Selado com beijo


Por Sérgio Augusto

As imagens de maior impacto da Copa não foram colhidas em nenhum dos dez gramados em que foi disputada, mas nos bastidores do Soccer Stadium, após a vitória da Espanha sobre a Holanda: o inesperado beijo de Casillas em Sara Carbonero; quase dois milhões de acessos no YouTube, quando parei de checar na quarta-feira. Melhor isso do que Nigel de Jong enfiando a chanca no peito de Xabi Alonso. O arroubo romântico de Casillas foi o arremate lógico, o happy end que a competição, em boa parte marcada por gestos de cordialidade e mesmo carinho, a começar pelos afagos de Maradona em seus pupilos, merecia. Selado com um beijo, o Mundial de 2010, que já se notabilizara como a mais visualmente rica das Copas, tornou-se também a mais cinematográfica de todas. O goleiro espanhol, em rigorosamente tudo o oposto do rubro-negro Bruno, deu um belo exemplo que até nestas bandas foi imitado. No meio da tarde de segunda-feira, um motorista de ônibus estacionou em fila dupla na movimentada avenida Visconde de Pirajá, em Ipanema, para dar um beijo na boca da motorista de outro ônibus. Só não digo que faltou Besame Mucho, de música de fundo, porque o bolero de Consuelo Velásquez há tempos nos evoca o romance de um dos casais mais abomináveis da história política brasileira. Por coincidência, durante a Copa, morreu Edith Shain, a protagonista do beijo de maior repercussão iconográfica do século passado. Era ela a jovem beijada por um marinheiro, em plena Time Square e ao alcance da câmera de Alfred Eisenstaedt, da revista Life, no festivo Dia da Vitória dos americanos sobre os japoneses na guerra do Pacífico, em 14 de agosto de 1945. O flagrante é um clássico do fotojornalismo. Shain, 26 anos na época, só se identificou como a enfermeira da foto em 1978; seu par morreu, se é que já morreu, no anonimato. Outra coincidência: também ao longo da Copa chegou às livrarias a tradução de O Acidente (tradução de Bernardo Joffily, Companhia das Letras, 232 págs., R$ 47), romance de Ismail Kadaré cuja trama gira em torno de um beijo, ou melhor, da tentativa de um beijo, tragicamente abortada num acidente rodoviário envolvendo um casal de albaneses e um táxi a caminho do aeroporto de Viena. Como no Blow Up, de Antonioni, tudo desanda no romance depois daquele beijo, ao sabor de paranoias herdadas da guerra nos Bálcãs. Kadaré montou uma intriga enigmática, misturando política e erotismo na medida adequada para um filme, que, como sabemos, sempre foi o veículo por excelência daquilo a que Rodin dedicou uma de suas estátuas mais conhecidas e milhares de poetas exaltaram em versos de qualidade duvidosa. Foi no cinema que várias gerações aprenderam suas primeiras lições de amor. Se Maria, a camponesa espanhola de Por Quem os Sinos Dobram, encarnada na tela por Ingrid Bergman, tivesse ido ao cinema antes de conhecer o galante guerrilheiro americano interpretado por Gary Cooper, na certa não lhe teria perguntado de que lado devia pôr o nariz ao beijá-lo. As imagens em movimento ainda engatinhavam quando John C. Rice sapecou um beijo em May Irwin num filme de Thomas A. Edison, de 1896, que durava menos de um minuto e pode ser apreciado no You Tube. Foi o primeiro beijo do cinema e seu primeiro escândalo. Se as plateias que há 114 anos indignaram-se com o casto chamego de Rice e Irwin pudessem ver os chupões hoje correntes em qualquer tela, na certa concluiriam que se amofinaram à toa. Duramente reprimido em Hollywood a partir dos anos 1930, quando virou obrigatório beijar rápido e de boca fechada, só décadas mais tarde as línguas puderam entrar em ação para valer - menos, claro, nas comédias estreladas pelo caretésimo roqueiro Pat Boone e nos filmes indianos. Embora um tanto ousado para os padrões da época, o célebre beijo de Burt Lancaster e Deborah Kerr na praia, em A Um Passo da Eternidade, só enfureceu os censores porque a personagem de Kerr era casada com outro milico. Mesmo severamente vigiado, o beijo não perdeu a hegemonia na escala de apelos à libido dos espectadores. Raríssimos filmes para adultos dispensavam seu condão emocional, embora até em filmes de guerra tenham arrumado um jeito de encaixar alguns, invariavelmente longe das trincheiras. Quando lhe perguntaram como seria o cartaz de E o Vento Levou, o produtor David O. Selznick não titubeou: "Com o beijo mais tórrido de Rett Butler em Scarlett O"Hara." É sobretudo da magia sobressalente do beijo cinematográfico que trata o filme de Hector Babenco, O Beijo da Mulher Aranha, que em versão restaurada abriu o Festival de Cinema de Paulínia na última quinta-feira. Outra coincidência. A que podemos juntar mais uma: na próxima terça-feira faz 20 anos que morreu o escritor argentino Manuel Puig, autor do romance que deu origem ao filme de Babenco e um dos maiores corifeus da mitologia e da mitopoética cinematográficas que eu conheci. Embora desprezasse cenas de amor na promoção de seus filmes, Hitchcock também foi um mestre na arte de explorar visualmente as potencialidades eróticas e estéticas de um beijo. Notadamente em Um Corpo que Cai, Interlúdio e Intriga Internacional, beijar é sempre um momento de incomparável êxtase, até para a câmera, que ao redor dos amantes entra em órbita, nos dois sentidos da expressão. Seus beijos circulares permanecem imbatíveis. Mas a honestidade me obriga que eu confesse que o beijo cinematográfico que mais me tocou até hoje foi o do vira-lata na cadela grã-fina de A Dama e o Vagabundo, intermediado por um espaguete.

As imagens de maior impacto da Copa não foram colhidas em nenhum dos dez gramados em que foi disputada, mas nos bastidores do Soccer Stadium, após a vitória da Espanha sobre a Holanda: o inesperado beijo de Casillas em Sara Carbonero; quase dois milhões de acessos no YouTube, quando parei de checar na quarta-feira. Melhor isso do que Nigel de Jong enfiando a chanca no peito de Xabi Alonso. O arroubo romântico de Casillas foi o arremate lógico, o happy end que a competição, em boa parte marcada por gestos de cordialidade e mesmo carinho, a começar pelos afagos de Maradona em seus pupilos, merecia. Selado com um beijo, o Mundial de 2010, que já se notabilizara como a mais visualmente rica das Copas, tornou-se também a mais cinematográfica de todas. O goleiro espanhol, em rigorosamente tudo o oposto do rubro-negro Bruno, deu um belo exemplo que até nestas bandas foi imitado. No meio da tarde de segunda-feira, um motorista de ônibus estacionou em fila dupla na movimentada avenida Visconde de Pirajá, em Ipanema, para dar um beijo na boca da motorista de outro ônibus. Só não digo que faltou Besame Mucho, de música de fundo, porque o bolero de Consuelo Velásquez há tempos nos evoca o romance de um dos casais mais abomináveis da história política brasileira. Por coincidência, durante a Copa, morreu Edith Shain, a protagonista do beijo de maior repercussão iconográfica do século passado. Era ela a jovem beijada por um marinheiro, em plena Time Square e ao alcance da câmera de Alfred Eisenstaedt, da revista Life, no festivo Dia da Vitória dos americanos sobre os japoneses na guerra do Pacífico, em 14 de agosto de 1945. O flagrante é um clássico do fotojornalismo. Shain, 26 anos na época, só se identificou como a enfermeira da foto em 1978; seu par morreu, se é que já morreu, no anonimato. Outra coincidência: também ao longo da Copa chegou às livrarias a tradução de O Acidente (tradução de Bernardo Joffily, Companhia das Letras, 232 págs., R$ 47), romance de Ismail Kadaré cuja trama gira em torno de um beijo, ou melhor, da tentativa de um beijo, tragicamente abortada num acidente rodoviário envolvendo um casal de albaneses e um táxi a caminho do aeroporto de Viena. Como no Blow Up, de Antonioni, tudo desanda no romance depois daquele beijo, ao sabor de paranoias herdadas da guerra nos Bálcãs. Kadaré montou uma intriga enigmática, misturando política e erotismo na medida adequada para um filme, que, como sabemos, sempre foi o veículo por excelência daquilo a que Rodin dedicou uma de suas estátuas mais conhecidas e milhares de poetas exaltaram em versos de qualidade duvidosa. Foi no cinema que várias gerações aprenderam suas primeiras lições de amor. Se Maria, a camponesa espanhola de Por Quem os Sinos Dobram, encarnada na tela por Ingrid Bergman, tivesse ido ao cinema antes de conhecer o galante guerrilheiro americano interpretado por Gary Cooper, na certa não lhe teria perguntado de que lado devia pôr o nariz ao beijá-lo. As imagens em movimento ainda engatinhavam quando John C. Rice sapecou um beijo em May Irwin num filme de Thomas A. Edison, de 1896, que durava menos de um minuto e pode ser apreciado no You Tube. Foi o primeiro beijo do cinema e seu primeiro escândalo. Se as plateias que há 114 anos indignaram-se com o casto chamego de Rice e Irwin pudessem ver os chupões hoje correntes em qualquer tela, na certa concluiriam que se amofinaram à toa. Duramente reprimido em Hollywood a partir dos anos 1930, quando virou obrigatório beijar rápido e de boca fechada, só décadas mais tarde as línguas puderam entrar em ação para valer - menos, claro, nas comédias estreladas pelo caretésimo roqueiro Pat Boone e nos filmes indianos. Embora um tanto ousado para os padrões da época, o célebre beijo de Burt Lancaster e Deborah Kerr na praia, em A Um Passo da Eternidade, só enfureceu os censores porque a personagem de Kerr era casada com outro milico. Mesmo severamente vigiado, o beijo não perdeu a hegemonia na escala de apelos à libido dos espectadores. Raríssimos filmes para adultos dispensavam seu condão emocional, embora até em filmes de guerra tenham arrumado um jeito de encaixar alguns, invariavelmente longe das trincheiras. Quando lhe perguntaram como seria o cartaz de E o Vento Levou, o produtor David O. Selznick não titubeou: "Com o beijo mais tórrido de Rett Butler em Scarlett O"Hara." É sobretudo da magia sobressalente do beijo cinematográfico que trata o filme de Hector Babenco, O Beijo da Mulher Aranha, que em versão restaurada abriu o Festival de Cinema de Paulínia na última quinta-feira. Outra coincidência. A que podemos juntar mais uma: na próxima terça-feira faz 20 anos que morreu o escritor argentino Manuel Puig, autor do romance que deu origem ao filme de Babenco e um dos maiores corifeus da mitologia e da mitopoética cinematográficas que eu conheci. Embora desprezasse cenas de amor na promoção de seus filmes, Hitchcock também foi um mestre na arte de explorar visualmente as potencialidades eróticas e estéticas de um beijo. Notadamente em Um Corpo que Cai, Interlúdio e Intriga Internacional, beijar é sempre um momento de incomparável êxtase, até para a câmera, que ao redor dos amantes entra em órbita, nos dois sentidos da expressão. Seus beijos circulares permanecem imbatíveis. Mas a honestidade me obriga que eu confesse que o beijo cinematográfico que mais me tocou até hoje foi o do vira-lata na cadela grã-fina de A Dama e o Vagabundo, intermediado por um espaguete.

As imagens de maior impacto da Copa não foram colhidas em nenhum dos dez gramados em que foi disputada, mas nos bastidores do Soccer Stadium, após a vitória da Espanha sobre a Holanda: o inesperado beijo de Casillas em Sara Carbonero; quase dois milhões de acessos no YouTube, quando parei de checar na quarta-feira. Melhor isso do que Nigel de Jong enfiando a chanca no peito de Xabi Alonso. O arroubo romântico de Casillas foi o arremate lógico, o happy end que a competição, em boa parte marcada por gestos de cordialidade e mesmo carinho, a começar pelos afagos de Maradona em seus pupilos, merecia. Selado com um beijo, o Mundial de 2010, que já se notabilizara como a mais visualmente rica das Copas, tornou-se também a mais cinematográfica de todas. O goleiro espanhol, em rigorosamente tudo o oposto do rubro-negro Bruno, deu um belo exemplo que até nestas bandas foi imitado. No meio da tarde de segunda-feira, um motorista de ônibus estacionou em fila dupla na movimentada avenida Visconde de Pirajá, em Ipanema, para dar um beijo na boca da motorista de outro ônibus. Só não digo que faltou Besame Mucho, de música de fundo, porque o bolero de Consuelo Velásquez há tempos nos evoca o romance de um dos casais mais abomináveis da história política brasileira. Por coincidência, durante a Copa, morreu Edith Shain, a protagonista do beijo de maior repercussão iconográfica do século passado. Era ela a jovem beijada por um marinheiro, em plena Time Square e ao alcance da câmera de Alfred Eisenstaedt, da revista Life, no festivo Dia da Vitória dos americanos sobre os japoneses na guerra do Pacífico, em 14 de agosto de 1945. O flagrante é um clássico do fotojornalismo. Shain, 26 anos na época, só se identificou como a enfermeira da foto em 1978; seu par morreu, se é que já morreu, no anonimato. Outra coincidência: também ao longo da Copa chegou às livrarias a tradução de O Acidente (tradução de Bernardo Joffily, Companhia das Letras, 232 págs., R$ 47), romance de Ismail Kadaré cuja trama gira em torno de um beijo, ou melhor, da tentativa de um beijo, tragicamente abortada num acidente rodoviário envolvendo um casal de albaneses e um táxi a caminho do aeroporto de Viena. Como no Blow Up, de Antonioni, tudo desanda no romance depois daquele beijo, ao sabor de paranoias herdadas da guerra nos Bálcãs. Kadaré montou uma intriga enigmática, misturando política e erotismo na medida adequada para um filme, que, como sabemos, sempre foi o veículo por excelência daquilo a que Rodin dedicou uma de suas estátuas mais conhecidas e milhares de poetas exaltaram em versos de qualidade duvidosa. Foi no cinema que várias gerações aprenderam suas primeiras lições de amor. Se Maria, a camponesa espanhola de Por Quem os Sinos Dobram, encarnada na tela por Ingrid Bergman, tivesse ido ao cinema antes de conhecer o galante guerrilheiro americano interpretado por Gary Cooper, na certa não lhe teria perguntado de que lado devia pôr o nariz ao beijá-lo. As imagens em movimento ainda engatinhavam quando John C. Rice sapecou um beijo em May Irwin num filme de Thomas A. Edison, de 1896, que durava menos de um minuto e pode ser apreciado no You Tube. Foi o primeiro beijo do cinema e seu primeiro escândalo. Se as plateias que há 114 anos indignaram-se com o casto chamego de Rice e Irwin pudessem ver os chupões hoje correntes em qualquer tela, na certa concluiriam que se amofinaram à toa. Duramente reprimido em Hollywood a partir dos anos 1930, quando virou obrigatório beijar rápido e de boca fechada, só décadas mais tarde as línguas puderam entrar em ação para valer - menos, claro, nas comédias estreladas pelo caretésimo roqueiro Pat Boone e nos filmes indianos. Embora um tanto ousado para os padrões da época, o célebre beijo de Burt Lancaster e Deborah Kerr na praia, em A Um Passo da Eternidade, só enfureceu os censores porque a personagem de Kerr era casada com outro milico. Mesmo severamente vigiado, o beijo não perdeu a hegemonia na escala de apelos à libido dos espectadores. Raríssimos filmes para adultos dispensavam seu condão emocional, embora até em filmes de guerra tenham arrumado um jeito de encaixar alguns, invariavelmente longe das trincheiras. Quando lhe perguntaram como seria o cartaz de E o Vento Levou, o produtor David O. Selznick não titubeou: "Com o beijo mais tórrido de Rett Butler em Scarlett O"Hara." É sobretudo da magia sobressalente do beijo cinematográfico que trata o filme de Hector Babenco, O Beijo da Mulher Aranha, que em versão restaurada abriu o Festival de Cinema de Paulínia na última quinta-feira. Outra coincidência. A que podemos juntar mais uma: na próxima terça-feira faz 20 anos que morreu o escritor argentino Manuel Puig, autor do romance que deu origem ao filme de Babenco e um dos maiores corifeus da mitologia e da mitopoética cinematográficas que eu conheci. Embora desprezasse cenas de amor na promoção de seus filmes, Hitchcock também foi um mestre na arte de explorar visualmente as potencialidades eróticas e estéticas de um beijo. Notadamente em Um Corpo que Cai, Interlúdio e Intriga Internacional, beijar é sempre um momento de incomparável êxtase, até para a câmera, que ao redor dos amantes entra em órbita, nos dois sentidos da expressão. Seus beijos circulares permanecem imbatíveis. Mas a honestidade me obriga que eu confesse que o beijo cinematográfico que mais me tocou até hoje foi o do vira-lata na cadela grã-fina de A Dama e o Vagabundo, intermediado por um espaguete.

As imagens de maior impacto da Copa não foram colhidas em nenhum dos dez gramados em que foi disputada, mas nos bastidores do Soccer Stadium, após a vitória da Espanha sobre a Holanda: o inesperado beijo de Casillas em Sara Carbonero; quase dois milhões de acessos no YouTube, quando parei de checar na quarta-feira. Melhor isso do que Nigel de Jong enfiando a chanca no peito de Xabi Alonso. O arroubo romântico de Casillas foi o arremate lógico, o happy end que a competição, em boa parte marcada por gestos de cordialidade e mesmo carinho, a começar pelos afagos de Maradona em seus pupilos, merecia. Selado com um beijo, o Mundial de 2010, que já se notabilizara como a mais visualmente rica das Copas, tornou-se também a mais cinematográfica de todas. O goleiro espanhol, em rigorosamente tudo o oposto do rubro-negro Bruno, deu um belo exemplo que até nestas bandas foi imitado. No meio da tarde de segunda-feira, um motorista de ônibus estacionou em fila dupla na movimentada avenida Visconde de Pirajá, em Ipanema, para dar um beijo na boca da motorista de outro ônibus. Só não digo que faltou Besame Mucho, de música de fundo, porque o bolero de Consuelo Velásquez há tempos nos evoca o romance de um dos casais mais abomináveis da história política brasileira. Por coincidência, durante a Copa, morreu Edith Shain, a protagonista do beijo de maior repercussão iconográfica do século passado. Era ela a jovem beijada por um marinheiro, em plena Time Square e ao alcance da câmera de Alfred Eisenstaedt, da revista Life, no festivo Dia da Vitória dos americanos sobre os japoneses na guerra do Pacífico, em 14 de agosto de 1945. O flagrante é um clássico do fotojornalismo. Shain, 26 anos na época, só se identificou como a enfermeira da foto em 1978; seu par morreu, se é que já morreu, no anonimato. Outra coincidência: também ao longo da Copa chegou às livrarias a tradução de O Acidente (tradução de Bernardo Joffily, Companhia das Letras, 232 págs., R$ 47), romance de Ismail Kadaré cuja trama gira em torno de um beijo, ou melhor, da tentativa de um beijo, tragicamente abortada num acidente rodoviário envolvendo um casal de albaneses e um táxi a caminho do aeroporto de Viena. Como no Blow Up, de Antonioni, tudo desanda no romance depois daquele beijo, ao sabor de paranoias herdadas da guerra nos Bálcãs. Kadaré montou uma intriga enigmática, misturando política e erotismo na medida adequada para um filme, que, como sabemos, sempre foi o veículo por excelência daquilo a que Rodin dedicou uma de suas estátuas mais conhecidas e milhares de poetas exaltaram em versos de qualidade duvidosa. Foi no cinema que várias gerações aprenderam suas primeiras lições de amor. Se Maria, a camponesa espanhola de Por Quem os Sinos Dobram, encarnada na tela por Ingrid Bergman, tivesse ido ao cinema antes de conhecer o galante guerrilheiro americano interpretado por Gary Cooper, na certa não lhe teria perguntado de que lado devia pôr o nariz ao beijá-lo. As imagens em movimento ainda engatinhavam quando John C. Rice sapecou um beijo em May Irwin num filme de Thomas A. Edison, de 1896, que durava menos de um minuto e pode ser apreciado no You Tube. Foi o primeiro beijo do cinema e seu primeiro escândalo. Se as plateias que há 114 anos indignaram-se com o casto chamego de Rice e Irwin pudessem ver os chupões hoje correntes em qualquer tela, na certa concluiriam que se amofinaram à toa. Duramente reprimido em Hollywood a partir dos anos 1930, quando virou obrigatório beijar rápido e de boca fechada, só décadas mais tarde as línguas puderam entrar em ação para valer - menos, claro, nas comédias estreladas pelo caretésimo roqueiro Pat Boone e nos filmes indianos. Embora um tanto ousado para os padrões da época, o célebre beijo de Burt Lancaster e Deborah Kerr na praia, em A Um Passo da Eternidade, só enfureceu os censores porque a personagem de Kerr era casada com outro milico. Mesmo severamente vigiado, o beijo não perdeu a hegemonia na escala de apelos à libido dos espectadores. Raríssimos filmes para adultos dispensavam seu condão emocional, embora até em filmes de guerra tenham arrumado um jeito de encaixar alguns, invariavelmente longe das trincheiras. Quando lhe perguntaram como seria o cartaz de E o Vento Levou, o produtor David O. Selznick não titubeou: "Com o beijo mais tórrido de Rett Butler em Scarlett O"Hara." É sobretudo da magia sobressalente do beijo cinematográfico que trata o filme de Hector Babenco, O Beijo da Mulher Aranha, que em versão restaurada abriu o Festival de Cinema de Paulínia na última quinta-feira. Outra coincidência. A que podemos juntar mais uma: na próxima terça-feira faz 20 anos que morreu o escritor argentino Manuel Puig, autor do romance que deu origem ao filme de Babenco e um dos maiores corifeus da mitologia e da mitopoética cinematográficas que eu conheci. Embora desprezasse cenas de amor na promoção de seus filmes, Hitchcock também foi um mestre na arte de explorar visualmente as potencialidades eróticas e estéticas de um beijo. Notadamente em Um Corpo que Cai, Interlúdio e Intriga Internacional, beijar é sempre um momento de incomparável êxtase, até para a câmera, que ao redor dos amantes entra em órbita, nos dois sentidos da expressão. Seus beijos circulares permanecem imbatíveis. Mas a honestidade me obriga que eu confesse que o beijo cinematográfico que mais me tocou até hoje foi o do vira-lata na cadela grã-fina de A Dama e o Vagabundo, intermediado por um espaguete.

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