Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Que chova, pois


Descobri, tardiamente, a existência de um irmão caçula. Em Lisboa. Não surpreende, já que meu pai era português. Embora ele, o caçula, tenha idade para ser meu filho, satisfaço-me com tê-lo exclusivamente como irmão-espiritual, igual a outros, poucos, que agregamos vida afora. Fui irmão espiritual de Ivan Lessa e Paulo Mendes Campos, mas só Ivan, o irmão do meio, tomou conhecimento da adoção. Certas e determinantes afinidades, ojerizas e fraquezas em comum, idêntica formação cultural, e, pronto, estamos dispensados de cruzar mapas genéticos e comprometer a reputação de nossos pais. 

Por Sérgio Augusto

Meu irmão alfacinha tem nome apostólico (Pedro) e um sobrenome faceto (Mexia), um convite a troças e trocadilhos, que na certa o perseguem desde os bancos escolares e atrás dele irão até o obituário: “Pedro mexia, não mexe mais”.  Deveria conhecê-lo há mais tempo, mas meu carinho e interesse pelas coisas de Portugal não foram suficientes para que a mesma atenção que dediquei a seus colegas de imprensa e vida literária, como Francisco José Viegas, Inês Pedrosa e Alexandra Lucas Coelho, para citar apenas três exemplos, o incluísse em meu minúsculo círculo de conhecidos lusos antes de sua recentíssima chegada às nossas livrarias. Ele esteve na Flip deste ano, à qual não compareci. Coube à Tinta da China, editora portuguesa com um pé no Rio de Janeiro, fazer as apresentações. Muito prazer, Pedro.

Em sua breve passagem por aqui, Mexia impressionou-se com o tamanho de São Paulo, com a alta qualidade de seus dois maiores diários e, acima de tudo, com o “crescimento endêmico” do País. “No Brasil não há crise, nem econômica nem de ânimo”, notou em seu diário de viagem. Recomendo-lhe não voltar tão cedo a estas paragens, a menos que lhe seja fácil metabolizar decepções. 

Seu primeiro livro lançado entre nós pegou-me pelo título, deliciosamente birrento: Queria Mais É Que Chovesse (190 págs., R$ 39), o mesmo de uma das 60 crônicas que lhe dão substância e encanto. Birrento se não se conhece sua fonte de inspiração: uma velha balada dor de cotovelo de Phil Collins, I Wish It Would Rain Down, a cujo embalo o cronista curtiu algumas fossas na juventude. Seu hit parade afetivo, et pour cause monopolizado por canções amorosas “de gosto duvidoso” ouvidas na adolescência, nos anos 1980, já lhe rendeu pelo menos quatro crônicas, todas incluídas no livro.

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Quase sempre confessionais, seus textos, originalmente publicados nos jornais Diário de Notícias, Público e no semanário Expresso, respeitam o cânone da crônica, gênero “fascinante precisamente porque pessoal”, ressalta ele no texto de abertura, em que enaltece o padrão “incomparável” dos colegas brasileiros, com sua “forma direta, divertida e descomplexada de conversar por escrito, com ritmo, leveza e graça”. Quando nos visitou, comprou tudo de Paulo Mendes Campos. Eis um traço marcante de nosso parentesco espiritual: o fascínio pela lábia insinuante e erudita do poeta (e croniqueur) mineiro.

Além de escrever crônicas personalíssimas, Mexia faz crítica literária, é poeta, tradutor (de Tom Stoppard, dentre outros) e blogueiro, meteu-se em televisão, teatro e dirigiu a Cinemateca de Lisboa. Mais por pudor e, desconfio, senso de ridículo, que por modéstia, não gosta que o chamem de intelectual e muito menos de pensador. Já publicou uma dezena de livros; o último, Biblioteca, tem prefácio do nunca assaz reverenciado Eduardo Lourenço, e o próximo, de poesia, sai em outubro. 

Motoristas de táxi (“criaturas reacionárias e intratáveis”), réveillons, adiposidade, calvície, empatia, vizinhos ruidosos, a inutilidade dos cursos de Direito, maridos cornos e mulherengos, olheiras, serviço militar obrigatório, os pentelhos de palestras, exercícios físicos, rejeição amorosa, discotecas, celibato, sites de relacionamento, macho alfa, dimensão peniana, Kama Sutra, férias de verão – é assaz variado, como convém à espécie, o seu cardápio de assuntos e fixações. E sem pejo o strip-tease com que nos brinda o autor: gordo assumido, sósia físico (e inspirado obituarista) do ator Philip Seymour Hoffman, cético, nostálgico, pessimista, misantropo, idiossincrático, incomodado com a pouca macheza de sua voz e neuroticamente avesso à falsa alegria de festas e celebrações. Similar amálgama de Woody Allen com Hundri Bakshi (o personagem de Peter Sellers em Um Convidado Bem Trapalhão) e o Alvaro Campos do Poema em Linha Reta nunca vi. 

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Como fui criado ouvindo de meu pai palavras (aldrabão, zarelho, azêmola) estranhas ao português aqui falado, um dos maiores prazeres que as crônicas de Mexia me proporcionaram foi topar com vocábulos lusitanos da gema como laracha, bacoca, magala, pimba, catrefa, gatafunho, drunfado, roscovância, e frases e expressões à primeira vista enigmáticas, como “só alguns putos causam chavascal”, “raspar salitre com uma colher de sopa”, entre outras que me obrigaram a constantes consultas não mais ao analógico dicionário de Cândido Figueiredo, herdado por minha mãe e até hoje sob sua guarda, mas ao eletrônico Priberam.

Tal esforço é plenamente recompensado pelo prazer que o estranhamento em face do léxico, da gramática e da sintaxe do português castiço sempre me dá. Acho que os portugueses falam e escrevem melhor – ou, no mínimo, com mais rigor e correção – do que nós e os invejo por isso. Ainda não me habituei à preferência deles pelo pretérito imperfeito (“Gostava de ter aprendido”) em orações em que sempre usamos o futuro do pretérito (“Gostaria...”), mas até esse idiotismo reforça em mim a convicção, compartilhada por Mexia e brasileiros como Millôr Fernandes, Ferreira Gullar, Ariano Suassuna e João Ubaldo, de que o Acordo Ortográfico não fazia a menor falta.

Cheio de cismas, Mexia levou 40 anos para superar o medo de ficar sozinho, sua maior inquietação ao alcançar a idade de Cristo. Aos 43, admitiu: “Ficamos sozinhos quando somos exigentes. Ficamos sozinhos quando não mentimos. Ficamos sozinhos quando defendemos nossas convicções. É um preço que estou disposto a pagar. E há, digamos, dez pessoas de quem gosto, dez pessoas sobre quem não me enganei, e dez pessoas é um mundo”. 

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Gostaria de ter escrito isto. Ou melhor, em português castiço, gostava de ter escrito isto.

Meu irmão alfacinha tem nome apostólico (Pedro) e um sobrenome faceto (Mexia), um convite a troças e trocadilhos, que na certa o perseguem desde os bancos escolares e atrás dele irão até o obituário: “Pedro mexia, não mexe mais”.  Deveria conhecê-lo há mais tempo, mas meu carinho e interesse pelas coisas de Portugal não foram suficientes para que a mesma atenção que dediquei a seus colegas de imprensa e vida literária, como Francisco José Viegas, Inês Pedrosa e Alexandra Lucas Coelho, para citar apenas três exemplos, o incluísse em meu minúsculo círculo de conhecidos lusos antes de sua recentíssima chegada às nossas livrarias. Ele esteve na Flip deste ano, à qual não compareci. Coube à Tinta da China, editora portuguesa com um pé no Rio de Janeiro, fazer as apresentações. Muito prazer, Pedro.

Em sua breve passagem por aqui, Mexia impressionou-se com o tamanho de São Paulo, com a alta qualidade de seus dois maiores diários e, acima de tudo, com o “crescimento endêmico” do País. “No Brasil não há crise, nem econômica nem de ânimo”, notou em seu diário de viagem. Recomendo-lhe não voltar tão cedo a estas paragens, a menos que lhe seja fácil metabolizar decepções. 

Seu primeiro livro lançado entre nós pegou-me pelo título, deliciosamente birrento: Queria Mais É Que Chovesse (190 págs., R$ 39), o mesmo de uma das 60 crônicas que lhe dão substância e encanto. Birrento se não se conhece sua fonte de inspiração: uma velha balada dor de cotovelo de Phil Collins, I Wish It Would Rain Down, a cujo embalo o cronista curtiu algumas fossas na juventude. Seu hit parade afetivo, et pour cause monopolizado por canções amorosas “de gosto duvidoso” ouvidas na adolescência, nos anos 1980, já lhe rendeu pelo menos quatro crônicas, todas incluídas no livro.

Quase sempre confessionais, seus textos, originalmente publicados nos jornais Diário de Notícias, Público e no semanário Expresso, respeitam o cânone da crônica, gênero “fascinante precisamente porque pessoal”, ressalta ele no texto de abertura, em que enaltece o padrão “incomparável” dos colegas brasileiros, com sua “forma direta, divertida e descomplexada de conversar por escrito, com ritmo, leveza e graça”. Quando nos visitou, comprou tudo de Paulo Mendes Campos. Eis um traço marcante de nosso parentesco espiritual: o fascínio pela lábia insinuante e erudita do poeta (e croniqueur) mineiro.

Além de escrever crônicas personalíssimas, Mexia faz crítica literária, é poeta, tradutor (de Tom Stoppard, dentre outros) e blogueiro, meteu-se em televisão, teatro e dirigiu a Cinemateca de Lisboa. Mais por pudor e, desconfio, senso de ridículo, que por modéstia, não gosta que o chamem de intelectual e muito menos de pensador. Já publicou uma dezena de livros; o último, Biblioteca, tem prefácio do nunca assaz reverenciado Eduardo Lourenço, e o próximo, de poesia, sai em outubro. 

Motoristas de táxi (“criaturas reacionárias e intratáveis”), réveillons, adiposidade, calvície, empatia, vizinhos ruidosos, a inutilidade dos cursos de Direito, maridos cornos e mulherengos, olheiras, serviço militar obrigatório, os pentelhos de palestras, exercícios físicos, rejeição amorosa, discotecas, celibato, sites de relacionamento, macho alfa, dimensão peniana, Kama Sutra, férias de verão – é assaz variado, como convém à espécie, o seu cardápio de assuntos e fixações. E sem pejo o strip-tease com que nos brinda o autor: gordo assumido, sósia físico (e inspirado obituarista) do ator Philip Seymour Hoffman, cético, nostálgico, pessimista, misantropo, idiossincrático, incomodado com a pouca macheza de sua voz e neuroticamente avesso à falsa alegria de festas e celebrações. Similar amálgama de Woody Allen com Hundri Bakshi (o personagem de Peter Sellers em Um Convidado Bem Trapalhão) e o Alvaro Campos do Poema em Linha Reta nunca vi. 

Como fui criado ouvindo de meu pai palavras (aldrabão, zarelho, azêmola) estranhas ao português aqui falado, um dos maiores prazeres que as crônicas de Mexia me proporcionaram foi topar com vocábulos lusitanos da gema como laracha, bacoca, magala, pimba, catrefa, gatafunho, drunfado, roscovância, e frases e expressões à primeira vista enigmáticas, como “só alguns putos causam chavascal”, “raspar salitre com uma colher de sopa”, entre outras que me obrigaram a constantes consultas não mais ao analógico dicionário de Cândido Figueiredo, herdado por minha mãe e até hoje sob sua guarda, mas ao eletrônico Priberam.

Tal esforço é plenamente recompensado pelo prazer que o estranhamento em face do léxico, da gramática e da sintaxe do português castiço sempre me dá. Acho que os portugueses falam e escrevem melhor – ou, no mínimo, com mais rigor e correção – do que nós e os invejo por isso. Ainda não me habituei à preferência deles pelo pretérito imperfeito (“Gostava de ter aprendido”) em orações em que sempre usamos o futuro do pretérito (“Gostaria...”), mas até esse idiotismo reforça em mim a convicção, compartilhada por Mexia e brasileiros como Millôr Fernandes, Ferreira Gullar, Ariano Suassuna e João Ubaldo, de que o Acordo Ortográfico não fazia a menor falta.

Cheio de cismas, Mexia levou 40 anos para superar o medo de ficar sozinho, sua maior inquietação ao alcançar a idade de Cristo. Aos 43, admitiu: “Ficamos sozinhos quando somos exigentes. Ficamos sozinhos quando não mentimos. Ficamos sozinhos quando defendemos nossas convicções. É um preço que estou disposto a pagar. E há, digamos, dez pessoas de quem gosto, dez pessoas sobre quem não me enganei, e dez pessoas é um mundo”. 

Gostaria de ter escrito isto. Ou melhor, em português castiço, gostava de ter escrito isto.

Meu irmão alfacinha tem nome apostólico (Pedro) e um sobrenome faceto (Mexia), um convite a troças e trocadilhos, que na certa o perseguem desde os bancos escolares e atrás dele irão até o obituário: “Pedro mexia, não mexe mais”.  Deveria conhecê-lo há mais tempo, mas meu carinho e interesse pelas coisas de Portugal não foram suficientes para que a mesma atenção que dediquei a seus colegas de imprensa e vida literária, como Francisco José Viegas, Inês Pedrosa e Alexandra Lucas Coelho, para citar apenas três exemplos, o incluísse em meu minúsculo círculo de conhecidos lusos antes de sua recentíssima chegada às nossas livrarias. Ele esteve na Flip deste ano, à qual não compareci. Coube à Tinta da China, editora portuguesa com um pé no Rio de Janeiro, fazer as apresentações. Muito prazer, Pedro.

Em sua breve passagem por aqui, Mexia impressionou-se com o tamanho de São Paulo, com a alta qualidade de seus dois maiores diários e, acima de tudo, com o “crescimento endêmico” do País. “No Brasil não há crise, nem econômica nem de ânimo”, notou em seu diário de viagem. Recomendo-lhe não voltar tão cedo a estas paragens, a menos que lhe seja fácil metabolizar decepções. 

Seu primeiro livro lançado entre nós pegou-me pelo título, deliciosamente birrento: Queria Mais É Que Chovesse (190 págs., R$ 39), o mesmo de uma das 60 crônicas que lhe dão substância e encanto. Birrento se não se conhece sua fonte de inspiração: uma velha balada dor de cotovelo de Phil Collins, I Wish It Would Rain Down, a cujo embalo o cronista curtiu algumas fossas na juventude. Seu hit parade afetivo, et pour cause monopolizado por canções amorosas “de gosto duvidoso” ouvidas na adolescência, nos anos 1980, já lhe rendeu pelo menos quatro crônicas, todas incluídas no livro.

Quase sempre confessionais, seus textos, originalmente publicados nos jornais Diário de Notícias, Público e no semanário Expresso, respeitam o cânone da crônica, gênero “fascinante precisamente porque pessoal”, ressalta ele no texto de abertura, em que enaltece o padrão “incomparável” dos colegas brasileiros, com sua “forma direta, divertida e descomplexada de conversar por escrito, com ritmo, leveza e graça”. Quando nos visitou, comprou tudo de Paulo Mendes Campos. Eis um traço marcante de nosso parentesco espiritual: o fascínio pela lábia insinuante e erudita do poeta (e croniqueur) mineiro.

Além de escrever crônicas personalíssimas, Mexia faz crítica literária, é poeta, tradutor (de Tom Stoppard, dentre outros) e blogueiro, meteu-se em televisão, teatro e dirigiu a Cinemateca de Lisboa. Mais por pudor e, desconfio, senso de ridículo, que por modéstia, não gosta que o chamem de intelectual e muito menos de pensador. Já publicou uma dezena de livros; o último, Biblioteca, tem prefácio do nunca assaz reverenciado Eduardo Lourenço, e o próximo, de poesia, sai em outubro. 

Motoristas de táxi (“criaturas reacionárias e intratáveis”), réveillons, adiposidade, calvície, empatia, vizinhos ruidosos, a inutilidade dos cursos de Direito, maridos cornos e mulherengos, olheiras, serviço militar obrigatório, os pentelhos de palestras, exercícios físicos, rejeição amorosa, discotecas, celibato, sites de relacionamento, macho alfa, dimensão peniana, Kama Sutra, férias de verão – é assaz variado, como convém à espécie, o seu cardápio de assuntos e fixações. E sem pejo o strip-tease com que nos brinda o autor: gordo assumido, sósia físico (e inspirado obituarista) do ator Philip Seymour Hoffman, cético, nostálgico, pessimista, misantropo, idiossincrático, incomodado com a pouca macheza de sua voz e neuroticamente avesso à falsa alegria de festas e celebrações. Similar amálgama de Woody Allen com Hundri Bakshi (o personagem de Peter Sellers em Um Convidado Bem Trapalhão) e o Alvaro Campos do Poema em Linha Reta nunca vi. 

Como fui criado ouvindo de meu pai palavras (aldrabão, zarelho, azêmola) estranhas ao português aqui falado, um dos maiores prazeres que as crônicas de Mexia me proporcionaram foi topar com vocábulos lusitanos da gema como laracha, bacoca, magala, pimba, catrefa, gatafunho, drunfado, roscovância, e frases e expressões à primeira vista enigmáticas, como “só alguns putos causam chavascal”, “raspar salitre com uma colher de sopa”, entre outras que me obrigaram a constantes consultas não mais ao analógico dicionário de Cândido Figueiredo, herdado por minha mãe e até hoje sob sua guarda, mas ao eletrônico Priberam.

Tal esforço é plenamente recompensado pelo prazer que o estranhamento em face do léxico, da gramática e da sintaxe do português castiço sempre me dá. Acho que os portugueses falam e escrevem melhor – ou, no mínimo, com mais rigor e correção – do que nós e os invejo por isso. Ainda não me habituei à preferência deles pelo pretérito imperfeito (“Gostava de ter aprendido”) em orações em que sempre usamos o futuro do pretérito (“Gostaria...”), mas até esse idiotismo reforça em mim a convicção, compartilhada por Mexia e brasileiros como Millôr Fernandes, Ferreira Gullar, Ariano Suassuna e João Ubaldo, de que o Acordo Ortográfico não fazia a menor falta.

Cheio de cismas, Mexia levou 40 anos para superar o medo de ficar sozinho, sua maior inquietação ao alcançar a idade de Cristo. Aos 43, admitiu: “Ficamos sozinhos quando somos exigentes. Ficamos sozinhos quando não mentimos. Ficamos sozinhos quando defendemos nossas convicções. É um preço que estou disposto a pagar. E há, digamos, dez pessoas de quem gosto, dez pessoas sobre quem não me enganei, e dez pessoas é um mundo”. 

Gostaria de ter escrito isto. Ou melhor, em português castiço, gostava de ter escrito isto.

Meu irmão alfacinha tem nome apostólico (Pedro) e um sobrenome faceto (Mexia), um convite a troças e trocadilhos, que na certa o perseguem desde os bancos escolares e atrás dele irão até o obituário: “Pedro mexia, não mexe mais”.  Deveria conhecê-lo há mais tempo, mas meu carinho e interesse pelas coisas de Portugal não foram suficientes para que a mesma atenção que dediquei a seus colegas de imprensa e vida literária, como Francisco José Viegas, Inês Pedrosa e Alexandra Lucas Coelho, para citar apenas três exemplos, o incluísse em meu minúsculo círculo de conhecidos lusos antes de sua recentíssima chegada às nossas livrarias. Ele esteve na Flip deste ano, à qual não compareci. Coube à Tinta da China, editora portuguesa com um pé no Rio de Janeiro, fazer as apresentações. Muito prazer, Pedro.

Em sua breve passagem por aqui, Mexia impressionou-se com o tamanho de São Paulo, com a alta qualidade de seus dois maiores diários e, acima de tudo, com o “crescimento endêmico” do País. “No Brasil não há crise, nem econômica nem de ânimo”, notou em seu diário de viagem. Recomendo-lhe não voltar tão cedo a estas paragens, a menos que lhe seja fácil metabolizar decepções. 

Seu primeiro livro lançado entre nós pegou-me pelo título, deliciosamente birrento: Queria Mais É Que Chovesse (190 págs., R$ 39), o mesmo de uma das 60 crônicas que lhe dão substância e encanto. Birrento se não se conhece sua fonte de inspiração: uma velha balada dor de cotovelo de Phil Collins, I Wish It Would Rain Down, a cujo embalo o cronista curtiu algumas fossas na juventude. Seu hit parade afetivo, et pour cause monopolizado por canções amorosas “de gosto duvidoso” ouvidas na adolescência, nos anos 1980, já lhe rendeu pelo menos quatro crônicas, todas incluídas no livro.

Quase sempre confessionais, seus textos, originalmente publicados nos jornais Diário de Notícias, Público e no semanário Expresso, respeitam o cânone da crônica, gênero “fascinante precisamente porque pessoal”, ressalta ele no texto de abertura, em que enaltece o padrão “incomparável” dos colegas brasileiros, com sua “forma direta, divertida e descomplexada de conversar por escrito, com ritmo, leveza e graça”. Quando nos visitou, comprou tudo de Paulo Mendes Campos. Eis um traço marcante de nosso parentesco espiritual: o fascínio pela lábia insinuante e erudita do poeta (e croniqueur) mineiro.

Além de escrever crônicas personalíssimas, Mexia faz crítica literária, é poeta, tradutor (de Tom Stoppard, dentre outros) e blogueiro, meteu-se em televisão, teatro e dirigiu a Cinemateca de Lisboa. Mais por pudor e, desconfio, senso de ridículo, que por modéstia, não gosta que o chamem de intelectual e muito menos de pensador. Já publicou uma dezena de livros; o último, Biblioteca, tem prefácio do nunca assaz reverenciado Eduardo Lourenço, e o próximo, de poesia, sai em outubro. 

Motoristas de táxi (“criaturas reacionárias e intratáveis”), réveillons, adiposidade, calvície, empatia, vizinhos ruidosos, a inutilidade dos cursos de Direito, maridos cornos e mulherengos, olheiras, serviço militar obrigatório, os pentelhos de palestras, exercícios físicos, rejeição amorosa, discotecas, celibato, sites de relacionamento, macho alfa, dimensão peniana, Kama Sutra, férias de verão – é assaz variado, como convém à espécie, o seu cardápio de assuntos e fixações. E sem pejo o strip-tease com que nos brinda o autor: gordo assumido, sósia físico (e inspirado obituarista) do ator Philip Seymour Hoffman, cético, nostálgico, pessimista, misantropo, idiossincrático, incomodado com a pouca macheza de sua voz e neuroticamente avesso à falsa alegria de festas e celebrações. Similar amálgama de Woody Allen com Hundri Bakshi (o personagem de Peter Sellers em Um Convidado Bem Trapalhão) e o Alvaro Campos do Poema em Linha Reta nunca vi. 

Como fui criado ouvindo de meu pai palavras (aldrabão, zarelho, azêmola) estranhas ao português aqui falado, um dos maiores prazeres que as crônicas de Mexia me proporcionaram foi topar com vocábulos lusitanos da gema como laracha, bacoca, magala, pimba, catrefa, gatafunho, drunfado, roscovância, e frases e expressões à primeira vista enigmáticas, como “só alguns putos causam chavascal”, “raspar salitre com uma colher de sopa”, entre outras que me obrigaram a constantes consultas não mais ao analógico dicionário de Cândido Figueiredo, herdado por minha mãe e até hoje sob sua guarda, mas ao eletrônico Priberam.

Tal esforço é plenamente recompensado pelo prazer que o estranhamento em face do léxico, da gramática e da sintaxe do português castiço sempre me dá. Acho que os portugueses falam e escrevem melhor – ou, no mínimo, com mais rigor e correção – do que nós e os invejo por isso. Ainda não me habituei à preferência deles pelo pretérito imperfeito (“Gostava de ter aprendido”) em orações em que sempre usamos o futuro do pretérito (“Gostaria...”), mas até esse idiotismo reforça em mim a convicção, compartilhada por Mexia e brasileiros como Millôr Fernandes, Ferreira Gullar, Ariano Suassuna e João Ubaldo, de que o Acordo Ortográfico não fazia a menor falta.

Cheio de cismas, Mexia levou 40 anos para superar o medo de ficar sozinho, sua maior inquietação ao alcançar a idade de Cristo. Aos 43, admitiu: “Ficamos sozinhos quando somos exigentes. Ficamos sozinhos quando não mentimos. Ficamos sozinhos quando defendemos nossas convicções. É um preço que estou disposto a pagar. E há, digamos, dez pessoas de quem gosto, dez pessoas sobre quem não me enganei, e dez pessoas é um mundo”. 

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