Economia e políticas públicas

Opinião|"Debandada" rasga a fantasia liberal


Com um auxiliar atrás do outro abandonando o barco, Paulo Guedes assiste o governo Bolsonaro ser tragado pela tentação do populismo fiscal.

Por Fernando Dantas

Economia política, na acepção moderna com que os economistas usam a expressão, é, numa definição muito simplificada e jornalística, a investigação sobre como determinados tipos de conjuntura e arcabouço políticos levam ou não à adoção de determinadas políticas econômicas.

Nesse sentido, a economia política brasileira jamais foi favorável à adoção de políticas econômicas liberais. As instituições no Brasil são profundamente iliberais e, no mais das vezes, o que determina o sucesso na vida de um cidadão são coisas como berço e acesso a privilégios cartoriais, proteção, subsídios, rede de contatos sociais etc.

Toda essa teia de privilégios à disposição dos mais ricos e conectados é defendida com unhas e dentes pelas diversas categorias, corporações e outros grupos sociais que delas se beneficiam.

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No período pós-redemocratização, o dinheiro público começou a fluir também para os pobres. Porém, com nobres exceções, como o Bolsa-Família, esses benefícios são mal focalizados, indo para quem precisa e quem não precisa (ou indo mais do que o necessário para quem precisa), e, no seu conjunto, são insustentáveis do ponto de vista fiscal.

Numa democracia jovem como a brasileira, as pessoas, grupos e instituições que defendem o interesse difuso são muitos mais recentes e frágeis do que os lobbies e interesses especiais, com suas raízes seculares. É difícil também o interesse difuso se sobrepor à exploração populista do dinheiro público pelos políticos.

Ao contrário do que costuma dizer o ministro da Economia, Paulo Guedes, a razão pela qual o Brasil, 35 anos após a redemocratização, é um país economicamente estagnado, violento, desigual e com um arcabouço institucional antidesenvolvimento não foram os cinco mandatos e meio de presidentes de esquerda, centro-esquerda, socialdemocratas ou seja qual for o rótulo.

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Os principais quadros do PT e do PSDB foram de esquerda no passado, e boa parte do petismo ainda é. Mas o fato é que houve uma evolução de mentalidades, e, entre 1994 e 2005, o Executivo nacional governou o Brasil com uma agenda moderna e razoavelmente liberal - houve muitos erros, claro, mas isso não quer dizer que a direção geral não estivesse correta.

O País não avançou mais nesse período porque a resistência à mudança é gigantesca.

Guedes e sua trupe liberal, ora em debandada, chegaram ao comando da política econômica em 2019 vendendo a fantasia de que liberalizar o arcabouço institucional do Brasil era uma questão apenas de vontade política, que faltara a tucanos e petistas no período de 1994 a 2015, em que essa era a agenda do governo.

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Não vale, portanto, reclamar agora de resistências do establishment às políticas liberais, como vêm fazendo Guedes e seus auxiliares que abandonaram o barco.

Mas de fato Guedes sofreu, adicionalmente à dificuldade intransponível da tarefa a que se propôs, um violento golpe de azar do destino: a Covid-19.

A pandemia representou um choque monumental de economia política antiliberal no mundo inteiro. De uma hora para outra, a importância dos sistemas públicos de saúde e da coordenação do Estado saltou na cara dos cidadãos apavorados. Trilhões em moeda forte foram injetados ou gastos pelas autoridades econômicas das principais potências ocidentais, inclusive por aqueles países percebidos como exemplos de austeridade, como a Alemanha.

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Uma análise mais refinada revela que a reação global à pandemia não deveria indispor as pessoas em relação à agenda liberal centrista dos países mais bem-sucedidos, que muitas vezes se combina com socialdemocracia na distribuição dos resultados.

A Nova Zelândia, por exemplo, um dos casos de maior sucesso no combate à pandemia, está, como a Austrália, na vanguarda da regulação liberal da economia de mercado. Coreia, Japão e Taiwan saíram-se relativamente muito bem na pandemia, sem terem um Estado plenipotenciário e sufocante como a China.

Entretanto, na forma rasteira como os grandes debates globais chegam em países da periferia intelectual, como o Brasil, restam poucas dúvidas de que a leitura da pandemia e a economia política por ela engendrada vão empurrar o País ainda mais na direção iliberal, heterodoxa e irracional que pautou a política pública por longos períodos nas últimas décadas.

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Concretamente, o auxílio emergencial, programa social lançado de improviso, com custo gigantesco e uma grande parcela dos benefícios indo para quem não precisa (por exemplo, jovens de classe média alta com grau universitário que não trabalham), mudou a cabeça do presidente Jair Bolsonaro. Ou talvez tenha "restaurado" a sua cabeça.

Como se sabe, Bolsonaro nunca foi liberal, muito pelo contrário. Na sua longa carreira de político do baixo clero no Congresso Nacional, ele sempre lutou para dar benefícios com dinheiro público para as suas clientelas corporativas, militares e policiais.

Guedes, porém, teria "convertido" Bolsonaro ao liberalismo. Mas agora o presidente sentiu o gosto de torrar dinheiro público e inflar sua popularidade junto às camadas mais pobres de forma insustentável, o mesmo tônico que deliciou tantos presidentes da história latino-americana recente, como Lula, Chávez, Kirchner etc.

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Insuflado pelos militares no seu governo, saudosos do "Brasil grande", e por ministros como Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, e Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, Bolsonaro também quer ser um presidente "tocador de obras", o que sem dúvida é do gosto popular.

Há, claro, um teto de gastos no meio do caminho, mas o sistema político e incontáveis formadores de opinião estão neste momento em meio a um intenso brainstorm sobre formas de burlar ou derrubar esse empecilho a mais uma rodada populista de felicidade bancada por dinheiro público escasso.

Para piorar, o teto tem sérios problemas de desenho - como a impossibilidade de acionar os gatilhos de contenção de gasto - que, de fato, sugeririam que uma intervenção cirúrgica poderia ajudar.

Mas não é esse, definitivamente, o "espírito da coisa" entre a maior parte dos adversários do teto.

A ideia é que o Brasil emite um moeda soberana e, portanto, não há limites para os gastos do governo, ainda mais na situação de hiperliquidez global, que veio para ficar por um período a perder de vista. Qualquer problema, taxam-se os ricos, o que deve ser suficiente para segurar qualquer barra fiscal.

O mercado já dá sinais discretos de desconforto. O real se desvaloriza de novo e a inclinação da curva de juros no Brasil vai aumentando, enquanto o governo encurta prazos da dívida pública. Comparado a alguns dos seus pares, o Brasil tem taxas curtíssimas menores e taxas longas maiores.

Resta saber se Guedes vai topar ficar à frente indefinidamente da nova agenda nacional-populista de Jair Bolsonaro.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 12/8/2020, quarta-feira.

Economia política, na acepção moderna com que os economistas usam a expressão, é, numa definição muito simplificada e jornalística, a investigação sobre como determinados tipos de conjuntura e arcabouço políticos levam ou não à adoção de determinadas políticas econômicas.

Nesse sentido, a economia política brasileira jamais foi favorável à adoção de políticas econômicas liberais. As instituições no Brasil são profundamente iliberais e, no mais das vezes, o que determina o sucesso na vida de um cidadão são coisas como berço e acesso a privilégios cartoriais, proteção, subsídios, rede de contatos sociais etc.

Toda essa teia de privilégios à disposição dos mais ricos e conectados é defendida com unhas e dentes pelas diversas categorias, corporações e outros grupos sociais que delas se beneficiam.

No período pós-redemocratização, o dinheiro público começou a fluir também para os pobres. Porém, com nobres exceções, como o Bolsa-Família, esses benefícios são mal focalizados, indo para quem precisa e quem não precisa (ou indo mais do que o necessário para quem precisa), e, no seu conjunto, são insustentáveis do ponto de vista fiscal.

Numa democracia jovem como a brasileira, as pessoas, grupos e instituições que defendem o interesse difuso são muitos mais recentes e frágeis do que os lobbies e interesses especiais, com suas raízes seculares. É difícil também o interesse difuso se sobrepor à exploração populista do dinheiro público pelos políticos.

Ao contrário do que costuma dizer o ministro da Economia, Paulo Guedes, a razão pela qual o Brasil, 35 anos após a redemocratização, é um país economicamente estagnado, violento, desigual e com um arcabouço institucional antidesenvolvimento não foram os cinco mandatos e meio de presidentes de esquerda, centro-esquerda, socialdemocratas ou seja qual for o rótulo.

Os principais quadros do PT e do PSDB foram de esquerda no passado, e boa parte do petismo ainda é. Mas o fato é que houve uma evolução de mentalidades, e, entre 1994 e 2005, o Executivo nacional governou o Brasil com uma agenda moderna e razoavelmente liberal - houve muitos erros, claro, mas isso não quer dizer que a direção geral não estivesse correta.

O País não avançou mais nesse período porque a resistência à mudança é gigantesca.

Guedes e sua trupe liberal, ora em debandada, chegaram ao comando da política econômica em 2019 vendendo a fantasia de que liberalizar o arcabouço institucional do Brasil era uma questão apenas de vontade política, que faltara a tucanos e petistas no período de 1994 a 2015, em que essa era a agenda do governo.

Não vale, portanto, reclamar agora de resistências do establishment às políticas liberais, como vêm fazendo Guedes e seus auxiliares que abandonaram o barco.

Mas de fato Guedes sofreu, adicionalmente à dificuldade intransponível da tarefa a que se propôs, um violento golpe de azar do destino: a Covid-19.

A pandemia representou um choque monumental de economia política antiliberal no mundo inteiro. De uma hora para outra, a importância dos sistemas públicos de saúde e da coordenação do Estado saltou na cara dos cidadãos apavorados. Trilhões em moeda forte foram injetados ou gastos pelas autoridades econômicas das principais potências ocidentais, inclusive por aqueles países percebidos como exemplos de austeridade, como a Alemanha.

Uma análise mais refinada revela que a reação global à pandemia não deveria indispor as pessoas em relação à agenda liberal centrista dos países mais bem-sucedidos, que muitas vezes se combina com socialdemocracia na distribuição dos resultados.

A Nova Zelândia, por exemplo, um dos casos de maior sucesso no combate à pandemia, está, como a Austrália, na vanguarda da regulação liberal da economia de mercado. Coreia, Japão e Taiwan saíram-se relativamente muito bem na pandemia, sem terem um Estado plenipotenciário e sufocante como a China.

Entretanto, na forma rasteira como os grandes debates globais chegam em países da periferia intelectual, como o Brasil, restam poucas dúvidas de que a leitura da pandemia e a economia política por ela engendrada vão empurrar o País ainda mais na direção iliberal, heterodoxa e irracional que pautou a política pública por longos períodos nas últimas décadas.

Concretamente, o auxílio emergencial, programa social lançado de improviso, com custo gigantesco e uma grande parcela dos benefícios indo para quem não precisa (por exemplo, jovens de classe média alta com grau universitário que não trabalham), mudou a cabeça do presidente Jair Bolsonaro. Ou talvez tenha "restaurado" a sua cabeça.

Como se sabe, Bolsonaro nunca foi liberal, muito pelo contrário. Na sua longa carreira de político do baixo clero no Congresso Nacional, ele sempre lutou para dar benefícios com dinheiro público para as suas clientelas corporativas, militares e policiais.

Guedes, porém, teria "convertido" Bolsonaro ao liberalismo. Mas agora o presidente sentiu o gosto de torrar dinheiro público e inflar sua popularidade junto às camadas mais pobres de forma insustentável, o mesmo tônico que deliciou tantos presidentes da história latino-americana recente, como Lula, Chávez, Kirchner etc.

Insuflado pelos militares no seu governo, saudosos do "Brasil grande", e por ministros como Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, e Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, Bolsonaro também quer ser um presidente "tocador de obras", o que sem dúvida é do gosto popular.

Há, claro, um teto de gastos no meio do caminho, mas o sistema político e incontáveis formadores de opinião estão neste momento em meio a um intenso brainstorm sobre formas de burlar ou derrubar esse empecilho a mais uma rodada populista de felicidade bancada por dinheiro público escasso.

Para piorar, o teto tem sérios problemas de desenho - como a impossibilidade de acionar os gatilhos de contenção de gasto - que, de fato, sugeririam que uma intervenção cirúrgica poderia ajudar.

Mas não é esse, definitivamente, o "espírito da coisa" entre a maior parte dos adversários do teto.

A ideia é que o Brasil emite um moeda soberana e, portanto, não há limites para os gastos do governo, ainda mais na situação de hiperliquidez global, que veio para ficar por um período a perder de vista. Qualquer problema, taxam-se os ricos, o que deve ser suficiente para segurar qualquer barra fiscal.

O mercado já dá sinais discretos de desconforto. O real se desvaloriza de novo e a inclinação da curva de juros no Brasil vai aumentando, enquanto o governo encurta prazos da dívida pública. Comparado a alguns dos seus pares, o Brasil tem taxas curtíssimas menores e taxas longas maiores.

Resta saber se Guedes vai topar ficar à frente indefinidamente da nova agenda nacional-populista de Jair Bolsonaro.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 12/8/2020, quarta-feira.

Economia política, na acepção moderna com que os economistas usam a expressão, é, numa definição muito simplificada e jornalística, a investigação sobre como determinados tipos de conjuntura e arcabouço políticos levam ou não à adoção de determinadas políticas econômicas.

Nesse sentido, a economia política brasileira jamais foi favorável à adoção de políticas econômicas liberais. As instituições no Brasil são profundamente iliberais e, no mais das vezes, o que determina o sucesso na vida de um cidadão são coisas como berço e acesso a privilégios cartoriais, proteção, subsídios, rede de contatos sociais etc.

Toda essa teia de privilégios à disposição dos mais ricos e conectados é defendida com unhas e dentes pelas diversas categorias, corporações e outros grupos sociais que delas se beneficiam.

No período pós-redemocratização, o dinheiro público começou a fluir também para os pobres. Porém, com nobres exceções, como o Bolsa-Família, esses benefícios são mal focalizados, indo para quem precisa e quem não precisa (ou indo mais do que o necessário para quem precisa), e, no seu conjunto, são insustentáveis do ponto de vista fiscal.

Numa democracia jovem como a brasileira, as pessoas, grupos e instituições que defendem o interesse difuso são muitos mais recentes e frágeis do que os lobbies e interesses especiais, com suas raízes seculares. É difícil também o interesse difuso se sobrepor à exploração populista do dinheiro público pelos políticos.

Ao contrário do que costuma dizer o ministro da Economia, Paulo Guedes, a razão pela qual o Brasil, 35 anos após a redemocratização, é um país economicamente estagnado, violento, desigual e com um arcabouço institucional antidesenvolvimento não foram os cinco mandatos e meio de presidentes de esquerda, centro-esquerda, socialdemocratas ou seja qual for o rótulo.

Os principais quadros do PT e do PSDB foram de esquerda no passado, e boa parte do petismo ainda é. Mas o fato é que houve uma evolução de mentalidades, e, entre 1994 e 2005, o Executivo nacional governou o Brasil com uma agenda moderna e razoavelmente liberal - houve muitos erros, claro, mas isso não quer dizer que a direção geral não estivesse correta.

O País não avançou mais nesse período porque a resistência à mudança é gigantesca.

Guedes e sua trupe liberal, ora em debandada, chegaram ao comando da política econômica em 2019 vendendo a fantasia de que liberalizar o arcabouço institucional do Brasil era uma questão apenas de vontade política, que faltara a tucanos e petistas no período de 1994 a 2015, em que essa era a agenda do governo.

Não vale, portanto, reclamar agora de resistências do establishment às políticas liberais, como vêm fazendo Guedes e seus auxiliares que abandonaram o barco.

Mas de fato Guedes sofreu, adicionalmente à dificuldade intransponível da tarefa a que se propôs, um violento golpe de azar do destino: a Covid-19.

A pandemia representou um choque monumental de economia política antiliberal no mundo inteiro. De uma hora para outra, a importância dos sistemas públicos de saúde e da coordenação do Estado saltou na cara dos cidadãos apavorados. Trilhões em moeda forte foram injetados ou gastos pelas autoridades econômicas das principais potências ocidentais, inclusive por aqueles países percebidos como exemplos de austeridade, como a Alemanha.

Uma análise mais refinada revela que a reação global à pandemia não deveria indispor as pessoas em relação à agenda liberal centrista dos países mais bem-sucedidos, que muitas vezes se combina com socialdemocracia na distribuição dos resultados.

A Nova Zelândia, por exemplo, um dos casos de maior sucesso no combate à pandemia, está, como a Austrália, na vanguarda da regulação liberal da economia de mercado. Coreia, Japão e Taiwan saíram-se relativamente muito bem na pandemia, sem terem um Estado plenipotenciário e sufocante como a China.

Entretanto, na forma rasteira como os grandes debates globais chegam em países da periferia intelectual, como o Brasil, restam poucas dúvidas de que a leitura da pandemia e a economia política por ela engendrada vão empurrar o País ainda mais na direção iliberal, heterodoxa e irracional que pautou a política pública por longos períodos nas últimas décadas.

Concretamente, o auxílio emergencial, programa social lançado de improviso, com custo gigantesco e uma grande parcela dos benefícios indo para quem não precisa (por exemplo, jovens de classe média alta com grau universitário que não trabalham), mudou a cabeça do presidente Jair Bolsonaro. Ou talvez tenha "restaurado" a sua cabeça.

Como se sabe, Bolsonaro nunca foi liberal, muito pelo contrário. Na sua longa carreira de político do baixo clero no Congresso Nacional, ele sempre lutou para dar benefícios com dinheiro público para as suas clientelas corporativas, militares e policiais.

Guedes, porém, teria "convertido" Bolsonaro ao liberalismo. Mas agora o presidente sentiu o gosto de torrar dinheiro público e inflar sua popularidade junto às camadas mais pobres de forma insustentável, o mesmo tônico que deliciou tantos presidentes da história latino-americana recente, como Lula, Chávez, Kirchner etc.

Insuflado pelos militares no seu governo, saudosos do "Brasil grande", e por ministros como Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, e Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, Bolsonaro também quer ser um presidente "tocador de obras", o que sem dúvida é do gosto popular.

Há, claro, um teto de gastos no meio do caminho, mas o sistema político e incontáveis formadores de opinião estão neste momento em meio a um intenso brainstorm sobre formas de burlar ou derrubar esse empecilho a mais uma rodada populista de felicidade bancada por dinheiro público escasso.

Para piorar, o teto tem sérios problemas de desenho - como a impossibilidade de acionar os gatilhos de contenção de gasto - que, de fato, sugeririam que uma intervenção cirúrgica poderia ajudar.

Mas não é esse, definitivamente, o "espírito da coisa" entre a maior parte dos adversários do teto.

A ideia é que o Brasil emite um moeda soberana e, portanto, não há limites para os gastos do governo, ainda mais na situação de hiperliquidez global, que veio para ficar por um período a perder de vista. Qualquer problema, taxam-se os ricos, o que deve ser suficiente para segurar qualquer barra fiscal.

O mercado já dá sinais discretos de desconforto. O real se desvaloriza de novo e a inclinação da curva de juros no Brasil vai aumentando, enquanto o governo encurta prazos da dívida pública. Comparado a alguns dos seus pares, o Brasil tem taxas curtíssimas menores e taxas longas maiores.

Resta saber se Guedes vai topar ficar à frente indefinidamente da nova agenda nacional-populista de Jair Bolsonaro.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 12/8/2020, quarta-feira.

Economia política, na acepção moderna com que os economistas usam a expressão, é, numa definição muito simplificada e jornalística, a investigação sobre como determinados tipos de conjuntura e arcabouço políticos levam ou não à adoção de determinadas políticas econômicas.

Nesse sentido, a economia política brasileira jamais foi favorável à adoção de políticas econômicas liberais. As instituições no Brasil são profundamente iliberais e, no mais das vezes, o que determina o sucesso na vida de um cidadão são coisas como berço e acesso a privilégios cartoriais, proteção, subsídios, rede de contatos sociais etc.

Toda essa teia de privilégios à disposição dos mais ricos e conectados é defendida com unhas e dentes pelas diversas categorias, corporações e outros grupos sociais que delas se beneficiam.

No período pós-redemocratização, o dinheiro público começou a fluir também para os pobres. Porém, com nobres exceções, como o Bolsa-Família, esses benefícios são mal focalizados, indo para quem precisa e quem não precisa (ou indo mais do que o necessário para quem precisa), e, no seu conjunto, são insustentáveis do ponto de vista fiscal.

Numa democracia jovem como a brasileira, as pessoas, grupos e instituições que defendem o interesse difuso são muitos mais recentes e frágeis do que os lobbies e interesses especiais, com suas raízes seculares. É difícil também o interesse difuso se sobrepor à exploração populista do dinheiro público pelos políticos.

Ao contrário do que costuma dizer o ministro da Economia, Paulo Guedes, a razão pela qual o Brasil, 35 anos após a redemocratização, é um país economicamente estagnado, violento, desigual e com um arcabouço institucional antidesenvolvimento não foram os cinco mandatos e meio de presidentes de esquerda, centro-esquerda, socialdemocratas ou seja qual for o rótulo.

Os principais quadros do PT e do PSDB foram de esquerda no passado, e boa parte do petismo ainda é. Mas o fato é que houve uma evolução de mentalidades, e, entre 1994 e 2005, o Executivo nacional governou o Brasil com uma agenda moderna e razoavelmente liberal - houve muitos erros, claro, mas isso não quer dizer que a direção geral não estivesse correta.

O País não avançou mais nesse período porque a resistência à mudança é gigantesca.

Guedes e sua trupe liberal, ora em debandada, chegaram ao comando da política econômica em 2019 vendendo a fantasia de que liberalizar o arcabouço institucional do Brasil era uma questão apenas de vontade política, que faltara a tucanos e petistas no período de 1994 a 2015, em que essa era a agenda do governo.

Não vale, portanto, reclamar agora de resistências do establishment às políticas liberais, como vêm fazendo Guedes e seus auxiliares que abandonaram o barco.

Mas de fato Guedes sofreu, adicionalmente à dificuldade intransponível da tarefa a que se propôs, um violento golpe de azar do destino: a Covid-19.

A pandemia representou um choque monumental de economia política antiliberal no mundo inteiro. De uma hora para outra, a importância dos sistemas públicos de saúde e da coordenação do Estado saltou na cara dos cidadãos apavorados. Trilhões em moeda forte foram injetados ou gastos pelas autoridades econômicas das principais potências ocidentais, inclusive por aqueles países percebidos como exemplos de austeridade, como a Alemanha.

Uma análise mais refinada revela que a reação global à pandemia não deveria indispor as pessoas em relação à agenda liberal centrista dos países mais bem-sucedidos, que muitas vezes se combina com socialdemocracia na distribuição dos resultados.

A Nova Zelândia, por exemplo, um dos casos de maior sucesso no combate à pandemia, está, como a Austrália, na vanguarda da regulação liberal da economia de mercado. Coreia, Japão e Taiwan saíram-se relativamente muito bem na pandemia, sem terem um Estado plenipotenciário e sufocante como a China.

Entretanto, na forma rasteira como os grandes debates globais chegam em países da periferia intelectual, como o Brasil, restam poucas dúvidas de que a leitura da pandemia e a economia política por ela engendrada vão empurrar o País ainda mais na direção iliberal, heterodoxa e irracional que pautou a política pública por longos períodos nas últimas décadas.

Concretamente, o auxílio emergencial, programa social lançado de improviso, com custo gigantesco e uma grande parcela dos benefícios indo para quem não precisa (por exemplo, jovens de classe média alta com grau universitário que não trabalham), mudou a cabeça do presidente Jair Bolsonaro. Ou talvez tenha "restaurado" a sua cabeça.

Como se sabe, Bolsonaro nunca foi liberal, muito pelo contrário. Na sua longa carreira de político do baixo clero no Congresso Nacional, ele sempre lutou para dar benefícios com dinheiro público para as suas clientelas corporativas, militares e policiais.

Guedes, porém, teria "convertido" Bolsonaro ao liberalismo. Mas agora o presidente sentiu o gosto de torrar dinheiro público e inflar sua popularidade junto às camadas mais pobres de forma insustentável, o mesmo tônico que deliciou tantos presidentes da história latino-americana recente, como Lula, Chávez, Kirchner etc.

Insuflado pelos militares no seu governo, saudosos do "Brasil grande", e por ministros como Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, e Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, Bolsonaro também quer ser um presidente "tocador de obras", o que sem dúvida é do gosto popular.

Há, claro, um teto de gastos no meio do caminho, mas o sistema político e incontáveis formadores de opinião estão neste momento em meio a um intenso brainstorm sobre formas de burlar ou derrubar esse empecilho a mais uma rodada populista de felicidade bancada por dinheiro público escasso.

Para piorar, o teto tem sérios problemas de desenho - como a impossibilidade de acionar os gatilhos de contenção de gasto - que, de fato, sugeririam que uma intervenção cirúrgica poderia ajudar.

Mas não é esse, definitivamente, o "espírito da coisa" entre a maior parte dos adversários do teto.

A ideia é que o Brasil emite um moeda soberana e, portanto, não há limites para os gastos do governo, ainda mais na situação de hiperliquidez global, que veio para ficar por um período a perder de vista. Qualquer problema, taxam-se os ricos, o que deve ser suficiente para segurar qualquer barra fiscal.

O mercado já dá sinais discretos de desconforto. O real se desvaloriza de novo e a inclinação da curva de juros no Brasil vai aumentando, enquanto o governo encurta prazos da dívida pública. Comparado a alguns dos seus pares, o Brasil tem taxas curtíssimas menores e taxas longas maiores.

Resta saber se Guedes vai topar ficar à frente indefinidamente da nova agenda nacional-populista de Jair Bolsonaro.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast

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