Economia e políticas públicas

Opinião|O que falta para completar o ajuste


Disparada do câmbio pode finalmente iniciar ajuste de preços relativos, mas BC terá de agir.

Por Fernando Dantas

Muito se discutiu durante o ano eleitoral, e mesmo antes, sobre a natureza do ajuste econômico que o País experimentaria em 2015. Uma questão inicial era sobre o tipo de equipe econômica que a presidente Dilma Rousseff, caso reeleita, escolheria. Erraram aqueles que apostaram na hipótese de se "dobrar a aposta" heterodoxa, e mesmo os que previam alguma mudança ao centro, mas moderada. Com a escolha de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, o principal posto econômico, ficou claro que a virada ortodoxa seria enérgica.

Havia cenários também, é claro, para a hipótese de outros candidatos vencerem, mas estes hoje já não importam tanto.

Uma vez escolhido Levy para a Fazenda, com Nelson Barbosa no Planejamento - um heterodoxo moderado que deu sinais antes de sua volta ao governo de que apoiaria um ajuste forte -, a maior parte das peças de uma correção mais rápida e intensa dos desequilíbrios econômicos brasileiros estava sobre a mesa.

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O problema, porém, como notaram alguns analistas no debate sobre o ajuste do ano passado, é que todos os episódios da história recente de correção drástica de desequilíbrios da economia brasileira foram "forçados" pelo mercado. Isto se refere especialmente aos investidores internacionais que provocaram episódios de "parada súbita" no financiamento externo. Mas sempre houve um componente fiscal nesses momentos de resolução imposta de desequilíbrios, com a necessidade urgente de suprimir dúvidas sobre a solvência em geral do setor público.

O último desses episódios foi o longo ajuste, em duas etapas, de 1999 a 2004. O salto do superávit primário consolidado no período (2004 ante 1998) foi superior a 3,5 pontos porcentuais do PIB. A taxa de câmbio nominal saiu de R$ 1,2 para R$ 2,7 no fim de 2004, depois de passar por um pico de quase R$ 4.

Alguns economistas notam, porém, que um aspecto fundamental desse ajuste - que fez com que o saldo em conta corrente saísse de um déficit de praticamente 4% do PIB (1998) para um superávit de 1,8% em 2004 - foi a mudança de preços relativos. Ao longo desse período, o preço dos produtos comercializáveis internacionalmente (tradables) valorizou-se cerca de 20% ante o preço dos não comercializáveis (non-tradables). Num recorte mais específico, pode-se dizer que a inflação dos manufaturados exportáveis (e que competem com importações) foi bem mais alta do que a dos serviços e salários. Evidentemente, o boom das commodities também contribui enormemente para o ajuste - um fator com o qual não se pode contar agora.

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Os mesmos economistas observam que nada parecido em termos de preços relativos ocorreu desde o início do atual movimento de depreciação nominal, que levou o câmbio de pouco mais de R$ 1,5 em 2011 para o nível atual em torno de R$ 3,1 (nível da semana passada, quando coluna foi escrita - hoje, 19/3, quando foi postada, já está em R$ 3,3). Na verdade, a inflação dos serviços correu o tempo todo bem acima da inflação dos tradables. Nos 12 meses até fevereiro, os non-tradables do IPCA subiram 8,17%, enquanto os tradables elevaram-se em 5,92%. Quando se compara a evolução dos serviços com a dos bens duráveis, as inflações são de 8,58% e 3,21% (12 meses até fevereiro).

A ideia é que o ajuste de preços relativos só acontecerá quando uma depreciação realmente drástica provocar uma forte inflação dos tradables (cujo preço é influenciado também pela demanda internacional, fraca no momento), forçando o Banco Central a praticar uma política monetária muito dura que evite ao máximo a contaminação inflacionária dos serviços e salários. Inevitavelmente o mecanismo de transmissão dessa contenção será o aumento do desemprego e a desaceleração da renda. Dado o grau da desaceleração que o País já está sofrendo, determinar o que seria aquela "dureza" não é trivial.

Colaborar com a correção

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No atual momento, a combinação da expectativa de início de alta de juros básicos nos Estados Unidos (que parece cada vez mais próximo) com a deterioração do cenário político no Brasil já está levando a uma depreciação bastante brusca do câmbio. Não há uma "parada súbita" de financiamento externo, mas o mercado internacional está no mínimo empurrando o ajuste brasileiro com mais força do que anteriormente.

As autoridades econômicas parecem aceitar a perda de valor do real, o que ficará mais claro com a decisão sobre o futuro do programa de swaps cambiais no fim deste mês. Assim, é possível que o elemento que faltava para o ajuste da economia brasileira esteja finalmente se apresentando, embora ainda de forma incipiente. Com a política fiscal reforçada e os preços administrados colocados no lugar, o câmbio parece estar rumando na direção que poderia levar em algum momento à correção dos preços relativos. Isto, por sua vez, poderia reduzir o inquietante déficit em conta corrente de 4,2% do PIB.

Nada garante, é claro, que o câmbio não possa voltar com uma eventual acalmada externa e/ou interna, o que reduziria a indução ao ajuste externo.

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Porém, supondo que a depreciação continue, ou no mínimo não retroceda (a decisão sobre os swaps será importante neste quesito), ainda falta uma peça do ajuste completo, que é a reação do Banco Central ao recuo nominal do real. Mais até do que levar o IPCA ao centro da meta em 2016 (o que, evidentemente, deve ser feito), o BC teria de cuidar para que salários e serviços subissem bem abaixo do repique dos tradables por um período razoável. Para isso, infelizmente, a autoridade monetária não poderia relutar em sacrificar o mercado de trabalho no curto prazo.

Se isso ocorresse, os gestores da economia estariam de certa forma cooperando com o ajuste externo, embora o impulso inicial tenha vindo do mercado internacional. Seria romper o padrão histórico de ajustes de preços relativos inteiramente forçados e reativos em momentos de crises extremamente agudas, cujas consequências para a economia real provavelmente são piores. Nos próximos meses, deve ficar claro se o caminho escolhido pelo governo é o de colaborar para um ajuste externo mais rápido, o que depende em grande medida do Banco Central (e parte da hipótese de que o ajuste fiscal tenha sucesso). (fernando.dantas@estadao.com)

Fernando Dantas é jornalista da Broadcast

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Esta coluna foi publicada pela AE-News/Broadcast em 12/3/15, quinta-feira.

Muito se discutiu durante o ano eleitoral, e mesmo antes, sobre a natureza do ajuste econômico que o País experimentaria em 2015. Uma questão inicial era sobre o tipo de equipe econômica que a presidente Dilma Rousseff, caso reeleita, escolheria. Erraram aqueles que apostaram na hipótese de se "dobrar a aposta" heterodoxa, e mesmo os que previam alguma mudança ao centro, mas moderada. Com a escolha de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, o principal posto econômico, ficou claro que a virada ortodoxa seria enérgica.

Havia cenários também, é claro, para a hipótese de outros candidatos vencerem, mas estes hoje já não importam tanto.

Uma vez escolhido Levy para a Fazenda, com Nelson Barbosa no Planejamento - um heterodoxo moderado que deu sinais antes de sua volta ao governo de que apoiaria um ajuste forte -, a maior parte das peças de uma correção mais rápida e intensa dos desequilíbrios econômicos brasileiros estava sobre a mesa.

O problema, porém, como notaram alguns analistas no debate sobre o ajuste do ano passado, é que todos os episódios da história recente de correção drástica de desequilíbrios da economia brasileira foram "forçados" pelo mercado. Isto se refere especialmente aos investidores internacionais que provocaram episódios de "parada súbita" no financiamento externo. Mas sempre houve um componente fiscal nesses momentos de resolução imposta de desequilíbrios, com a necessidade urgente de suprimir dúvidas sobre a solvência em geral do setor público.

O último desses episódios foi o longo ajuste, em duas etapas, de 1999 a 2004. O salto do superávit primário consolidado no período (2004 ante 1998) foi superior a 3,5 pontos porcentuais do PIB. A taxa de câmbio nominal saiu de R$ 1,2 para R$ 2,7 no fim de 2004, depois de passar por um pico de quase R$ 4.

Alguns economistas notam, porém, que um aspecto fundamental desse ajuste - que fez com que o saldo em conta corrente saísse de um déficit de praticamente 4% do PIB (1998) para um superávit de 1,8% em 2004 - foi a mudança de preços relativos. Ao longo desse período, o preço dos produtos comercializáveis internacionalmente (tradables) valorizou-se cerca de 20% ante o preço dos não comercializáveis (non-tradables). Num recorte mais específico, pode-se dizer que a inflação dos manufaturados exportáveis (e que competem com importações) foi bem mais alta do que a dos serviços e salários. Evidentemente, o boom das commodities também contribui enormemente para o ajuste - um fator com o qual não se pode contar agora.

Os mesmos economistas observam que nada parecido em termos de preços relativos ocorreu desde o início do atual movimento de depreciação nominal, que levou o câmbio de pouco mais de R$ 1,5 em 2011 para o nível atual em torno de R$ 3,1 (nível da semana passada, quando coluna foi escrita - hoje, 19/3, quando foi postada, já está em R$ 3,3). Na verdade, a inflação dos serviços correu o tempo todo bem acima da inflação dos tradables. Nos 12 meses até fevereiro, os non-tradables do IPCA subiram 8,17%, enquanto os tradables elevaram-se em 5,92%. Quando se compara a evolução dos serviços com a dos bens duráveis, as inflações são de 8,58% e 3,21% (12 meses até fevereiro).

A ideia é que o ajuste de preços relativos só acontecerá quando uma depreciação realmente drástica provocar uma forte inflação dos tradables (cujo preço é influenciado também pela demanda internacional, fraca no momento), forçando o Banco Central a praticar uma política monetária muito dura que evite ao máximo a contaminação inflacionária dos serviços e salários. Inevitavelmente o mecanismo de transmissão dessa contenção será o aumento do desemprego e a desaceleração da renda. Dado o grau da desaceleração que o País já está sofrendo, determinar o que seria aquela "dureza" não é trivial.

Colaborar com a correção

No atual momento, a combinação da expectativa de início de alta de juros básicos nos Estados Unidos (que parece cada vez mais próximo) com a deterioração do cenário político no Brasil já está levando a uma depreciação bastante brusca do câmbio. Não há uma "parada súbita" de financiamento externo, mas o mercado internacional está no mínimo empurrando o ajuste brasileiro com mais força do que anteriormente.

As autoridades econômicas parecem aceitar a perda de valor do real, o que ficará mais claro com a decisão sobre o futuro do programa de swaps cambiais no fim deste mês. Assim, é possível que o elemento que faltava para o ajuste da economia brasileira esteja finalmente se apresentando, embora ainda de forma incipiente. Com a política fiscal reforçada e os preços administrados colocados no lugar, o câmbio parece estar rumando na direção que poderia levar em algum momento à correção dos preços relativos. Isto, por sua vez, poderia reduzir o inquietante déficit em conta corrente de 4,2% do PIB.

Nada garante, é claro, que o câmbio não possa voltar com uma eventual acalmada externa e/ou interna, o que reduziria a indução ao ajuste externo.

Porém, supondo que a depreciação continue, ou no mínimo não retroceda (a decisão sobre os swaps será importante neste quesito), ainda falta uma peça do ajuste completo, que é a reação do Banco Central ao recuo nominal do real. Mais até do que levar o IPCA ao centro da meta em 2016 (o que, evidentemente, deve ser feito), o BC teria de cuidar para que salários e serviços subissem bem abaixo do repique dos tradables por um período razoável. Para isso, infelizmente, a autoridade monetária não poderia relutar em sacrificar o mercado de trabalho no curto prazo.

Se isso ocorresse, os gestores da economia estariam de certa forma cooperando com o ajuste externo, embora o impulso inicial tenha vindo do mercado internacional. Seria romper o padrão histórico de ajustes de preços relativos inteiramente forçados e reativos em momentos de crises extremamente agudas, cujas consequências para a economia real provavelmente são piores. Nos próximos meses, deve ficar claro se o caminho escolhido pelo governo é o de colaborar para um ajuste externo mais rápido, o que depende em grande medida do Banco Central (e parte da hipótese de que o ajuste fiscal tenha sucesso). (fernando.dantas@estadao.com)

Fernando Dantas é jornalista da Broadcast

Esta coluna foi publicada pela AE-News/Broadcast em 12/3/15, quinta-feira.

Muito se discutiu durante o ano eleitoral, e mesmo antes, sobre a natureza do ajuste econômico que o País experimentaria em 2015. Uma questão inicial era sobre o tipo de equipe econômica que a presidente Dilma Rousseff, caso reeleita, escolheria. Erraram aqueles que apostaram na hipótese de se "dobrar a aposta" heterodoxa, e mesmo os que previam alguma mudança ao centro, mas moderada. Com a escolha de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, o principal posto econômico, ficou claro que a virada ortodoxa seria enérgica.

Havia cenários também, é claro, para a hipótese de outros candidatos vencerem, mas estes hoje já não importam tanto.

Uma vez escolhido Levy para a Fazenda, com Nelson Barbosa no Planejamento - um heterodoxo moderado que deu sinais antes de sua volta ao governo de que apoiaria um ajuste forte -, a maior parte das peças de uma correção mais rápida e intensa dos desequilíbrios econômicos brasileiros estava sobre a mesa.

O problema, porém, como notaram alguns analistas no debate sobre o ajuste do ano passado, é que todos os episódios da história recente de correção drástica de desequilíbrios da economia brasileira foram "forçados" pelo mercado. Isto se refere especialmente aos investidores internacionais que provocaram episódios de "parada súbita" no financiamento externo. Mas sempre houve um componente fiscal nesses momentos de resolução imposta de desequilíbrios, com a necessidade urgente de suprimir dúvidas sobre a solvência em geral do setor público.

O último desses episódios foi o longo ajuste, em duas etapas, de 1999 a 2004. O salto do superávit primário consolidado no período (2004 ante 1998) foi superior a 3,5 pontos porcentuais do PIB. A taxa de câmbio nominal saiu de R$ 1,2 para R$ 2,7 no fim de 2004, depois de passar por um pico de quase R$ 4.

Alguns economistas notam, porém, que um aspecto fundamental desse ajuste - que fez com que o saldo em conta corrente saísse de um déficit de praticamente 4% do PIB (1998) para um superávit de 1,8% em 2004 - foi a mudança de preços relativos. Ao longo desse período, o preço dos produtos comercializáveis internacionalmente (tradables) valorizou-se cerca de 20% ante o preço dos não comercializáveis (non-tradables). Num recorte mais específico, pode-se dizer que a inflação dos manufaturados exportáveis (e que competem com importações) foi bem mais alta do que a dos serviços e salários. Evidentemente, o boom das commodities também contribui enormemente para o ajuste - um fator com o qual não se pode contar agora.

Os mesmos economistas observam que nada parecido em termos de preços relativos ocorreu desde o início do atual movimento de depreciação nominal, que levou o câmbio de pouco mais de R$ 1,5 em 2011 para o nível atual em torno de R$ 3,1 (nível da semana passada, quando coluna foi escrita - hoje, 19/3, quando foi postada, já está em R$ 3,3). Na verdade, a inflação dos serviços correu o tempo todo bem acima da inflação dos tradables. Nos 12 meses até fevereiro, os non-tradables do IPCA subiram 8,17%, enquanto os tradables elevaram-se em 5,92%. Quando se compara a evolução dos serviços com a dos bens duráveis, as inflações são de 8,58% e 3,21% (12 meses até fevereiro).

A ideia é que o ajuste de preços relativos só acontecerá quando uma depreciação realmente drástica provocar uma forte inflação dos tradables (cujo preço é influenciado também pela demanda internacional, fraca no momento), forçando o Banco Central a praticar uma política monetária muito dura que evite ao máximo a contaminação inflacionária dos serviços e salários. Inevitavelmente o mecanismo de transmissão dessa contenção será o aumento do desemprego e a desaceleração da renda. Dado o grau da desaceleração que o País já está sofrendo, determinar o que seria aquela "dureza" não é trivial.

Colaborar com a correção

No atual momento, a combinação da expectativa de início de alta de juros básicos nos Estados Unidos (que parece cada vez mais próximo) com a deterioração do cenário político no Brasil já está levando a uma depreciação bastante brusca do câmbio. Não há uma "parada súbita" de financiamento externo, mas o mercado internacional está no mínimo empurrando o ajuste brasileiro com mais força do que anteriormente.

As autoridades econômicas parecem aceitar a perda de valor do real, o que ficará mais claro com a decisão sobre o futuro do programa de swaps cambiais no fim deste mês. Assim, é possível que o elemento que faltava para o ajuste da economia brasileira esteja finalmente se apresentando, embora ainda de forma incipiente. Com a política fiscal reforçada e os preços administrados colocados no lugar, o câmbio parece estar rumando na direção que poderia levar em algum momento à correção dos preços relativos. Isto, por sua vez, poderia reduzir o inquietante déficit em conta corrente de 4,2% do PIB.

Nada garante, é claro, que o câmbio não possa voltar com uma eventual acalmada externa e/ou interna, o que reduziria a indução ao ajuste externo.

Porém, supondo que a depreciação continue, ou no mínimo não retroceda (a decisão sobre os swaps será importante neste quesito), ainda falta uma peça do ajuste completo, que é a reação do Banco Central ao recuo nominal do real. Mais até do que levar o IPCA ao centro da meta em 2016 (o que, evidentemente, deve ser feito), o BC teria de cuidar para que salários e serviços subissem bem abaixo do repique dos tradables por um período razoável. Para isso, infelizmente, a autoridade monetária não poderia relutar em sacrificar o mercado de trabalho no curto prazo.

Se isso ocorresse, os gestores da economia estariam de certa forma cooperando com o ajuste externo, embora o impulso inicial tenha vindo do mercado internacional. Seria romper o padrão histórico de ajustes de preços relativos inteiramente forçados e reativos em momentos de crises extremamente agudas, cujas consequências para a economia real provavelmente são piores. Nos próximos meses, deve ficar claro se o caminho escolhido pelo governo é o de colaborar para um ajuste externo mais rápido, o que depende em grande medida do Banco Central (e parte da hipótese de que o ajuste fiscal tenha sucesso). (fernando.dantas@estadao.com)

Fernando Dantas é jornalista da Broadcast

Esta coluna foi publicada pela AE-News/Broadcast em 12/3/15, quinta-feira.

Muito se discutiu durante o ano eleitoral, e mesmo antes, sobre a natureza do ajuste econômico que o País experimentaria em 2015. Uma questão inicial era sobre o tipo de equipe econômica que a presidente Dilma Rousseff, caso reeleita, escolheria. Erraram aqueles que apostaram na hipótese de se "dobrar a aposta" heterodoxa, e mesmo os que previam alguma mudança ao centro, mas moderada. Com a escolha de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, o principal posto econômico, ficou claro que a virada ortodoxa seria enérgica.

Havia cenários também, é claro, para a hipótese de outros candidatos vencerem, mas estes hoje já não importam tanto.

Uma vez escolhido Levy para a Fazenda, com Nelson Barbosa no Planejamento - um heterodoxo moderado que deu sinais antes de sua volta ao governo de que apoiaria um ajuste forte -, a maior parte das peças de uma correção mais rápida e intensa dos desequilíbrios econômicos brasileiros estava sobre a mesa.

O problema, porém, como notaram alguns analistas no debate sobre o ajuste do ano passado, é que todos os episódios da história recente de correção drástica de desequilíbrios da economia brasileira foram "forçados" pelo mercado. Isto se refere especialmente aos investidores internacionais que provocaram episódios de "parada súbita" no financiamento externo. Mas sempre houve um componente fiscal nesses momentos de resolução imposta de desequilíbrios, com a necessidade urgente de suprimir dúvidas sobre a solvência em geral do setor público.

O último desses episódios foi o longo ajuste, em duas etapas, de 1999 a 2004. O salto do superávit primário consolidado no período (2004 ante 1998) foi superior a 3,5 pontos porcentuais do PIB. A taxa de câmbio nominal saiu de R$ 1,2 para R$ 2,7 no fim de 2004, depois de passar por um pico de quase R$ 4.

Alguns economistas notam, porém, que um aspecto fundamental desse ajuste - que fez com que o saldo em conta corrente saísse de um déficit de praticamente 4% do PIB (1998) para um superávit de 1,8% em 2004 - foi a mudança de preços relativos. Ao longo desse período, o preço dos produtos comercializáveis internacionalmente (tradables) valorizou-se cerca de 20% ante o preço dos não comercializáveis (non-tradables). Num recorte mais específico, pode-se dizer que a inflação dos manufaturados exportáveis (e que competem com importações) foi bem mais alta do que a dos serviços e salários. Evidentemente, o boom das commodities também contribui enormemente para o ajuste - um fator com o qual não se pode contar agora.

Os mesmos economistas observam que nada parecido em termos de preços relativos ocorreu desde o início do atual movimento de depreciação nominal, que levou o câmbio de pouco mais de R$ 1,5 em 2011 para o nível atual em torno de R$ 3,1 (nível da semana passada, quando coluna foi escrita - hoje, 19/3, quando foi postada, já está em R$ 3,3). Na verdade, a inflação dos serviços correu o tempo todo bem acima da inflação dos tradables. Nos 12 meses até fevereiro, os non-tradables do IPCA subiram 8,17%, enquanto os tradables elevaram-se em 5,92%. Quando se compara a evolução dos serviços com a dos bens duráveis, as inflações são de 8,58% e 3,21% (12 meses até fevereiro).

A ideia é que o ajuste de preços relativos só acontecerá quando uma depreciação realmente drástica provocar uma forte inflação dos tradables (cujo preço é influenciado também pela demanda internacional, fraca no momento), forçando o Banco Central a praticar uma política monetária muito dura que evite ao máximo a contaminação inflacionária dos serviços e salários. Inevitavelmente o mecanismo de transmissão dessa contenção será o aumento do desemprego e a desaceleração da renda. Dado o grau da desaceleração que o País já está sofrendo, determinar o que seria aquela "dureza" não é trivial.

Colaborar com a correção

No atual momento, a combinação da expectativa de início de alta de juros básicos nos Estados Unidos (que parece cada vez mais próximo) com a deterioração do cenário político no Brasil já está levando a uma depreciação bastante brusca do câmbio. Não há uma "parada súbita" de financiamento externo, mas o mercado internacional está no mínimo empurrando o ajuste brasileiro com mais força do que anteriormente.

As autoridades econômicas parecem aceitar a perda de valor do real, o que ficará mais claro com a decisão sobre o futuro do programa de swaps cambiais no fim deste mês. Assim, é possível que o elemento que faltava para o ajuste da economia brasileira esteja finalmente se apresentando, embora ainda de forma incipiente. Com a política fiscal reforçada e os preços administrados colocados no lugar, o câmbio parece estar rumando na direção que poderia levar em algum momento à correção dos preços relativos. Isto, por sua vez, poderia reduzir o inquietante déficit em conta corrente de 4,2% do PIB.

Nada garante, é claro, que o câmbio não possa voltar com uma eventual acalmada externa e/ou interna, o que reduziria a indução ao ajuste externo.

Porém, supondo que a depreciação continue, ou no mínimo não retroceda (a decisão sobre os swaps será importante neste quesito), ainda falta uma peça do ajuste completo, que é a reação do Banco Central ao recuo nominal do real. Mais até do que levar o IPCA ao centro da meta em 2016 (o que, evidentemente, deve ser feito), o BC teria de cuidar para que salários e serviços subissem bem abaixo do repique dos tradables por um período razoável. Para isso, infelizmente, a autoridade monetária não poderia relutar em sacrificar o mercado de trabalho no curto prazo.

Se isso ocorresse, os gestores da economia estariam de certa forma cooperando com o ajuste externo, embora o impulso inicial tenha vindo do mercado internacional. Seria romper o padrão histórico de ajustes de preços relativos inteiramente forçados e reativos em momentos de crises extremamente agudas, cujas consequências para a economia real provavelmente são piores. Nos próximos meses, deve ficar claro se o caminho escolhido pelo governo é o de colaborar para um ajuste externo mais rápido, o que depende em grande medida do Banco Central (e parte da hipótese de que o ajuste fiscal tenha sucesso). (fernando.dantas@estadao.com)

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