Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Sobre urnas e votos


No mundo civilizado, primeiro se arruma o país. No Brasil, primeiro se arrumam os vencedores

Por Roberto DaMatta

Uma poderosa reflexão sobre as urnas como um instrumento de escolha de governantes foi feita por Machado de Assis no conto A Sereníssima República, publicado em 1882. É Richard Moneygrand, meu velho mentor harvardiano, indignado com a tentativa de ilegitimar a urna eletrônica feita por Bolsonaro, quem fala num e-mail.

As urnas eltrônicas têm sido usadas nas eleições doBrasil desde a década de 90. Foto: Antonio Augusto/TSE

Você analisou esse conto, diz meu amigo, que tem um pouco de Kipling e antecede Kafka, porque o seu centro é a comunicação de um erudito Cônego com aranhas. Tendo aprendido o idioma das aranhas, o pesquisador - a pedido delas - sugere a adoção do regime republicano no qual o poder passa por meio de urnas e votos. É obvio, portanto, que a urna e o voto sejam envoltos numa atmosfera peculiar, porque são substituídos da velha sucessão por sangue, feita nas casas reais. 

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Mas, aponta Moneygrand, no Brasil, o sistema republicano enfrenta os costumes de uma sociedade aristocrática. Vocês ficam como as aranhas de Machado, acusando as urnas, em vez de enxergar os vossos reais problemas. 

O Brasil não muda como sociedade, diz, com exagero, o velho mestre, sem abandonar sua preocupação com o conspirador e arrogante “trumpismo”. O Brasil não muda e não é porque há uma “direita muito forte ou resiliente”, como se diz. Não anda, porque o mesmo modelo de governar foi também adotado pela esquerda. Em ambos os casos, há um secular legalismo que garante privilégios: a lei privada protege cargos e segmentos.

A diferença dos discursos impressionava, mas as práticas (que distorcem as leis em favor de pessoas) são idênticas. A direita usava os elos de família ligada à velha aristocracia; a esquerda entronizou os partidários e aristocratizou o seu líder. A direita aristocrática era dona absoluta do Brasil, a esquerda recuperou o tempo perdido aristocratizando-se no poder e tentando o mesmo absolutismo com o coletivismo populista. 

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Não se pode esquecer, reitera Moneygrand, que tanto um lado como outro é hierarquizado. Têm seus intocáveis e têm suas castas. “Ambos criaram suas fidalguias que imobilizam o todo e impedem a modernização igualitária do sistema, que segue miseravelmente injusto. Ademais, o sonho de todo brasileiro mais ou menos oportunista é usar a malandragem a qual, conforme você disse faz tempo no seu Carnavais, Malandros e Heróis, é um modo estabelecido de navegação social. O alvo da malandragem é o costumeiro ‘arrumar-se’ ou ‘arranjar-se’, uma figura que consiste em enganar os ingênuos.” 

No mundo civilizado, primeiro se arruma o país; no Brasil, primeiro nós, os vencedores, nos arrumamos. Os outros que se danem...

Uma poderosa reflexão sobre as urnas como um instrumento de escolha de governantes foi feita por Machado de Assis no conto A Sereníssima República, publicado em 1882. É Richard Moneygrand, meu velho mentor harvardiano, indignado com a tentativa de ilegitimar a urna eletrônica feita por Bolsonaro, quem fala num e-mail.

As urnas eltrônicas têm sido usadas nas eleições doBrasil desde a década de 90. Foto: Antonio Augusto/TSE

Você analisou esse conto, diz meu amigo, que tem um pouco de Kipling e antecede Kafka, porque o seu centro é a comunicação de um erudito Cônego com aranhas. Tendo aprendido o idioma das aranhas, o pesquisador - a pedido delas - sugere a adoção do regime republicano no qual o poder passa por meio de urnas e votos. É obvio, portanto, que a urna e o voto sejam envoltos numa atmosfera peculiar, porque são substituídos da velha sucessão por sangue, feita nas casas reais. 

Mas, aponta Moneygrand, no Brasil, o sistema republicano enfrenta os costumes de uma sociedade aristocrática. Vocês ficam como as aranhas de Machado, acusando as urnas, em vez de enxergar os vossos reais problemas. 

O Brasil não muda como sociedade, diz, com exagero, o velho mestre, sem abandonar sua preocupação com o conspirador e arrogante “trumpismo”. O Brasil não muda e não é porque há uma “direita muito forte ou resiliente”, como se diz. Não anda, porque o mesmo modelo de governar foi também adotado pela esquerda. Em ambos os casos, há um secular legalismo que garante privilégios: a lei privada protege cargos e segmentos.

A diferença dos discursos impressionava, mas as práticas (que distorcem as leis em favor de pessoas) são idênticas. A direita usava os elos de família ligada à velha aristocracia; a esquerda entronizou os partidários e aristocratizou o seu líder. A direita aristocrática era dona absoluta do Brasil, a esquerda recuperou o tempo perdido aristocratizando-se no poder e tentando o mesmo absolutismo com o coletivismo populista. 

Não se pode esquecer, reitera Moneygrand, que tanto um lado como outro é hierarquizado. Têm seus intocáveis e têm suas castas. “Ambos criaram suas fidalguias que imobilizam o todo e impedem a modernização igualitária do sistema, que segue miseravelmente injusto. Ademais, o sonho de todo brasileiro mais ou menos oportunista é usar a malandragem a qual, conforme você disse faz tempo no seu Carnavais, Malandros e Heróis, é um modo estabelecido de navegação social. O alvo da malandragem é o costumeiro ‘arrumar-se’ ou ‘arranjar-se’, uma figura que consiste em enganar os ingênuos.” 

No mundo civilizado, primeiro se arruma o país; no Brasil, primeiro nós, os vencedores, nos arrumamos. Os outros que se danem...

Uma poderosa reflexão sobre as urnas como um instrumento de escolha de governantes foi feita por Machado de Assis no conto A Sereníssima República, publicado em 1882. É Richard Moneygrand, meu velho mentor harvardiano, indignado com a tentativa de ilegitimar a urna eletrônica feita por Bolsonaro, quem fala num e-mail.

As urnas eltrônicas têm sido usadas nas eleições doBrasil desde a década de 90. Foto: Antonio Augusto/TSE

Você analisou esse conto, diz meu amigo, que tem um pouco de Kipling e antecede Kafka, porque o seu centro é a comunicação de um erudito Cônego com aranhas. Tendo aprendido o idioma das aranhas, o pesquisador - a pedido delas - sugere a adoção do regime republicano no qual o poder passa por meio de urnas e votos. É obvio, portanto, que a urna e o voto sejam envoltos numa atmosfera peculiar, porque são substituídos da velha sucessão por sangue, feita nas casas reais. 

Mas, aponta Moneygrand, no Brasil, o sistema republicano enfrenta os costumes de uma sociedade aristocrática. Vocês ficam como as aranhas de Machado, acusando as urnas, em vez de enxergar os vossos reais problemas. 

O Brasil não muda como sociedade, diz, com exagero, o velho mestre, sem abandonar sua preocupação com o conspirador e arrogante “trumpismo”. O Brasil não muda e não é porque há uma “direita muito forte ou resiliente”, como se diz. Não anda, porque o mesmo modelo de governar foi também adotado pela esquerda. Em ambos os casos, há um secular legalismo que garante privilégios: a lei privada protege cargos e segmentos.

A diferença dos discursos impressionava, mas as práticas (que distorcem as leis em favor de pessoas) são idênticas. A direita usava os elos de família ligada à velha aristocracia; a esquerda entronizou os partidários e aristocratizou o seu líder. A direita aristocrática era dona absoluta do Brasil, a esquerda recuperou o tempo perdido aristocratizando-se no poder e tentando o mesmo absolutismo com o coletivismo populista. 

Não se pode esquecer, reitera Moneygrand, que tanto um lado como outro é hierarquizado. Têm seus intocáveis e têm suas castas. “Ambos criaram suas fidalguias que imobilizam o todo e impedem a modernização igualitária do sistema, que segue miseravelmente injusto. Ademais, o sonho de todo brasileiro mais ou menos oportunista é usar a malandragem a qual, conforme você disse faz tempo no seu Carnavais, Malandros e Heróis, é um modo estabelecido de navegação social. O alvo da malandragem é o costumeiro ‘arrumar-se’ ou ‘arranjar-se’, uma figura que consiste em enganar os ingênuos.” 

No mundo civilizado, primeiro se arruma o país; no Brasil, primeiro nós, os vencedores, nos arrumamos. Os outros que se danem...

Uma poderosa reflexão sobre as urnas como um instrumento de escolha de governantes foi feita por Machado de Assis no conto A Sereníssima República, publicado em 1882. É Richard Moneygrand, meu velho mentor harvardiano, indignado com a tentativa de ilegitimar a urna eletrônica feita por Bolsonaro, quem fala num e-mail.

As urnas eltrônicas têm sido usadas nas eleições doBrasil desde a década de 90. Foto: Antonio Augusto/TSE

Você analisou esse conto, diz meu amigo, que tem um pouco de Kipling e antecede Kafka, porque o seu centro é a comunicação de um erudito Cônego com aranhas. Tendo aprendido o idioma das aranhas, o pesquisador - a pedido delas - sugere a adoção do regime republicano no qual o poder passa por meio de urnas e votos. É obvio, portanto, que a urna e o voto sejam envoltos numa atmosfera peculiar, porque são substituídos da velha sucessão por sangue, feita nas casas reais. 

Mas, aponta Moneygrand, no Brasil, o sistema republicano enfrenta os costumes de uma sociedade aristocrática. Vocês ficam como as aranhas de Machado, acusando as urnas, em vez de enxergar os vossos reais problemas. 

O Brasil não muda como sociedade, diz, com exagero, o velho mestre, sem abandonar sua preocupação com o conspirador e arrogante “trumpismo”. O Brasil não muda e não é porque há uma “direita muito forte ou resiliente”, como se diz. Não anda, porque o mesmo modelo de governar foi também adotado pela esquerda. Em ambos os casos, há um secular legalismo que garante privilégios: a lei privada protege cargos e segmentos.

A diferença dos discursos impressionava, mas as práticas (que distorcem as leis em favor de pessoas) são idênticas. A direita usava os elos de família ligada à velha aristocracia; a esquerda entronizou os partidários e aristocratizou o seu líder. A direita aristocrática era dona absoluta do Brasil, a esquerda recuperou o tempo perdido aristocratizando-se no poder e tentando o mesmo absolutismo com o coletivismo populista. 

Não se pode esquecer, reitera Moneygrand, que tanto um lado como outro é hierarquizado. Têm seus intocáveis e têm suas castas. “Ambos criaram suas fidalguias que imobilizam o todo e impedem a modernização igualitária do sistema, que segue miseravelmente injusto. Ademais, o sonho de todo brasileiro mais ou menos oportunista é usar a malandragem a qual, conforme você disse faz tempo no seu Carnavais, Malandros e Heróis, é um modo estabelecido de navegação social. O alvo da malandragem é o costumeiro ‘arrumar-se’ ou ‘arranjar-se’, uma figura que consiste em enganar os ingênuos.” 

No mundo civilizado, primeiro se arruma o país; no Brasil, primeiro nós, os vencedores, nos arrumamos. Os outros que se danem...

Opinião por Roberto DaMatta

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