Referência de Elena Ferrante e censurada pelo fascismo italiano, Alba de Céspedes é redescoberta


‘Caderno Proibido’ é um romance astutamente subversivo de uma escritora que já foi proibida

Por Roxana Robinson

THE WASHINGTON POST - “Errei ao comprar este caderno, errei muito”, declara Valeria Cossati no início do brilhante romance de Alba de Céspedes, Caderno Proibido, de 1952. A voz prende nossa atenção de imediato: forte, clara e moralmente engajada. Céspedes nasceu em Roma no ano de 1911, filha de mãe italiana e diplomata cubano. O engajamento moral era coisa de família: seu avô paterno liderara a revolução de Cuba contra a Espanha. Dois dos primeiros romances de Céspedes, Nessuno Torna Indietro (1938) e La Fuga (1940), foram proibidos pelo governo italiano; a própria Céspedes foi presa por ativismo antifascista.

Mas seu romance Caderno Proibido, agora em nova tradução de Joana Angélica d’Avila Melo (na edição brasileira), não é sobre o fascismo italiano. É político em sentido mais amplo, pois examina uma forma de repressão que as mulheres reconhecem como global: a repressão de seus pensamentos. O livro é escrito como um diário, aquela forma paradoxal que oferece tanto privacidade quanto exposição. Privacidade produz franqueza, e a diarista pode dizer coisas no papel que nunca diria em voz alta. Mas a própria transcrição é comunicação, cria um texto que pode ser lido por qualquer pessoa.

Ilustração sobre a obra de Alba de Céspedes Foto: Astra Publishing House/Youtube/Reprodução
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Valeria, a personagem principal, quer colocar seus pensamentos no papel – em si um ato de subversão. Pensamentos escritos se fazem reais. O ato de relatar cria distância entre a pessoa que escreve e a coisa observada: a diarista fala tanto sobre os que estão ao seu redor quanto sobre si mesma. O resultado é uma construção em camadas de consciência, reflexão e compreensão.

Valeria comprou o caderno impulsivamente – num domingo, quando a venda era ilegal. Ela o escondeu debaixo do casaco. Essa transação ilícita, em que a duplicidade é empregada a serviço da franqueza, é o fundamento de sua empreitada: contar sua história.

Valeria tem 43 anos, é casada e feliz com Michele. Seus filhos, Riccardo e Mirella, são estudantes universitários que moram em casa. A Itália do pós-guerra é pobre, mas Michele tem um bom emprego no banco, e Valeria, incomum para sua geração, também tem um bom emprego de escritório. Ela ainda cuida da casa – cozinhando, limpando e fazendo compras.

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A privacidade permite que cada um pense por si mesmo, mas por duas semanas Valeria não ousa escrever, porque nunca está sozinha

A privacidade permite que cada um pense por si mesmo, mas por duas semanas Valeria não ousa escrever, porque nunca está sozinha. Por fim, ela compra três ingressos para uma partida de futebol, fingindo que são do chefe, e manda a família assistir ao jogo. Ao vê-los partir, ela percebe o que começou: “Eles já estavam distantes e me pareceu que corriam para uma armadilha perigosa que eu havia preparado, e não para um inócuo jogo de futebol”.

Valeria quer esconder o caderno, mas o apartamento da família é pequeno, e cada armário é espaço comum. Quando ela menciona que os filhos têm gavetas trancadas e que ela também quer uma, Michele pergunta, sorrindo: “Para quê?” Valéria responde: “Não sei, para guardar meus papéis pessoais... talvez um diário, como Mirella”.

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Todos riem da ideia. Riccardo segura o queixo de Valeria e pergunta “com ternura: ‘Me diga, o que você quer escrever no seu diário?’” Valeria começa a chorar. Ela não consegue resistir à família, que usará de escárnio, ternura e desprezo para negar a ideia de sua existência como uma pessoa autônoma, um intelecto. E aqui está a questão central do livro: deve-se permitir que uma mulher leve seus próprios pensamentos a sério? Ou a ideia em si já é transgressora, proibida?

A escritora modernista britânica Virginia Woolf  Foto: Acervo Estadão

Esta questão não é nova: Virginia Woolf declarou a famosa necessidade de um teto todo seu; o mesmo fizeram Alice Munro em The Office e Doris Lessing, em To Room Nineteen. A necessidade de uma mulher ter um lugar seguro – uma sala ou um caderno – onde pensar é fundamental para as escritoras feministas. Céspedes explora o assunto dentro de um novo cenário.

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Valeria está imersa em questões familiares. Mirella tem 20 anos, estuda direito com afinco, mas tem um namorado mais velho e desconhecido. Valeria, com medo de que ela fique moralmente comprometida, tenta terminar o relacionamento. Mas Mirella é fria e indiferente, opondo-se à mãe de uma forma que Valeria nunca poderia imaginar na sua idade. Riccardo é um estudante medíocre e tem uma namorada banal; ele quer emigrar para Buenos Aires. Nenhum dos filhos parece ter consciência do esforço que seus pais fizeram para alcançar sua tênue estabilidade financeira. Michele é afetuosa com Valeria, mas distante, entediado com o trabalho e animado com a possibilidade de uma nova carreira. Eles raramente se falam. Valeria se sente sufocada e encontra tranquilidade apenas no seu escritório. Vai lá em certo sábado, quando está fechado, e inesperadamente encontra o chefe. Os dois iniciam um relacionamento bem diferente daquele que ela tem com Michele.

As tensões dentro da família se desenrolam em vinhetas evocativas. Riccardo pede emprestado o smoking do pai para uma festa; eles não podem comprar um novo. Mas é gordo demais para usá-lo e, humilhado, zomba do pai. “‘Papai tem ombros estreitos’, disse ele rudemente”. Valeria almoça com velhas amigas de escola que são ricas e se gabam de enganar os maridos. Valeria planeja um elaborado chá de aniversário para Mirella, que rejeita a oferta. Cada um desses incidentes é apresentado em detalhes vívidos: os filhos adultos, o apartamento apertado, o conflito entre as gerações. Os pais lutaram durante a guerra, os filhos mal se lembram dela. Valeria visita a mãe, que fica sentada em silêncio crítico, fazendo toalhinhas, porta-copos e jogos americanos de crochê. Valeria não usa essas coisas – a geração dela também não – mas a mãe nunca deixa de fazer, nem de julgar.

A família domina este romance carregado e poderoso, que narra a assustadora potência do coletivo sobre o individual. Valeria, que vai aprendendo mais sobre si mesma e sua família a cada passagem, não consegue superar o rolo compressor que oprime sua vida. A voz de Céspedes, falecida em 1997, lembra as de Natalia Ginzburg e Elena Ferrante, outras escritoras italianas que criaram narrativas eletrizantes a partir do mundano e do doméstico. Essas mulheres apresentam dramas que acontecem na cozinha, no quarto, na viagem de carro, nas refeições, a cada conversa ouvida do outro lado da porta. A família é o cadinho. É onde começam nosso maior amor e confiança – e também nosso maior medo e raiva. No livro de Céspedes, a família é insuperável. Sua história é aquela da qual ninguém pode desviar o olhar, contada em palavras que ficam ecoando na mente. A questão do direito de uma mulher ter seus próprios pensamentos é respondida com resolução arrebatadora.

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Roxana Robinson é autora de dez livros – seis romances, três coleções de contos e uma biografia de Georgia O’Keeffe. Seu livro mais recente é Dawson’s Fall: A Novel. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Alba de Céspedes. Traduzido do italiano por Joana Angélica d’Avila Melo.

Companhia das Letras - 288 páginas - R$ 79,90 ou R$ 39,90 (E-book)

THE WASHINGTON POST - “Errei ao comprar este caderno, errei muito”, declara Valeria Cossati no início do brilhante romance de Alba de Céspedes, Caderno Proibido, de 1952. A voz prende nossa atenção de imediato: forte, clara e moralmente engajada. Céspedes nasceu em Roma no ano de 1911, filha de mãe italiana e diplomata cubano. O engajamento moral era coisa de família: seu avô paterno liderara a revolução de Cuba contra a Espanha. Dois dos primeiros romances de Céspedes, Nessuno Torna Indietro (1938) e La Fuga (1940), foram proibidos pelo governo italiano; a própria Céspedes foi presa por ativismo antifascista.

Mas seu romance Caderno Proibido, agora em nova tradução de Joana Angélica d’Avila Melo (na edição brasileira), não é sobre o fascismo italiano. É político em sentido mais amplo, pois examina uma forma de repressão que as mulheres reconhecem como global: a repressão de seus pensamentos. O livro é escrito como um diário, aquela forma paradoxal que oferece tanto privacidade quanto exposição. Privacidade produz franqueza, e a diarista pode dizer coisas no papel que nunca diria em voz alta. Mas a própria transcrição é comunicação, cria um texto que pode ser lido por qualquer pessoa.

Ilustração sobre a obra de Alba de Céspedes Foto: Astra Publishing House/Youtube/Reprodução

Valeria, a personagem principal, quer colocar seus pensamentos no papel – em si um ato de subversão. Pensamentos escritos se fazem reais. O ato de relatar cria distância entre a pessoa que escreve e a coisa observada: a diarista fala tanto sobre os que estão ao seu redor quanto sobre si mesma. O resultado é uma construção em camadas de consciência, reflexão e compreensão.

Valeria comprou o caderno impulsivamente – num domingo, quando a venda era ilegal. Ela o escondeu debaixo do casaco. Essa transação ilícita, em que a duplicidade é empregada a serviço da franqueza, é o fundamento de sua empreitada: contar sua história.

Valeria tem 43 anos, é casada e feliz com Michele. Seus filhos, Riccardo e Mirella, são estudantes universitários que moram em casa. A Itália do pós-guerra é pobre, mas Michele tem um bom emprego no banco, e Valeria, incomum para sua geração, também tem um bom emprego de escritório. Ela ainda cuida da casa – cozinhando, limpando e fazendo compras.

A privacidade permite que cada um pense por si mesmo, mas por duas semanas Valeria não ousa escrever, porque nunca está sozinha

A privacidade permite que cada um pense por si mesmo, mas por duas semanas Valeria não ousa escrever, porque nunca está sozinha. Por fim, ela compra três ingressos para uma partida de futebol, fingindo que são do chefe, e manda a família assistir ao jogo. Ao vê-los partir, ela percebe o que começou: “Eles já estavam distantes e me pareceu que corriam para uma armadilha perigosa que eu havia preparado, e não para um inócuo jogo de futebol”.

Valeria quer esconder o caderno, mas o apartamento da família é pequeno, e cada armário é espaço comum. Quando ela menciona que os filhos têm gavetas trancadas e que ela também quer uma, Michele pergunta, sorrindo: “Para quê?” Valéria responde: “Não sei, para guardar meus papéis pessoais... talvez um diário, como Mirella”.

Todos riem da ideia. Riccardo segura o queixo de Valeria e pergunta “com ternura: ‘Me diga, o que você quer escrever no seu diário?’” Valeria começa a chorar. Ela não consegue resistir à família, que usará de escárnio, ternura e desprezo para negar a ideia de sua existência como uma pessoa autônoma, um intelecto. E aqui está a questão central do livro: deve-se permitir que uma mulher leve seus próprios pensamentos a sério? Ou a ideia em si já é transgressora, proibida?

A escritora modernista britânica Virginia Woolf  Foto: Acervo Estadão

Esta questão não é nova: Virginia Woolf declarou a famosa necessidade de um teto todo seu; o mesmo fizeram Alice Munro em The Office e Doris Lessing, em To Room Nineteen. A necessidade de uma mulher ter um lugar seguro – uma sala ou um caderno – onde pensar é fundamental para as escritoras feministas. Céspedes explora o assunto dentro de um novo cenário.

Valeria está imersa em questões familiares. Mirella tem 20 anos, estuda direito com afinco, mas tem um namorado mais velho e desconhecido. Valeria, com medo de que ela fique moralmente comprometida, tenta terminar o relacionamento. Mas Mirella é fria e indiferente, opondo-se à mãe de uma forma que Valeria nunca poderia imaginar na sua idade. Riccardo é um estudante medíocre e tem uma namorada banal; ele quer emigrar para Buenos Aires. Nenhum dos filhos parece ter consciência do esforço que seus pais fizeram para alcançar sua tênue estabilidade financeira. Michele é afetuosa com Valeria, mas distante, entediado com o trabalho e animado com a possibilidade de uma nova carreira. Eles raramente se falam. Valeria se sente sufocada e encontra tranquilidade apenas no seu escritório. Vai lá em certo sábado, quando está fechado, e inesperadamente encontra o chefe. Os dois iniciam um relacionamento bem diferente daquele que ela tem com Michele.

As tensões dentro da família se desenrolam em vinhetas evocativas. Riccardo pede emprestado o smoking do pai para uma festa; eles não podem comprar um novo. Mas é gordo demais para usá-lo e, humilhado, zomba do pai. “‘Papai tem ombros estreitos’, disse ele rudemente”. Valeria almoça com velhas amigas de escola que são ricas e se gabam de enganar os maridos. Valeria planeja um elaborado chá de aniversário para Mirella, que rejeita a oferta. Cada um desses incidentes é apresentado em detalhes vívidos: os filhos adultos, o apartamento apertado, o conflito entre as gerações. Os pais lutaram durante a guerra, os filhos mal se lembram dela. Valeria visita a mãe, que fica sentada em silêncio crítico, fazendo toalhinhas, porta-copos e jogos americanos de crochê. Valeria não usa essas coisas – a geração dela também não – mas a mãe nunca deixa de fazer, nem de julgar.

A família domina este romance carregado e poderoso, que narra a assustadora potência do coletivo sobre o individual. Valeria, que vai aprendendo mais sobre si mesma e sua família a cada passagem, não consegue superar o rolo compressor que oprime sua vida. A voz de Céspedes, falecida em 1997, lembra as de Natalia Ginzburg e Elena Ferrante, outras escritoras italianas que criaram narrativas eletrizantes a partir do mundano e do doméstico. Essas mulheres apresentam dramas que acontecem na cozinha, no quarto, na viagem de carro, nas refeições, a cada conversa ouvida do outro lado da porta. A família é o cadinho. É onde começam nosso maior amor e confiança – e também nosso maior medo e raiva. No livro de Céspedes, a família é insuperável. Sua história é aquela da qual ninguém pode desviar o olhar, contada em palavras que ficam ecoando na mente. A questão do direito de uma mulher ter seus próprios pensamentos é respondida com resolução arrebatadora.

Roxana Robinson é autora de dez livros – seis romances, três coleções de contos e uma biografia de Georgia O’Keeffe. Seu livro mais recente é Dawson’s Fall: A Novel. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Alba de Céspedes. Traduzido do italiano por Joana Angélica d’Avila Melo.

Companhia das Letras - 288 páginas - R$ 79,90 ou R$ 39,90 (E-book)

THE WASHINGTON POST - “Errei ao comprar este caderno, errei muito”, declara Valeria Cossati no início do brilhante romance de Alba de Céspedes, Caderno Proibido, de 1952. A voz prende nossa atenção de imediato: forte, clara e moralmente engajada. Céspedes nasceu em Roma no ano de 1911, filha de mãe italiana e diplomata cubano. O engajamento moral era coisa de família: seu avô paterno liderara a revolução de Cuba contra a Espanha. Dois dos primeiros romances de Céspedes, Nessuno Torna Indietro (1938) e La Fuga (1940), foram proibidos pelo governo italiano; a própria Céspedes foi presa por ativismo antifascista.

Mas seu romance Caderno Proibido, agora em nova tradução de Joana Angélica d’Avila Melo (na edição brasileira), não é sobre o fascismo italiano. É político em sentido mais amplo, pois examina uma forma de repressão que as mulheres reconhecem como global: a repressão de seus pensamentos. O livro é escrito como um diário, aquela forma paradoxal que oferece tanto privacidade quanto exposição. Privacidade produz franqueza, e a diarista pode dizer coisas no papel que nunca diria em voz alta. Mas a própria transcrição é comunicação, cria um texto que pode ser lido por qualquer pessoa.

Ilustração sobre a obra de Alba de Céspedes Foto: Astra Publishing House/Youtube/Reprodução

Valeria, a personagem principal, quer colocar seus pensamentos no papel – em si um ato de subversão. Pensamentos escritos se fazem reais. O ato de relatar cria distância entre a pessoa que escreve e a coisa observada: a diarista fala tanto sobre os que estão ao seu redor quanto sobre si mesma. O resultado é uma construção em camadas de consciência, reflexão e compreensão.

Valeria comprou o caderno impulsivamente – num domingo, quando a venda era ilegal. Ela o escondeu debaixo do casaco. Essa transação ilícita, em que a duplicidade é empregada a serviço da franqueza, é o fundamento de sua empreitada: contar sua história.

Valeria tem 43 anos, é casada e feliz com Michele. Seus filhos, Riccardo e Mirella, são estudantes universitários que moram em casa. A Itália do pós-guerra é pobre, mas Michele tem um bom emprego no banco, e Valeria, incomum para sua geração, também tem um bom emprego de escritório. Ela ainda cuida da casa – cozinhando, limpando e fazendo compras.

A privacidade permite que cada um pense por si mesmo, mas por duas semanas Valeria não ousa escrever, porque nunca está sozinha

A privacidade permite que cada um pense por si mesmo, mas por duas semanas Valeria não ousa escrever, porque nunca está sozinha. Por fim, ela compra três ingressos para uma partida de futebol, fingindo que são do chefe, e manda a família assistir ao jogo. Ao vê-los partir, ela percebe o que começou: “Eles já estavam distantes e me pareceu que corriam para uma armadilha perigosa que eu havia preparado, e não para um inócuo jogo de futebol”.

Valeria quer esconder o caderno, mas o apartamento da família é pequeno, e cada armário é espaço comum. Quando ela menciona que os filhos têm gavetas trancadas e que ela também quer uma, Michele pergunta, sorrindo: “Para quê?” Valéria responde: “Não sei, para guardar meus papéis pessoais... talvez um diário, como Mirella”.

Todos riem da ideia. Riccardo segura o queixo de Valeria e pergunta “com ternura: ‘Me diga, o que você quer escrever no seu diário?’” Valeria começa a chorar. Ela não consegue resistir à família, que usará de escárnio, ternura e desprezo para negar a ideia de sua existência como uma pessoa autônoma, um intelecto. E aqui está a questão central do livro: deve-se permitir que uma mulher leve seus próprios pensamentos a sério? Ou a ideia em si já é transgressora, proibida?

A escritora modernista britânica Virginia Woolf  Foto: Acervo Estadão

Esta questão não é nova: Virginia Woolf declarou a famosa necessidade de um teto todo seu; o mesmo fizeram Alice Munro em The Office e Doris Lessing, em To Room Nineteen. A necessidade de uma mulher ter um lugar seguro – uma sala ou um caderno – onde pensar é fundamental para as escritoras feministas. Céspedes explora o assunto dentro de um novo cenário.

Valeria está imersa em questões familiares. Mirella tem 20 anos, estuda direito com afinco, mas tem um namorado mais velho e desconhecido. Valeria, com medo de que ela fique moralmente comprometida, tenta terminar o relacionamento. Mas Mirella é fria e indiferente, opondo-se à mãe de uma forma que Valeria nunca poderia imaginar na sua idade. Riccardo é um estudante medíocre e tem uma namorada banal; ele quer emigrar para Buenos Aires. Nenhum dos filhos parece ter consciência do esforço que seus pais fizeram para alcançar sua tênue estabilidade financeira. Michele é afetuosa com Valeria, mas distante, entediado com o trabalho e animado com a possibilidade de uma nova carreira. Eles raramente se falam. Valeria se sente sufocada e encontra tranquilidade apenas no seu escritório. Vai lá em certo sábado, quando está fechado, e inesperadamente encontra o chefe. Os dois iniciam um relacionamento bem diferente daquele que ela tem com Michele.

As tensões dentro da família se desenrolam em vinhetas evocativas. Riccardo pede emprestado o smoking do pai para uma festa; eles não podem comprar um novo. Mas é gordo demais para usá-lo e, humilhado, zomba do pai. “‘Papai tem ombros estreitos’, disse ele rudemente”. Valeria almoça com velhas amigas de escola que são ricas e se gabam de enganar os maridos. Valeria planeja um elaborado chá de aniversário para Mirella, que rejeita a oferta. Cada um desses incidentes é apresentado em detalhes vívidos: os filhos adultos, o apartamento apertado, o conflito entre as gerações. Os pais lutaram durante a guerra, os filhos mal se lembram dela. Valeria visita a mãe, que fica sentada em silêncio crítico, fazendo toalhinhas, porta-copos e jogos americanos de crochê. Valeria não usa essas coisas – a geração dela também não – mas a mãe nunca deixa de fazer, nem de julgar.

A família domina este romance carregado e poderoso, que narra a assustadora potência do coletivo sobre o individual. Valeria, que vai aprendendo mais sobre si mesma e sua família a cada passagem, não consegue superar o rolo compressor que oprime sua vida. A voz de Céspedes, falecida em 1997, lembra as de Natalia Ginzburg e Elena Ferrante, outras escritoras italianas que criaram narrativas eletrizantes a partir do mundano e do doméstico. Essas mulheres apresentam dramas que acontecem na cozinha, no quarto, na viagem de carro, nas refeições, a cada conversa ouvida do outro lado da porta. A família é o cadinho. É onde começam nosso maior amor e confiança – e também nosso maior medo e raiva. No livro de Céspedes, a família é insuperável. Sua história é aquela da qual ninguém pode desviar o olhar, contada em palavras que ficam ecoando na mente. A questão do direito de uma mulher ter seus próprios pensamentos é respondida com resolução arrebatadora.

Roxana Robinson é autora de dez livros – seis romances, três coleções de contos e uma biografia de Georgia O’Keeffe. Seu livro mais recente é Dawson’s Fall: A Novel. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Alba de Céspedes. Traduzido do italiano por Joana Angélica d’Avila Melo.

Companhia das Letras - 288 páginas - R$ 79,90 ou R$ 39,90 (E-book)

THE WASHINGTON POST - “Errei ao comprar este caderno, errei muito”, declara Valeria Cossati no início do brilhante romance de Alba de Céspedes, Caderno Proibido, de 1952. A voz prende nossa atenção de imediato: forte, clara e moralmente engajada. Céspedes nasceu em Roma no ano de 1911, filha de mãe italiana e diplomata cubano. O engajamento moral era coisa de família: seu avô paterno liderara a revolução de Cuba contra a Espanha. Dois dos primeiros romances de Céspedes, Nessuno Torna Indietro (1938) e La Fuga (1940), foram proibidos pelo governo italiano; a própria Céspedes foi presa por ativismo antifascista.

Mas seu romance Caderno Proibido, agora em nova tradução de Joana Angélica d’Avila Melo (na edição brasileira), não é sobre o fascismo italiano. É político em sentido mais amplo, pois examina uma forma de repressão que as mulheres reconhecem como global: a repressão de seus pensamentos. O livro é escrito como um diário, aquela forma paradoxal que oferece tanto privacidade quanto exposição. Privacidade produz franqueza, e a diarista pode dizer coisas no papel que nunca diria em voz alta. Mas a própria transcrição é comunicação, cria um texto que pode ser lido por qualquer pessoa.

Ilustração sobre a obra de Alba de Céspedes Foto: Astra Publishing House/Youtube/Reprodução

Valeria, a personagem principal, quer colocar seus pensamentos no papel – em si um ato de subversão. Pensamentos escritos se fazem reais. O ato de relatar cria distância entre a pessoa que escreve e a coisa observada: a diarista fala tanto sobre os que estão ao seu redor quanto sobre si mesma. O resultado é uma construção em camadas de consciência, reflexão e compreensão.

Valeria comprou o caderno impulsivamente – num domingo, quando a venda era ilegal. Ela o escondeu debaixo do casaco. Essa transação ilícita, em que a duplicidade é empregada a serviço da franqueza, é o fundamento de sua empreitada: contar sua história.

Valeria tem 43 anos, é casada e feliz com Michele. Seus filhos, Riccardo e Mirella, são estudantes universitários que moram em casa. A Itália do pós-guerra é pobre, mas Michele tem um bom emprego no banco, e Valeria, incomum para sua geração, também tem um bom emprego de escritório. Ela ainda cuida da casa – cozinhando, limpando e fazendo compras.

A privacidade permite que cada um pense por si mesmo, mas por duas semanas Valeria não ousa escrever, porque nunca está sozinha

A privacidade permite que cada um pense por si mesmo, mas por duas semanas Valeria não ousa escrever, porque nunca está sozinha. Por fim, ela compra três ingressos para uma partida de futebol, fingindo que são do chefe, e manda a família assistir ao jogo. Ao vê-los partir, ela percebe o que começou: “Eles já estavam distantes e me pareceu que corriam para uma armadilha perigosa que eu havia preparado, e não para um inócuo jogo de futebol”.

Valeria quer esconder o caderno, mas o apartamento da família é pequeno, e cada armário é espaço comum. Quando ela menciona que os filhos têm gavetas trancadas e que ela também quer uma, Michele pergunta, sorrindo: “Para quê?” Valéria responde: “Não sei, para guardar meus papéis pessoais... talvez um diário, como Mirella”.

Todos riem da ideia. Riccardo segura o queixo de Valeria e pergunta “com ternura: ‘Me diga, o que você quer escrever no seu diário?’” Valeria começa a chorar. Ela não consegue resistir à família, que usará de escárnio, ternura e desprezo para negar a ideia de sua existência como uma pessoa autônoma, um intelecto. E aqui está a questão central do livro: deve-se permitir que uma mulher leve seus próprios pensamentos a sério? Ou a ideia em si já é transgressora, proibida?

A escritora modernista britânica Virginia Woolf  Foto: Acervo Estadão

Esta questão não é nova: Virginia Woolf declarou a famosa necessidade de um teto todo seu; o mesmo fizeram Alice Munro em The Office e Doris Lessing, em To Room Nineteen. A necessidade de uma mulher ter um lugar seguro – uma sala ou um caderno – onde pensar é fundamental para as escritoras feministas. Céspedes explora o assunto dentro de um novo cenário.

Valeria está imersa em questões familiares. Mirella tem 20 anos, estuda direito com afinco, mas tem um namorado mais velho e desconhecido. Valeria, com medo de que ela fique moralmente comprometida, tenta terminar o relacionamento. Mas Mirella é fria e indiferente, opondo-se à mãe de uma forma que Valeria nunca poderia imaginar na sua idade. Riccardo é um estudante medíocre e tem uma namorada banal; ele quer emigrar para Buenos Aires. Nenhum dos filhos parece ter consciência do esforço que seus pais fizeram para alcançar sua tênue estabilidade financeira. Michele é afetuosa com Valeria, mas distante, entediado com o trabalho e animado com a possibilidade de uma nova carreira. Eles raramente se falam. Valeria se sente sufocada e encontra tranquilidade apenas no seu escritório. Vai lá em certo sábado, quando está fechado, e inesperadamente encontra o chefe. Os dois iniciam um relacionamento bem diferente daquele que ela tem com Michele.

As tensões dentro da família se desenrolam em vinhetas evocativas. Riccardo pede emprestado o smoking do pai para uma festa; eles não podem comprar um novo. Mas é gordo demais para usá-lo e, humilhado, zomba do pai. “‘Papai tem ombros estreitos’, disse ele rudemente”. Valeria almoça com velhas amigas de escola que são ricas e se gabam de enganar os maridos. Valeria planeja um elaborado chá de aniversário para Mirella, que rejeita a oferta. Cada um desses incidentes é apresentado em detalhes vívidos: os filhos adultos, o apartamento apertado, o conflito entre as gerações. Os pais lutaram durante a guerra, os filhos mal se lembram dela. Valeria visita a mãe, que fica sentada em silêncio crítico, fazendo toalhinhas, porta-copos e jogos americanos de crochê. Valeria não usa essas coisas – a geração dela também não – mas a mãe nunca deixa de fazer, nem de julgar.

A família domina este romance carregado e poderoso, que narra a assustadora potência do coletivo sobre o individual. Valeria, que vai aprendendo mais sobre si mesma e sua família a cada passagem, não consegue superar o rolo compressor que oprime sua vida. A voz de Céspedes, falecida em 1997, lembra as de Natalia Ginzburg e Elena Ferrante, outras escritoras italianas que criaram narrativas eletrizantes a partir do mundano e do doméstico. Essas mulheres apresentam dramas que acontecem na cozinha, no quarto, na viagem de carro, nas refeições, a cada conversa ouvida do outro lado da porta. A família é o cadinho. É onde começam nosso maior amor e confiança – e também nosso maior medo e raiva. No livro de Céspedes, a família é insuperável. Sua história é aquela da qual ninguém pode desviar o olhar, contada em palavras que ficam ecoando na mente. A questão do direito de uma mulher ter seus próprios pensamentos é respondida com resolução arrebatadora.

Roxana Robinson é autora de dez livros – seis romances, três coleções de contos e uma biografia de Georgia O’Keeffe. Seu livro mais recente é Dawson’s Fall: A Novel. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Alba de Céspedes. Traduzido do italiano por Joana Angélica d’Avila Melo.

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