O avanço surpreendente da reforma da Previdência, considerando a relação difícil do presidente Jair Bolsonaro com o Congresso, é um grande passo na direção correta, e está animando os mercados de forma justificada.
Porém, nos bastidores do provável sucesso da Previdência, está em gestação o que pode vir a ser a nova bomba fiscal brasileira, comprometendo a solvência pública e o desenvolvimento de médio e longo prazo do País: a crise fiscal dos Estados.
O texto da reforma aprovado pela Comissão Especial não só retirou a validade imediata para Estados e municípios, mas também o enquadramento dos PMs e bombeiros nas novas regras para as Forças Armadas - o que pelo menos aumentaria para 35 anos a exigência de contribuição para se aposentar, comparado aos 30 que prevalecem hoje na maior parte dos Estados.
Como mostra matéria de O Globo hoje, a despesa com inativos da PM e dos bombeiros já supera a dos ativos em 14 Estados. No Rio Grande do Sul, 71% dos rendimentos que vão para PMs e bombeiros são para inativos. E há ainda o risco de, no plenário da Câmara, serem abrandadas as mudanças para professores que, junto com a PM, são responsáveis pela principal parte das folhas estaduais (incluindo ativos e inativos).
Há dois "argumentos" para que atual reforma da Previdência quase nada faça para resolver o dramático problema previdenciário estadual. Os dois são muito, muito ruins, e vão na direção contrária da aparente tentativa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de melhorar a imagem do Legislativo junto à população, comprometida pelos escândalos dos últimos anos e pela própria retórica hostil de Bolsonaro.
O primeiro argumento é que os parlamentares não querem assumir o ônus de incluir Estados e municípios na reforma da Previdência por temor de perderem popularidade um ano antes das eleições municipais de 2020.
O raciocínio não se sustenta. Em primeiro lugar, o calendário eleitoral brasileiro prevê eleições de dois em dois anos. Logo, nunca haverá o ano propício para aprovar uma reforma supostamente indigesta para o eleitorado se o critério for o de que não pode ser nem em ano eleitoral nem no ano anterior.
Em segundo lugar, apesar de a maior parte da população, que será afetada pelos efeitos restritivos da reforma da Previdência, não apoiar firmemente a medida, existe hoje no Brasil - depois da exaustiva discussão dos últimos anos - um ambiente no mínimo de resignação popular em relação a isso. É incômodo, mas tem que ser feito.
Particularmente em relação aos Estados, a situação financeira da Previdência é tão calamitosa que talvez, até mais do que no caso federal, seja possível vender ao público a reforma como um sacrifício absolutamente inevitável se o cidadão quer que as administrações estaduais voltem a ter condições de prover serviços razoáveis de educação, segurança, saúde etc., além de poderem investir em infraestrutura urbana e saneamento.
O segundo argumento - talvez aqui seja melhor usar a palavra 'explicação' - para a relutância dos deputados em incluir Estados e municípios na reforma da Previdência é que muitos deles, concorrentes dos atuais governadores ou de seus grupos políticos, não querem "colocar azeitona na empada" de um rival. É uma justificativa torpe e imoral, porque justamente reconhece que a reforma permitirá um "upgrade" dos governos estaduais, e busca evitar isto.
Óbvio que não se veem deputados virem a público defender abertamente e "em on" uma justificativa dessas. Mas a simples menção, por fontes da imprensa, de que essa possa ser uma razão para a exclusão de Estados e municípios da reforma da Previdência deveria provocar a ira geral do eleitorado.
Uma ressalva cínica seria a de que, apesar de ser uma justificativa que "deveria" ser considerada um insulto aos eleitores, o fato é que no Brasil as pessoas já estão acostumadas a um comportamento extremamente vil por parte dos parlamentares e, portanto, não se abalam muito quando motivações espúrias são reveladas.
Mas também aqui a narrativa falha, porque é exatamente contra essa descrença geral no Legislativo, agravada pela postura belicosa do governo Bolsonaro, que Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), vêm se batendo ao resolverem carregar, independentemente do governo, uma agenda construtiva de reformas - agora a previdenciária, depois a tributária e outras.
No momento, com certo entusiasmo pela tramitação da reforma da Previdência, é verdade que não se está prestando muita atenção à questão de Estados e municípios.
Em breve, no entanto, Estados quebrados e suas bancadas no Congresso vão abrir, em toda a sua plenitude, a temporada de imensas pressões sobre o Executivo por recursos sem fim para inutilmente tentar tapar o buraco sem fundo das finanças estaduais, corroendo ou até mesmo eliminando os avanços na solvência pública com a reforma da Previdência.
Será o pior dos mundos: os Estados não vão conseguir sair da penúria em que se encontram, que tem razões estruturais, e a União perderá os avanços fiscais tão duramente conquistados.
Quando essa situação ficar clara, vai prejudicar fortemente as já débeis perspectivas econômicas, o que será negativo para todos os parlamentares que se engajaram no esforço construtivo de Maia e Alcolumbre. Ficará claro também que a Câmara agiu de forma injustificável, tanto do ponto de vista econômico quanto moral, ao retirar da reforma da Previdência os entes federativos que mais desesperadamente dela necessitavam.
Deixar Estados e municípios fora da reforma da Previdência pode até atender aos interesses pequenos e espúrios deste ou daquele parlamentar - e mesmo isto é duvidoso. Por outro lado, é um gigantesco tiro no pé do Legislativo como um todo, num dos momentos em que seu prestígio já anda nos níveis mais baixos da história nacional.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 8/7/19, segunda-feira.