O descompasso entre diferentes áreas do governo Bolsonaro é perturbador. Ontem, na apresentação da proposta de reforma da Previdência, Paulo Guedes, Rogério Marinho, secretário de Previdência, e colegas deram um show de profissionalismo. A proposta é boa e foi comunicada de forma didática e competente.
Em outras esferas do governo, porém, reina o caos e o amadorismo, como ficou claro no imbróglio entre Carlos Bolsonaro e o ex-secretário geral da Presidência da República, Gustavo Bebianno.
Guedes e seu grupo tem um enfoque bastante liberal da economia, e são também, de forma geral, alinhados com uma visão racional, cosmopolita e aberta em relação a temas como democracia, direitos, papel do Brasil no mundo e questões de comportamento e valores.
Do outro lado, os filhos do presidente e ministros como Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, Damares Alves, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e Ricardo Vélez Rodríguez, da Educação, são adeptos de uma abstrusa ideologia "antiglobalista": uma espécie de hiperconservadorismo regado a teorias conspiratórias que beiram o ridículo.
Liberais na definição ampla do termo - na economia, na política e em valores e comportamento - preocupam-se com razão que o eventual sucesso de Guedes e equipe em relançar o crescimento sustentado possa reforçar o capital político de Bolsonaro e dar corda às tendências mais inquietantes do seu governo: retrocessos nos direitos de mulheres, não brancos e minorias em geral, recuos na agenda de meio-ambiente, respaldo à violência e à corrupção policial (e, no limite, à ação criminosa das milícias), enfraquecimento do Estado laico, etc.
Nesse sentido, recente artigo de Jonathan Haidt, professor de Psicologia Social da New York University, traz insights relevantes e de certa forma reconfortantes para quem alimenta os temores descritos acima.
Em um texto intitulado "Como o capitalismo muda a consciência", Haidt apresenta um interessante argumento baseado na World Values Survey (WVS, na sigla inglês, pesquisa mundial de valores), conduzida pelos acadêmicos Ron Inglehart e Christian Welzel.
Os dois pesquisadores vêm coletando dados, de amostras representativas de populações de países, sobre "valores" desde o início dos anos 80, em rodadas aproximadamente de seis em seis anos. São mais de 100 perguntas sobre religião, democracia, direitos das mulheres, capitalismo e prioridades nacionais. Inicialmente, eram 26 países e agora já são 95 na sexta rodada (incluindo o Brasil).
Os dados sobre valores são organizados em dois eixos. Um deles é o que vai de valores tradicionais (religião, ritual, hierarquia, respeito a Deus e pais, etc.) a valores "seculares e racionais", em que todos esses preceitos são questionáveis e há mais foco na escolha do indivíduo. Essa segunda classe de valores é mais compatível com o capitalismo competitivo.
O segundo eixo vai de "valores de sobrevivência", em que as pessoas querem acima de tudo segurança física e econômica, a "autoexpressão", pela qual a busca vai além de dinheiro e inclui liberdade e defesa de direitos. Neste último grupo, escreve Haidt, tipicamente estão pessoas à esquerda no espectro ideológico, que se preocupam com direitos humanos, direitos de mulheres e homossexuais e outras minorias, com o meio ambiente, etc.
De forma esquemática, em países africanos pobres prevalecem valores tradicionais e de sobrevivência, e, na Escandinávia, na outra ponta, valores racionais-seculares e de autoexpressão.
Mas o mais interessante, para Haidt, é que os dados indicam que diversos países tendem a primeiramente passar de valores tradicionais/de sobrevivência para valores racionais-seculares/de sobrevivência. E, numa segunda etapa, chegam a valores racionais/de autoexpressão.
Assim, a impressão é que, só depois de atingirem segurança econômica e física pela prosperidade capitalista associada aos valores racionais-seculares, as pessoas têm condições de se livrar do jugo dos valores de "sobrevivência" e se abrir para os valores mais humanistas de "autoexpressão".
Haidt considera que os países asiáticos em rápido desenvolvimento estão exatamente fazendo essa transição.
A boa notícia para o Brasil é que o sucesso econômico, caso a agenda de Guedes dê certo, pode ser por si só um fator que leve mais adiante a valores mais liberais e tolerantes, se contrapondo às ideias mais reacionárias de alas do governo Bolsonaro.
É óbvio que esse não é um processo automático e imediato, nem Haidt propõe que suas ideias esquemáticas apreendam a realidade econômica, política e social dos países em toda a sua complexidade.
Mas a mensagem é que, quanto melhor na economia, melhor para tudo o mais.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 21/2/19, quinta-feira.