Tente, por um momento, não lembrar da viagem narrativa da peça Luis Antonio Gabriela, sobre a história de uma travesti, ou o passeio ao bairro de Poema Suspenso Para Uma Cidade em Queda. Suas histórias recheadas de detalhes privados e sensações não cabem na turbulência da Cracolândia, onde a Cia Mungunzá ocupa com seu Teatro de Contêiner, há pouco mais de um ano. Em cartaz no Sesc 24 de Maio, o grupo comemora os dez anos com certa desesperança na força das palavras. Em Epidemia Prata, a primeira referência é a jovens e crianças que se pintam de prateado - rosto, pescoço, braços e pernas - e fazem malabares nos faróis e cruzamentos da cidade. A imagem que despontou chocante para a companhia mostrava parte do funcionamento da miséria atual, conta a atriz Verônica Gentilin. “Eles nos contaram que se pintavam para serem vistos, já que, por pedir esmolas, esses meninos já estavam ficando invisíveis.”+ Cia Mungunzá quer revitalizar a Luz com o Teatro de Contêiner
A mistura de creme hidrante ou água com o pó metálico que, como um folclore urbano, concede nova identidade social aos jovens, preencheu o ar do Teatro de Contêiner com seu odor químico. Desde novembro de 2016, a Mungunzá habita um antigo estacionamento na Rua dos Gusmões, na Luz, e lá renovou a ideia de ocupações artísticas em espaços públicos, tendo como entorno uma das regiões mais precárias e alvo da ação da polícia, a Cracolândia. Ao instalar dez contêineres que abrigam as instalações do teatro, o grupo daria início - ainda sem imaginar - no que se tornaria Epidemia Prata. “Durante a intervenção da polícia na Cracolândia, sediamos alguns debates sobre política de drogas e acolhimento”, conta Verônica. “Quando uma usuária conhecida no fluxo como Camila entrou no teatro e passou a ‘incomodar’ o evento.” O absurdo da cena com a ala de intelectuais propondo soluções para a Cracolândia enquanto Camila falava alto e subia nas cadeiras tornou-se principal exclamação da peça. + Teatro de Contêiner completa um ano e abre via alternativa de gestão de espaço cultural “A cena é trazida não como forma de retratar o momento, mas para deflagrar o quanto os discursos têm falhado. O fato de nos reunirmos em um debate para pensar propostas não mudava a realidade imediata da Camila como usuária”, afirma a atriz. Trazer personagens em cena, narrando suas próprias experiências, se mostrou inviável quando o grupo passou a receber notícias recorrentes sobre a morte de usuários. “Ao olhar para o outro, a partir de seu estigma, petrificamos as pessoas, como no mito da Medusa”, completa ela.
Meninos prateados
Com direção de Georgette Fadel, a peça, então, deixa de se ocupar sobre o juízo da injustiça para conceber imagens que representam dureza e imobilidade. “Acredito que vivemos no auge do endurecimento nas relações sociais. A palavra criança traz a ideia de criar, assim como esperança, de esperar. Esses jovens deveriam estar sendo protegidos e não tentando sobreviver, ainda mais pintados de prata, todos os dias.” Além do pó prateado, outros elementos incorporam a ideia do concreto imbatível. Em uma cena, o elenco pinta-se da sujeira metálica ao esfregar moedas no corpo. Instrumentos musicais da ala dos metais, como tubas e trompetes, ativados por isqueiros vão certeiros no imaginário sobre os usuários de crack. “Não queremos ficar dizendo o que as pessoas são”, afirma Georgette. “O mundo está pulverizado de opiniões que se espalham, cada vez mais sem raiz. A abordagem para esta peça foi necessária, porque o discurso tem se esvaziado. Aqui, queremos seduzir com imagens.”EPIDEMIA PRATA Sesc 24 de Maio. R. 24 de Maio, 109. Tel.: 3350-6300. 4ª, 5ª e 6ª, às 21h. R$ 40 / R$ 20. Até 15/6.