigos agravos, continuaram a explorá-los, com tanta cobiça e ferocidade quanto os conquistadores, e, em alguns países, dizimando-os e exterminando-os. Digamos com total clareza: há dois séculos, a emancipação dos indígenas é de responsabilidade exclusivamente nossa, e não temos cumprido com ela, que continua a ser uma matéria pendente em toda a América Latina. Não há uma exceção a essa afronta e essa vergonha. (...)De todos os anos que vivi em solo espanhol, lembro com fulgor dos cinco que passei na querida Barcelona, a começo dos anos 70. A ditadura de Franco ainda estava em pé e fuzilava, mas era um fóssil em fiapos, e, sobretudo no campo da cultura, era incapaz de manter os controles de outrora. Abriam-se fendas e resquícios que a censura não conseguia sanar e, por eles, a sociedade espanhola absorvia novas ideias, livros, correntes de pensamento, valores e formas artísticas até então proibidos por serem subversivos. Nenhuma cidade aproveitou tanto e tão bem quanto Barcelona esse começo da abertura, nem viveu uma efervescência semelhante em todos os campos das ideias e da criação. Tornou-se a capital cultural da Espanha. E, de certa forma, foi também a capital cultural da América Latina, dada a quantidade de pintores, escritores, editores e artistas oriundos dos países latino-americanos que lá se instalaram (...). Para mim, aqueles foram anos inesquecíveis de companheirismo, amizade, conspirações e de fecundo trabalho intelectual. Como havia sido Paris antes, Barcelona foi uma Torre de Babel, uma cidade cosmopolita e universal, onde era estimulante morar e trabalhar, e onde, pela primeira vez desde os tempos da guerra civil, escritores espanhóis e latino-americanos se misturavam e confraternizavam, reconhecendo-se como donos de uma mesma tradição (...).(...) A transição espanhola do autoritarismo para a liberdade, do subdesenvolvimento para a prosperidade, de uma sociedade de contrastes econômicos e desigualdades terceiro-mundistas para um país de classes médias, a sua integração à Europa e a sua adoção em poucos anos de uma cultura democrática, surpreendeu o mundo e disparou a modernização da Espanha. Foi uma experiência emocionante e instrutiva vivê-la de muito perto e por dentro em alguns momentos. Tomara que os nacionalismos, a praga incurável do mundo moderno e também na Espanha, não estraguem essa história feliz. (...)O Peru é para mim a Arequipa onde nasci, mas onde nunca morei, a cidade que minha mãe, meus avós e meus tios me ensinaram a conhecer através das suas lembranças e nostalgias, porque toda minha tribo familiar, como costumam fazer os arequipenses, sempre levou consigo para a Cidade Branca em sua andarilha existência. (...) É o Colégio San Miguel e o Teatro Variedades, onde pela primeira vez vi encenada uma obrinha escrita por mim. É a esquina de Diego Ferré e Colón, no bairro de Miraflores, em Lima, - o chamávamos de o Bairro Alegre, onde troquei as calças curtas pelas compridas, fumei meu primeiro cigarro, aprendi a dançar, a namorar e a fazer declarações de amor às moças. É a empoeirada e arrepiante redação do jornal La Crónica no qual, nos meus 16 anos, fiz minhas primeiras armas como jornalista, ofício que ocupou quase toda a minha vida e me fez, como os livros, viver mais, conhecer melhor o mundo e frequentar pessoas de todas as partes e de todos os tipos, pessoas excelentes, boas, más e execráveis. É o Colégio Militar Leoncio Prado, onde aprendi que o Peru não era o pequeno reduto de classe média em que eu havia vivido até então confinado e protegido, mas um país grande, antigo, exasperado, desigual e sacudido por todo tipo de tormentas sociais. São as células clandestinas de Cahuide nas quais com um punhado da Universidade de San Marcos preparávamos a revolução mundial. E o Peru são os meus amigos e as minhas amigas do Movimento Libertad, com os quais por três anos, entre bombas, apagões e assassinatos do terrorismo, trabalhamos em defesa da democracia e da cultura da liberdade.O Peru é Patrícia, a prima de narizinho arrebitado e caráter indomável com a qual tive a ventura de me casar há 45 anos, e que ainda suporta as minhas manias, neuroses e meus chiliques que me ajudam a escrever. Sem ela, minha vida teria se dissolvido há muito tempo em um turbilhão caótico, e não haveriam nascido Álvaro, Gonzalo e Morgana, nem os seis netos que nos prolongam e alegram a existência. Ela faz tudo e faz tudo bem. Resolve os problemas, administra a economia, põe ordem no caos, mantém os limites para os jornalistas e intrusos, defende meu tempo dos compromissos e das viagens, faz e desfaz as malas, e é tão generosa que até quando acha que está me desafiando, faz o melhor dos elogios. "Mario, você só serve é para escrever." / TRADUÇÃO DE DAMIAN KRAUS E ANTONIO ALBERTO DIAS CASTROLembranças de uma trajetória SOBRE A INFLUÊNCIA DE AUTORES COMO FLAUBERT"Não era fácil escrever. Ao se transformarem em palavras, os projetos passeavam pelo papel e as ideias e imagens morriam. Mas ali estavam os mestres para que eu aprendesse com eles e seguisse seu exemplo."SOBRE O PERÍODO EM QUE VIVEU NA FRANÇA"A verdade é que devo à França,à cultura francesa, lições inesquecíveis, como a de que a literatura é tanto vocação quanto disciplina, um trabalho e uma perseverança. Mas talvez o que mais agradeço à França seja a descoberta da América Latina. Ali descobri que o Peru fazia parte de uma vasta comunidade irmanada pela história, geografia, problemática social."SOBRE A RELAÇÃO COM SUA TERRA NATAL"Eu levo o Peru nas minhas entranhas, porque nele nasci, cresci, me formei e vivi aquelas experiências da infância e da juventude que modelaram minha personalidade e que forjaram minha vocação; e porque lá amei, odiei, gozei, sofri e sonhei. O que nele acontece me afeta mais e me comove e irrita mais do que o que acontece em outros lugares." SOBRE A UNIVERSALIDADE DA LITERATURA"Sem as ficções seríamos menos conscientes da importância da liberdade para que a vida seja suportável. Elas criam pontes entre as pessoas, nos unem sobre as barreiras das línguas, crenças, usos, costumes e preconceitos que nos separam. Quando a grande baleia branca sepulta o capitão Ahab no mar, o coração dos leitores se oprime do mesmo modo em Tóquio, Lima ou Tombuctu."

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