Entre sonhar com uma vaga entre os comensais da Mesa Redonda do Algonquin, na Nova York de cem anos atrás, reservada àquela plêiade de intelectuais fortemente armados de frases lapidares, e presenciar o papo vadio dos humoristas da Rádio Mayrink Veiga, na década de 1950, meu coração balança.
Tente imaginar uma sala com Chico Anysio, Sérgio Porto, Haroldo Barbosa e Antonio Maria trocando ideias, criando piadas e situações cômicas para programas como A Cidade se Diverte, Levertimentos e Vai da Valsa. E reconheçam: meu coração não balança à toa. Muito amigos (foi Barbosa quem revelou a vis comica do futuro Stanislaw Ponte Preta, levando-o para o rádio), todos eles ajudaram a colorir os melhores anos de minha vida. Dois deles, Sérgio e Antonio Maria, morreram na flor da idade (45 e 43 anos, respectivamente) e do mesmo mal: “cardisdisplicência”, neologismo cunhado por Maria e aplicável aos boêmios e workaholics desatentos às insuficiências das coronárias. Sérgio enfartou em casa e morreu no hospital; Maria, na calçada de seu restaurante favorito, Le Rond Point, também em Copacabana. Já era madrugada: a hora certa, o cenário perfeito para a última despedida de nosso mais sensível cronista da noite, o que melhor entendeu que quase todos os infortúnios se acumulavam e se liquidavam nos balcões de bar e nas pistas das boates. Compartilho com Luis Fernando Verissimo a mesma reverência por Paulo Mendes Campos, “o melhor e mais profundo dos cronistas mineiros”, mas custei um pouco a entender sua declarada dívida com Maria, que considera sua maior influência. Ao ler todas as crônicas do polivalente pernambucano compiladas no livro Vento Vadio, que nesta segunda-feira a Todavia põe nas livrarias, entendi sua proeminência no panteão do gaúcho. Aquela agridoce mistura de seriedade, humor e lirismo (“como é longe a casa de quem dorme vestido, em casa dos outros”) é de fato distinta. Tão distinta quanto, digamos, a música de Dorival Caymmi – por ele, aliás, definido como “um homem macio”, outra de suas incontáveis pérolas lexicais, embora sem a fama de “mal-amada”, de intenso uso na segunda metade do século passado. Frasista por escrito e de viva-voz, são dele tiradas antológicas como esta: “Não há lei debaixo das minhas cobertas”. E esta: “Gente má dorme em posição de sentido”. E mais esta: “O homem mau ri errado”. E também esta: “Só há uma Semana Santa; nas outras, vocês matem quem quiser”. Seu espírito gozador não deu trégua sequer ao mais melodramático de seus sambas-canção, que ele parodiou com estes versos: “Ninguém me ama/ ninguém me quer/ ninguém me chama de Baudelaire” – evidentemente jamais gravada por Nora Ney. Em qualquer antologia de Maria que me coubesse editar, não deixaria de fora isto aqui: “Não há sensação mais curiosa que a de encontrar a ex-namorada pela primeira vez em companhia de seu atual namorado. Por mais que a gente lhe olhe o rosto, não lhe vê as feições. É uma mulher sem olhos, sem nariz e sem boca, que a gente só reconhece pela falta de ar que nos causa a sua presença.”