Vencedor do Man Booker Prize chega ao Brasil em 2018


'Lincoln no Limbo', de George Saunders, surpreendeu em prêmio britânico

Por Paulo Nogueira

Há cerca de um mês, na véspera do anúncio do Booker Prize 2017, o Guardian projetou o perfil estatístico do vencedor daquele que, embora restrito ao idioma inglês, para alguns (entre os quais talvez eu me inclua de fininho) é hoje um prêmio literário com mais pedigree que o próprio Nobel. 

George Saunders, autor de'Lincoln in the Bardo', vencedor do Man Booker Prize 2017 Foto: Mary Turner/Reuters

Nos 47 anos do Booker, do retrato falado do ganhador assomava um quarentão britânico, que estudara em escolas particulares, autor de pelo menos seis títulos. O livro premiado teria pouco menos de 400 páginas e se desenrolaria antes da década de 1950, com um protagonista masculino. Entre os vencedores, 31 eram homens e 16, mulheres. Dez deles eram negros, asiáticos ou de minorias étnicas.

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+++ Paul Auster é o favorito ao Man Booker Prize com o monumental '4321' 

Nos últimos tempos, porém, esse padrão – que entronizou colunáveis das letras como A. S. Byatt, John Banville, Iris Murdoch, J. M. Coetzee, Nadine Gordmer, Julian Barnes, Ian McEwan e Kazuo Ishiguro – começou a mudar. Em 2013, a Fundação Booker anunciou sua “expansão global”, admitindo qualquer ficção em inglês, desde que editada no Reino Unido. No ano passado, o felizardo foi o americano Paul Beatty, com O Vendido. Este ano, entre os seis finalistas metade era dos EUA: Paul Auster, Emily Fridlund e George Saunders. 

A vitória do azarão Saunders foi o tiro de misericórdia nas barbadas para o Booker: americano, ele tem 59 anos e concorreu com seu primeiro romance, Lincoln in the Bard (Lincoln no Limbo na tradução brasileira de Jorio Dauster, prevista para março de 2018). Também no Guardian, há duas semanas o romancista inglês Tibor Fischer chorou patrioticamente as pitangas, resmungando que os prêmios literários dos EUA não contemplam britânicos. 

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+++ Escritora indiana Arundhati Roy retorna à literatura 20 anos depois de ser premiada

A semente do romance – o presidente Abraham Lincoln abraçando seu filho Willie, morto aos 11 anos de febre tifoide – acossou Saunders durante 20 anos. Em 2012, ele peitou seus demônios e pôs mãos à obra, fazendo de conta que Willie vegetava no bardo, uma espécie de limbo para os budistas tibetanos. Reza a lenda que Lincoln se esgueirava de madrugada para o túmulo do filho, carpindo sobre ele num lamento elegíaco. Esta imagem, real ou mítica, lembrou ao autor a Pietà de Michelangelo.

É difícil isolar George Saunders da sua biografia, que inclui precariedade e pobreza. Natural de Amarillo, Texas, nasceu num bairro operário, e foi o primeiro da família a terminar o ensino médio. Formou-se em engenharia geofísica e é professor de Escrita Criativa em Syracuse, NY. Estreou na literatura tardiamente, aos 39 anos, com uma coletânea de contos – seu gênero exclusivo até o romance Lincoln no Limbo. As principais influências de Saunders são Hemingway, Raymond Carver e Donald Barthelme (mas sem a pose ou as obscuridades maneiristas deste último). Saunders é tietado pela maioria dos autores contemporâneos badalados, mas, ao contrário de por exemplo um James Joyce, não é um escritor de escritores. 

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Tudo bem: o primeiro contato com o universo literário de Saunders desconcerta – o que é quase sempre bom. Reina em seus contos um hiper-realismo meio que alucinatório, com tramas ao mesmo tempo destrambelhadas e naturalistas, alicerçadas num torvelinho textual febril, esbaforido. Novidade absoluta. Como disse Fernando Pessoa (sim, o próprio) em seu slogan para um anúncio da Coca-Cola: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” 

No Brasil já está editado o fabuloso Dez de Dezembro, o mais recente volume de contos do autor, publicado nos EUA em 2013. Pulsam aqui todos os temas de Saunders: o “pathos” das classes médias baixas, a obediência à autoridade (a despeito das consequências morais), a ansiedade mórbida por ser aceito a qualquer preço, as ambições neuróticas e as falhas burlescas mas sem remissão. Enfim, os íncubos e súcubos do sonho americano, tudo banhado por uma estranha e reticente esperança. O absurdo sistêmico que impregna essas histórias recorda também Kurt Vonnegut., mas sem os códigos da ficção científica, e com compaixão e doçura, ainda que sarcásticas.

Daí que estes dez contos estejam todos imbuídos de lusco-fuscos prismáticos: são agridoces e tragicômicos, sempre sensíveis à injustiça (seja do destino, seja da sociedade), mas nunca doutrinários ou unidimensionais. No primeiro, No Colo da Vitória, até o odioso raptor russo – o indefectível vilão do imaginário ianque – recebe seu quinhão de empatia. Em Al Roosten (talvez o meu predileto) a acuidade psicológica é quase excruciante, desvendando toda a ambivalência de que a alma humana é capaz, com a maior cara de pau. Igualmente de cair o queixo é o distópico Fuga da Cabeça da Aranha, no qual um jovem presidiário é injetado com uma gama de soros que induzem sucessivamente a luxúria, a eloquência e o desespero (“imagine a pior coisa que você já sentiu, e multiplique por dez”). 

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Saunders não entrega o ouro sobre quanto tempo leva para escrever um conto: “Pode ser um dia, ou 15 anos.” “Um dia” eu tomo a liberdade de duvidar, ou de aceitar apenas como licença ou charminho poéticos. Uma retórica assim dá um trabalhão. Saunders é sobretudo um virtuose da regência de vozes narrativas – sejam crianças, adolescentes ou idosos, loucos ou geômetras. Registra incomparavelmente o monólogo interior taquigráfico do cotidiano dos personagens, em geral com o foco na terceira pessoa do singular, mas bombeando doses cavalares de discurso indireto livre. 

Cada conto dele é um recital de vozes polifônicas, mas com um contraponto atonal – e semeando solistas, quase nunca um coro. Já no primeiro parágrafo embarcamos num carrossel vertiginoso de pontos de vista, todos irrefutavelmente convincentes, mas com textura de miragens tridimensionais. Engraçado: ele “soa” cubista. O vocabulário é ilusoriamente simples (mas com a precisão de um agrimensor), sem embaixadinhas estilísticas (e muito menos buquês de adjetivos), com surtos de coloquialismos escolhidos a dedo, que caem como uma luva (ora de pelica, ora de boxe) – tudo esplendidamente traduzido por José Geraldo Couto. 

Moral da história? Eu diria que Dez de Dezembro é um lauto aperitivo enquanto Lincoln no Limbo não é servido no Brasil – se isto não fosse um sacrilégio filisteu. Afinal, desde quando uma iguaria estética pode se reduzir ao tira-gosto de outra?  *É autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Editora Intermeios) 

Há cerca de um mês, na véspera do anúncio do Booker Prize 2017, o Guardian projetou o perfil estatístico do vencedor daquele que, embora restrito ao idioma inglês, para alguns (entre os quais talvez eu me inclua de fininho) é hoje um prêmio literário com mais pedigree que o próprio Nobel. 

George Saunders, autor de'Lincoln in the Bardo', vencedor do Man Booker Prize 2017 Foto: Mary Turner/Reuters

Nos 47 anos do Booker, do retrato falado do ganhador assomava um quarentão britânico, que estudara em escolas particulares, autor de pelo menos seis títulos. O livro premiado teria pouco menos de 400 páginas e se desenrolaria antes da década de 1950, com um protagonista masculino. Entre os vencedores, 31 eram homens e 16, mulheres. Dez deles eram negros, asiáticos ou de minorias étnicas.

+++ Paul Auster é o favorito ao Man Booker Prize com o monumental '4321' 

Nos últimos tempos, porém, esse padrão – que entronizou colunáveis das letras como A. S. Byatt, John Banville, Iris Murdoch, J. M. Coetzee, Nadine Gordmer, Julian Barnes, Ian McEwan e Kazuo Ishiguro – começou a mudar. Em 2013, a Fundação Booker anunciou sua “expansão global”, admitindo qualquer ficção em inglês, desde que editada no Reino Unido. No ano passado, o felizardo foi o americano Paul Beatty, com O Vendido. Este ano, entre os seis finalistas metade era dos EUA: Paul Auster, Emily Fridlund e George Saunders. 

A vitória do azarão Saunders foi o tiro de misericórdia nas barbadas para o Booker: americano, ele tem 59 anos e concorreu com seu primeiro romance, Lincoln in the Bard (Lincoln no Limbo na tradução brasileira de Jorio Dauster, prevista para março de 2018). Também no Guardian, há duas semanas o romancista inglês Tibor Fischer chorou patrioticamente as pitangas, resmungando que os prêmios literários dos EUA não contemplam britânicos. 

+++ Escritora indiana Arundhati Roy retorna à literatura 20 anos depois de ser premiada

A semente do romance – o presidente Abraham Lincoln abraçando seu filho Willie, morto aos 11 anos de febre tifoide – acossou Saunders durante 20 anos. Em 2012, ele peitou seus demônios e pôs mãos à obra, fazendo de conta que Willie vegetava no bardo, uma espécie de limbo para os budistas tibetanos. Reza a lenda que Lincoln se esgueirava de madrugada para o túmulo do filho, carpindo sobre ele num lamento elegíaco. Esta imagem, real ou mítica, lembrou ao autor a Pietà de Michelangelo.

É difícil isolar George Saunders da sua biografia, que inclui precariedade e pobreza. Natural de Amarillo, Texas, nasceu num bairro operário, e foi o primeiro da família a terminar o ensino médio. Formou-se em engenharia geofísica e é professor de Escrita Criativa em Syracuse, NY. Estreou na literatura tardiamente, aos 39 anos, com uma coletânea de contos – seu gênero exclusivo até o romance Lincoln no Limbo. As principais influências de Saunders são Hemingway, Raymond Carver e Donald Barthelme (mas sem a pose ou as obscuridades maneiristas deste último). Saunders é tietado pela maioria dos autores contemporâneos badalados, mas, ao contrário de por exemplo um James Joyce, não é um escritor de escritores. 

Tudo bem: o primeiro contato com o universo literário de Saunders desconcerta – o que é quase sempre bom. Reina em seus contos um hiper-realismo meio que alucinatório, com tramas ao mesmo tempo destrambelhadas e naturalistas, alicerçadas num torvelinho textual febril, esbaforido. Novidade absoluta. Como disse Fernando Pessoa (sim, o próprio) em seu slogan para um anúncio da Coca-Cola: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” 

No Brasil já está editado o fabuloso Dez de Dezembro, o mais recente volume de contos do autor, publicado nos EUA em 2013. Pulsam aqui todos os temas de Saunders: o “pathos” das classes médias baixas, a obediência à autoridade (a despeito das consequências morais), a ansiedade mórbida por ser aceito a qualquer preço, as ambições neuróticas e as falhas burlescas mas sem remissão. Enfim, os íncubos e súcubos do sonho americano, tudo banhado por uma estranha e reticente esperança. O absurdo sistêmico que impregna essas histórias recorda também Kurt Vonnegut., mas sem os códigos da ficção científica, e com compaixão e doçura, ainda que sarcásticas.

Daí que estes dez contos estejam todos imbuídos de lusco-fuscos prismáticos: são agridoces e tragicômicos, sempre sensíveis à injustiça (seja do destino, seja da sociedade), mas nunca doutrinários ou unidimensionais. No primeiro, No Colo da Vitória, até o odioso raptor russo – o indefectível vilão do imaginário ianque – recebe seu quinhão de empatia. Em Al Roosten (talvez o meu predileto) a acuidade psicológica é quase excruciante, desvendando toda a ambivalência de que a alma humana é capaz, com a maior cara de pau. Igualmente de cair o queixo é o distópico Fuga da Cabeça da Aranha, no qual um jovem presidiário é injetado com uma gama de soros que induzem sucessivamente a luxúria, a eloquência e o desespero (“imagine a pior coisa que você já sentiu, e multiplique por dez”). 

Saunders não entrega o ouro sobre quanto tempo leva para escrever um conto: “Pode ser um dia, ou 15 anos.” “Um dia” eu tomo a liberdade de duvidar, ou de aceitar apenas como licença ou charminho poéticos. Uma retórica assim dá um trabalhão. Saunders é sobretudo um virtuose da regência de vozes narrativas – sejam crianças, adolescentes ou idosos, loucos ou geômetras. Registra incomparavelmente o monólogo interior taquigráfico do cotidiano dos personagens, em geral com o foco na terceira pessoa do singular, mas bombeando doses cavalares de discurso indireto livre. 

Cada conto dele é um recital de vozes polifônicas, mas com um contraponto atonal – e semeando solistas, quase nunca um coro. Já no primeiro parágrafo embarcamos num carrossel vertiginoso de pontos de vista, todos irrefutavelmente convincentes, mas com textura de miragens tridimensionais. Engraçado: ele “soa” cubista. O vocabulário é ilusoriamente simples (mas com a precisão de um agrimensor), sem embaixadinhas estilísticas (e muito menos buquês de adjetivos), com surtos de coloquialismos escolhidos a dedo, que caem como uma luva (ora de pelica, ora de boxe) – tudo esplendidamente traduzido por José Geraldo Couto. 

Moral da história? Eu diria que Dez de Dezembro é um lauto aperitivo enquanto Lincoln no Limbo não é servido no Brasil – se isto não fosse um sacrilégio filisteu. Afinal, desde quando uma iguaria estética pode se reduzir ao tira-gosto de outra?  *É autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Editora Intermeios) 

Há cerca de um mês, na véspera do anúncio do Booker Prize 2017, o Guardian projetou o perfil estatístico do vencedor daquele que, embora restrito ao idioma inglês, para alguns (entre os quais talvez eu me inclua de fininho) é hoje um prêmio literário com mais pedigree que o próprio Nobel. 

George Saunders, autor de'Lincoln in the Bardo', vencedor do Man Booker Prize 2017 Foto: Mary Turner/Reuters

Nos 47 anos do Booker, do retrato falado do ganhador assomava um quarentão britânico, que estudara em escolas particulares, autor de pelo menos seis títulos. O livro premiado teria pouco menos de 400 páginas e se desenrolaria antes da década de 1950, com um protagonista masculino. Entre os vencedores, 31 eram homens e 16, mulheres. Dez deles eram negros, asiáticos ou de minorias étnicas.

+++ Paul Auster é o favorito ao Man Booker Prize com o monumental '4321' 

Nos últimos tempos, porém, esse padrão – que entronizou colunáveis das letras como A. S. Byatt, John Banville, Iris Murdoch, J. M. Coetzee, Nadine Gordmer, Julian Barnes, Ian McEwan e Kazuo Ishiguro – começou a mudar. Em 2013, a Fundação Booker anunciou sua “expansão global”, admitindo qualquer ficção em inglês, desde que editada no Reino Unido. No ano passado, o felizardo foi o americano Paul Beatty, com O Vendido. Este ano, entre os seis finalistas metade era dos EUA: Paul Auster, Emily Fridlund e George Saunders. 

A vitória do azarão Saunders foi o tiro de misericórdia nas barbadas para o Booker: americano, ele tem 59 anos e concorreu com seu primeiro romance, Lincoln in the Bard (Lincoln no Limbo na tradução brasileira de Jorio Dauster, prevista para março de 2018). Também no Guardian, há duas semanas o romancista inglês Tibor Fischer chorou patrioticamente as pitangas, resmungando que os prêmios literários dos EUA não contemplam britânicos. 

+++ Escritora indiana Arundhati Roy retorna à literatura 20 anos depois de ser premiada

A semente do romance – o presidente Abraham Lincoln abraçando seu filho Willie, morto aos 11 anos de febre tifoide – acossou Saunders durante 20 anos. Em 2012, ele peitou seus demônios e pôs mãos à obra, fazendo de conta que Willie vegetava no bardo, uma espécie de limbo para os budistas tibetanos. Reza a lenda que Lincoln se esgueirava de madrugada para o túmulo do filho, carpindo sobre ele num lamento elegíaco. Esta imagem, real ou mítica, lembrou ao autor a Pietà de Michelangelo.

É difícil isolar George Saunders da sua biografia, que inclui precariedade e pobreza. Natural de Amarillo, Texas, nasceu num bairro operário, e foi o primeiro da família a terminar o ensino médio. Formou-se em engenharia geofísica e é professor de Escrita Criativa em Syracuse, NY. Estreou na literatura tardiamente, aos 39 anos, com uma coletânea de contos – seu gênero exclusivo até o romance Lincoln no Limbo. As principais influências de Saunders são Hemingway, Raymond Carver e Donald Barthelme (mas sem a pose ou as obscuridades maneiristas deste último). Saunders é tietado pela maioria dos autores contemporâneos badalados, mas, ao contrário de por exemplo um James Joyce, não é um escritor de escritores. 

Tudo bem: o primeiro contato com o universo literário de Saunders desconcerta – o que é quase sempre bom. Reina em seus contos um hiper-realismo meio que alucinatório, com tramas ao mesmo tempo destrambelhadas e naturalistas, alicerçadas num torvelinho textual febril, esbaforido. Novidade absoluta. Como disse Fernando Pessoa (sim, o próprio) em seu slogan para um anúncio da Coca-Cola: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” 

No Brasil já está editado o fabuloso Dez de Dezembro, o mais recente volume de contos do autor, publicado nos EUA em 2013. Pulsam aqui todos os temas de Saunders: o “pathos” das classes médias baixas, a obediência à autoridade (a despeito das consequências morais), a ansiedade mórbida por ser aceito a qualquer preço, as ambições neuróticas e as falhas burlescas mas sem remissão. Enfim, os íncubos e súcubos do sonho americano, tudo banhado por uma estranha e reticente esperança. O absurdo sistêmico que impregna essas histórias recorda também Kurt Vonnegut., mas sem os códigos da ficção científica, e com compaixão e doçura, ainda que sarcásticas.

Daí que estes dez contos estejam todos imbuídos de lusco-fuscos prismáticos: são agridoces e tragicômicos, sempre sensíveis à injustiça (seja do destino, seja da sociedade), mas nunca doutrinários ou unidimensionais. No primeiro, No Colo da Vitória, até o odioso raptor russo – o indefectível vilão do imaginário ianque – recebe seu quinhão de empatia. Em Al Roosten (talvez o meu predileto) a acuidade psicológica é quase excruciante, desvendando toda a ambivalência de que a alma humana é capaz, com a maior cara de pau. Igualmente de cair o queixo é o distópico Fuga da Cabeça da Aranha, no qual um jovem presidiário é injetado com uma gama de soros que induzem sucessivamente a luxúria, a eloquência e o desespero (“imagine a pior coisa que você já sentiu, e multiplique por dez”). 

Saunders não entrega o ouro sobre quanto tempo leva para escrever um conto: “Pode ser um dia, ou 15 anos.” “Um dia” eu tomo a liberdade de duvidar, ou de aceitar apenas como licença ou charminho poéticos. Uma retórica assim dá um trabalhão. Saunders é sobretudo um virtuose da regência de vozes narrativas – sejam crianças, adolescentes ou idosos, loucos ou geômetras. Registra incomparavelmente o monólogo interior taquigráfico do cotidiano dos personagens, em geral com o foco na terceira pessoa do singular, mas bombeando doses cavalares de discurso indireto livre. 

Cada conto dele é um recital de vozes polifônicas, mas com um contraponto atonal – e semeando solistas, quase nunca um coro. Já no primeiro parágrafo embarcamos num carrossel vertiginoso de pontos de vista, todos irrefutavelmente convincentes, mas com textura de miragens tridimensionais. Engraçado: ele “soa” cubista. O vocabulário é ilusoriamente simples (mas com a precisão de um agrimensor), sem embaixadinhas estilísticas (e muito menos buquês de adjetivos), com surtos de coloquialismos escolhidos a dedo, que caem como uma luva (ora de pelica, ora de boxe) – tudo esplendidamente traduzido por José Geraldo Couto. 

Moral da história? Eu diria que Dez de Dezembro é um lauto aperitivo enquanto Lincoln no Limbo não é servido no Brasil – se isto não fosse um sacrilégio filisteu. Afinal, desde quando uma iguaria estética pode se reduzir ao tira-gosto de outra?  *É autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Editora Intermeios) 

Há cerca de um mês, na véspera do anúncio do Booker Prize 2017, o Guardian projetou o perfil estatístico do vencedor daquele que, embora restrito ao idioma inglês, para alguns (entre os quais talvez eu me inclua de fininho) é hoje um prêmio literário com mais pedigree que o próprio Nobel. 

George Saunders, autor de'Lincoln in the Bardo', vencedor do Man Booker Prize 2017 Foto: Mary Turner/Reuters

Nos 47 anos do Booker, do retrato falado do ganhador assomava um quarentão britânico, que estudara em escolas particulares, autor de pelo menos seis títulos. O livro premiado teria pouco menos de 400 páginas e se desenrolaria antes da década de 1950, com um protagonista masculino. Entre os vencedores, 31 eram homens e 16, mulheres. Dez deles eram negros, asiáticos ou de minorias étnicas.

+++ Paul Auster é o favorito ao Man Booker Prize com o monumental '4321' 

Nos últimos tempos, porém, esse padrão – que entronizou colunáveis das letras como A. S. Byatt, John Banville, Iris Murdoch, J. M. Coetzee, Nadine Gordmer, Julian Barnes, Ian McEwan e Kazuo Ishiguro – começou a mudar. Em 2013, a Fundação Booker anunciou sua “expansão global”, admitindo qualquer ficção em inglês, desde que editada no Reino Unido. No ano passado, o felizardo foi o americano Paul Beatty, com O Vendido. Este ano, entre os seis finalistas metade era dos EUA: Paul Auster, Emily Fridlund e George Saunders. 

A vitória do azarão Saunders foi o tiro de misericórdia nas barbadas para o Booker: americano, ele tem 59 anos e concorreu com seu primeiro romance, Lincoln in the Bard (Lincoln no Limbo na tradução brasileira de Jorio Dauster, prevista para março de 2018). Também no Guardian, há duas semanas o romancista inglês Tibor Fischer chorou patrioticamente as pitangas, resmungando que os prêmios literários dos EUA não contemplam britânicos. 

+++ Escritora indiana Arundhati Roy retorna à literatura 20 anos depois de ser premiada

A semente do romance – o presidente Abraham Lincoln abraçando seu filho Willie, morto aos 11 anos de febre tifoide – acossou Saunders durante 20 anos. Em 2012, ele peitou seus demônios e pôs mãos à obra, fazendo de conta que Willie vegetava no bardo, uma espécie de limbo para os budistas tibetanos. Reza a lenda que Lincoln se esgueirava de madrugada para o túmulo do filho, carpindo sobre ele num lamento elegíaco. Esta imagem, real ou mítica, lembrou ao autor a Pietà de Michelangelo.

É difícil isolar George Saunders da sua biografia, que inclui precariedade e pobreza. Natural de Amarillo, Texas, nasceu num bairro operário, e foi o primeiro da família a terminar o ensino médio. Formou-se em engenharia geofísica e é professor de Escrita Criativa em Syracuse, NY. Estreou na literatura tardiamente, aos 39 anos, com uma coletânea de contos – seu gênero exclusivo até o romance Lincoln no Limbo. As principais influências de Saunders são Hemingway, Raymond Carver e Donald Barthelme (mas sem a pose ou as obscuridades maneiristas deste último). Saunders é tietado pela maioria dos autores contemporâneos badalados, mas, ao contrário de por exemplo um James Joyce, não é um escritor de escritores. 

Tudo bem: o primeiro contato com o universo literário de Saunders desconcerta – o que é quase sempre bom. Reina em seus contos um hiper-realismo meio que alucinatório, com tramas ao mesmo tempo destrambelhadas e naturalistas, alicerçadas num torvelinho textual febril, esbaforido. Novidade absoluta. Como disse Fernando Pessoa (sim, o próprio) em seu slogan para um anúncio da Coca-Cola: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” 

No Brasil já está editado o fabuloso Dez de Dezembro, o mais recente volume de contos do autor, publicado nos EUA em 2013. Pulsam aqui todos os temas de Saunders: o “pathos” das classes médias baixas, a obediência à autoridade (a despeito das consequências morais), a ansiedade mórbida por ser aceito a qualquer preço, as ambições neuróticas e as falhas burlescas mas sem remissão. Enfim, os íncubos e súcubos do sonho americano, tudo banhado por uma estranha e reticente esperança. O absurdo sistêmico que impregna essas histórias recorda também Kurt Vonnegut., mas sem os códigos da ficção científica, e com compaixão e doçura, ainda que sarcásticas.

Daí que estes dez contos estejam todos imbuídos de lusco-fuscos prismáticos: são agridoces e tragicômicos, sempre sensíveis à injustiça (seja do destino, seja da sociedade), mas nunca doutrinários ou unidimensionais. No primeiro, No Colo da Vitória, até o odioso raptor russo – o indefectível vilão do imaginário ianque – recebe seu quinhão de empatia. Em Al Roosten (talvez o meu predileto) a acuidade psicológica é quase excruciante, desvendando toda a ambivalência de que a alma humana é capaz, com a maior cara de pau. Igualmente de cair o queixo é o distópico Fuga da Cabeça da Aranha, no qual um jovem presidiário é injetado com uma gama de soros que induzem sucessivamente a luxúria, a eloquência e o desespero (“imagine a pior coisa que você já sentiu, e multiplique por dez”). 

Saunders não entrega o ouro sobre quanto tempo leva para escrever um conto: “Pode ser um dia, ou 15 anos.” “Um dia” eu tomo a liberdade de duvidar, ou de aceitar apenas como licença ou charminho poéticos. Uma retórica assim dá um trabalhão. Saunders é sobretudo um virtuose da regência de vozes narrativas – sejam crianças, adolescentes ou idosos, loucos ou geômetras. Registra incomparavelmente o monólogo interior taquigráfico do cotidiano dos personagens, em geral com o foco na terceira pessoa do singular, mas bombeando doses cavalares de discurso indireto livre. 

Cada conto dele é um recital de vozes polifônicas, mas com um contraponto atonal – e semeando solistas, quase nunca um coro. Já no primeiro parágrafo embarcamos num carrossel vertiginoso de pontos de vista, todos irrefutavelmente convincentes, mas com textura de miragens tridimensionais. Engraçado: ele “soa” cubista. O vocabulário é ilusoriamente simples (mas com a precisão de um agrimensor), sem embaixadinhas estilísticas (e muito menos buquês de adjetivos), com surtos de coloquialismos escolhidos a dedo, que caem como uma luva (ora de pelica, ora de boxe) – tudo esplendidamente traduzido por José Geraldo Couto. 

Moral da história? Eu diria que Dez de Dezembro é um lauto aperitivo enquanto Lincoln no Limbo não é servido no Brasil – se isto não fosse um sacrilégio filisteu. Afinal, desde quando uma iguaria estética pode se reduzir ao tira-gosto de outra?  *É autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Editora Intermeios) 

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