Ex-presidente do BC e sócio da Rio Bravo Investimentos

Opinião|Tomates, pepinos e juros


O aumento dos juros é o recurso que sobra quando o governo se abstém de tratar das coisas fundamentais ou as conduz de forma equivocada

Por Gustavo H.B. Franco

Há uma síndrome que costuma acometer as autoridades brasileiras quando se trata de inflação: a dificuldade em perceber que se trata de um esporte coletivo. A inflação não é fruto de jogadas individuais que encantam ou irritam torcedores e dirigentes, de vilões ou heróis facilmente identificáveis, mas do trabalho de uma equipe muito grande manobrando atabalhoadamente um transatlântico.A confusão parece se ampliar em tempos recentes por outra síndrome, esta de natureza pós-moderna, a do "protagonismo". Não há dois parágrafos seguidos de qualquer texto sobre a diplomacia brasileira sem ao menos uma incidência de "protagonismo". Assim como o Banco Central se encantou com "resiliência", que usava como uma espécie de autoelogio, e agora, desafortunadamente, parece se aplicar muito mais à inflação que ao PIB.O fato é que "protagonismo", em oposição à delegação e representação, tem sido um dos mantras do novo ativismo social do qual o movimento "Occupy" é um dos maiores exemplos. É a democracia direta, a linguagem horizontal, a fala das ruas e das redes sociais. O ativista é o sujeito da ação emancipatória, a história resumida à sua própria conduta. É a "performance" que se esgota em si mesma, visando a mídia e não a ação legislativa consequente. Essa é inspiração dos nossos diplomatas, o protagonismo do Brasil. Já o do tomate, que já foi capa de revista, pode ser efêmero ou não, dependendo do que vier a seguir. Claro que há um erro basilar nesse raciocínio que associa a inflação às hortaliças: sempre vai haver o feijão carioca, a batata inglesa e o chuchu crescendo muito mais que a média dos outros preços, enquanto outras coisas registrarão variações negativas. O próprio tomate esteve a 40 centavos o quilo não faz tanto tempo.Uma vicissitude das médias é a de reunir em torno de si diversas observações formando um gráfico em forma de sino. A designação técnica para os extremos da distribuição de frequência é "cauda", o que serve também para descrever a origem dos tomates vendidos no Brasil acima de R$ 12: eles vêm de Urumqi, na China, a localidade que ostenta o recorde de maior distância de qualquer porto marítimo. É desse lugar que o país dotado de mais área agricultável do mundo importa seus tomates. Algo deve estar errado, não?Mas não vamos nos perder no detalhe pitoresco. O essencial é que a inflação é um esporte de massa, um processo coletivo, que envolve o todo, que em matéria econômica, costuma ser amplamente maior que as partes. É exatamente nesse sentido que se diz que a inflação é uma doença caracterizada pelo aumento generalizado dos preços. A palavra-chave aqui é justamente o "generalizado", que expressa a natureza social do processo. Os fenômenos sociais, no dizer, de um dos protagonistas (oops) da sociologia, Emile Durkheim, são exteriores às consciências individuais e sua natureza tem a ver com o coletivo, cuja identidade é singular e diversa daquela de suas partes componentes.Essa é a explicação "sociológica" para o fato de a inflação permanecer imune aos truques como o controle de alguns ou mesmo de todos os preços, e também às manipulações estatísticas: a tentativa de encobrir manifestações individuais, ou a evidência amostral, não interfere com o fenômeno social. As causas da inflação são tão conhecidas que até os apóstolos não aguentam mais repetir. Quem quer ouvir sobre o "rombo" nas contas públicas? Isso sim é um pepino, o principal item da cesta básica de qualquer autoridade, lidar com gastos excessivos. Faz lembrar uma ótima frase de Ciro Gomes ao deixar o Ministério da Fazenda: "Convencer governadores a reduzir despesa é como explicar o significado do Natal ao peru."A heterodoxia está prevalecendo, entre outras razões, em face do tédio à controvérsia, ou ao cansaço em rebater a pseudociência. A contabilidade criativa, o voluntarismo e o "corpo a corpo" reconquistaram o protagonismo (não resisto) de outrora, vejam quem são os interlocutores da presidente, os especialistas consultados. Por isso, talvez se diga que estamos revivendo o governo Geisel, inclusive com alguns personagens em comum.Noutra época, as teses ortodoxas sobre a inflação eram acusadas de "fundamentalismo", uma designação pejorativa para o truísmo segundo a qual as febres derivam das infecções. A ideia pode parecer óbvia, e é, mas alguém precisa dizê-lo à presidente. Pergunte-se ao nosso campeão Bernardinho sobre a receita para o sucesso em esportes coletivos: domínio dos fundamentos (sic), perícia técnica e trabalho de equipe (grifos meus). Era com ele que a presidente deveria estar conversando, em vez de flertar com a medicina alternativa e com a experiência pregressa em lidar com hortaliças indisciplinadas.É preciso esclarecer, todavia, que o aumento nos juros não é o exercício do "fundamentalismo". A política monetária é uma espécie de antitérmico, e não funciona como antibiótico. É o recurso que sobra quando o governo se abstém de tratar das coisas fundamentais ou as conduz de forma equivocada, como tem feito com a nossa política fiscal. A ideia que o problema do crescimento se resolve assinando cheques, ou pedaços de papel pintado, é tão tosca como dizer que o problema social é um problema de polícia. Diante desse quadro, entretanto, não há alternativa: o Banco Central assumirá o ônus de reduzir a febre causada pela gastança e atrairá para si a zanga do "setor produtivo", quando os verdadeiros culpados estão bem escondidos no emaranhado opaco em que se tornaram as nossas contas públicas.

* Gustavo H.B. Franco é expresidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos.

Há uma síndrome que costuma acometer as autoridades brasileiras quando se trata de inflação: a dificuldade em perceber que se trata de um esporte coletivo. A inflação não é fruto de jogadas individuais que encantam ou irritam torcedores e dirigentes, de vilões ou heróis facilmente identificáveis, mas do trabalho de uma equipe muito grande manobrando atabalhoadamente um transatlântico.A confusão parece se ampliar em tempos recentes por outra síndrome, esta de natureza pós-moderna, a do "protagonismo". Não há dois parágrafos seguidos de qualquer texto sobre a diplomacia brasileira sem ao menos uma incidência de "protagonismo". Assim como o Banco Central se encantou com "resiliência", que usava como uma espécie de autoelogio, e agora, desafortunadamente, parece se aplicar muito mais à inflação que ao PIB.O fato é que "protagonismo", em oposição à delegação e representação, tem sido um dos mantras do novo ativismo social do qual o movimento "Occupy" é um dos maiores exemplos. É a democracia direta, a linguagem horizontal, a fala das ruas e das redes sociais. O ativista é o sujeito da ação emancipatória, a história resumida à sua própria conduta. É a "performance" que se esgota em si mesma, visando a mídia e não a ação legislativa consequente. Essa é inspiração dos nossos diplomatas, o protagonismo do Brasil. Já o do tomate, que já foi capa de revista, pode ser efêmero ou não, dependendo do que vier a seguir. Claro que há um erro basilar nesse raciocínio que associa a inflação às hortaliças: sempre vai haver o feijão carioca, a batata inglesa e o chuchu crescendo muito mais que a média dos outros preços, enquanto outras coisas registrarão variações negativas. O próprio tomate esteve a 40 centavos o quilo não faz tanto tempo.Uma vicissitude das médias é a de reunir em torno de si diversas observações formando um gráfico em forma de sino. A designação técnica para os extremos da distribuição de frequência é "cauda", o que serve também para descrever a origem dos tomates vendidos no Brasil acima de R$ 12: eles vêm de Urumqi, na China, a localidade que ostenta o recorde de maior distância de qualquer porto marítimo. É desse lugar que o país dotado de mais área agricultável do mundo importa seus tomates. Algo deve estar errado, não?Mas não vamos nos perder no detalhe pitoresco. O essencial é que a inflação é um esporte de massa, um processo coletivo, que envolve o todo, que em matéria econômica, costuma ser amplamente maior que as partes. É exatamente nesse sentido que se diz que a inflação é uma doença caracterizada pelo aumento generalizado dos preços. A palavra-chave aqui é justamente o "generalizado", que expressa a natureza social do processo. Os fenômenos sociais, no dizer, de um dos protagonistas (oops) da sociologia, Emile Durkheim, são exteriores às consciências individuais e sua natureza tem a ver com o coletivo, cuja identidade é singular e diversa daquela de suas partes componentes.Essa é a explicação "sociológica" para o fato de a inflação permanecer imune aos truques como o controle de alguns ou mesmo de todos os preços, e também às manipulações estatísticas: a tentativa de encobrir manifestações individuais, ou a evidência amostral, não interfere com o fenômeno social. As causas da inflação são tão conhecidas que até os apóstolos não aguentam mais repetir. Quem quer ouvir sobre o "rombo" nas contas públicas? Isso sim é um pepino, o principal item da cesta básica de qualquer autoridade, lidar com gastos excessivos. Faz lembrar uma ótima frase de Ciro Gomes ao deixar o Ministério da Fazenda: "Convencer governadores a reduzir despesa é como explicar o significado do Natal ao peru."A heterodoxia está prevalecendo, entre outras razões, em face do tédio à controvérsia, ou ao cansaço em rebater a pseudociência. A contabilidade criativa, o voluntarismo e o "corpo a corpo" reconquistaram o protagonismo (não resisto) de outrora, vejam quem são os interlocutores da presidente, os especialistas consultados. Por isso, talvez se diga que estamos revivendo o governo Geisel, inclusive com alguns personagens em comum.Noutra época, as teses ortodoxas sobre a inflação eram acusadas de "fundamentalismo", uma designação pejorativa para o truísmo segundo a qual as febres derivam das infecções. A ideia pode parecer óbvia, e é, mas alguém precisa dizê-lo à presidente. Pergunte-se ao nosso campeão Bernardinho sobre a receita para o sucesso em esportes coletivos: domínio dos fundamentos (sic), perícia técnica e trabalho de equipe (grifos meus). Era com ele que a presidente deveria estar conversando, em vez de flertar com a medicina alternativa e com a experiência pregressa em lidar com hortaliças indisciplinadas.É preciso esclarecer, todavia, que o aumento nos juros não é o exercício do "fundamentalismo". A política monetária é uma espécie de antitérmico, e não funciona como antibiótico. É o recurso que sobra quando o governo se abstém de tratar das coisas fundamentais ou as conduz de forma equivocada, como tem feito com a nossa política fiscal. A ideia que o problema do crescimento se resolve assinando cheques, ou pedaços de papel pintado, é tão tosca como dizer que o problema social é um problema de polícia. Diante desse quadro, entretanto, não há alternativa: o Banco Central assumirá o ônus de reduzir a febre causada pela gastança e atrairá para si a zanga do "setor produtivo", quando os verdadeiros culpados estão bem escondidos no emaranhado opaco em que se tornaram as nossas contas públicas.

* Gustavo H.B. Franco é expresidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos.

Há uma síndrome que costuma acometer as autoridades brasileiras quando se trata de inflação: a dificuldade em perceber que se trata de um esporte coletivo. A inflação não é fruto de jogadas individuais que encantam ou irritam torcedores e dirigentes, de vilões ou heróis facilmente identificáveis, mas do trabalho de uma equipe muito grande manobrando atabalhoadamente um transatlântico.A confusão parece se ampliar em tempos recentes por outra síndrome, esta de natureza pós-moderna, a do "protagonismo". Não há dois parágrafos seguidos de qualquer texto sobre a diplomacia brasileira sem ao menos uma incidência de "protagonismo". Assim como o Banco Central se encantou com "resiliência", que usava como uma espécie de autoelogio, e agora, desafortunadamente, parece se aplicar muito mais à inflação que ao PIB.O fato é que "protagonismo", em oposição à delegação e representação, tem sido um dos mantras do novo ativismo social do qual o movimento "Occupy" é um dos maiores exemplos. É a democracia direta, a linguagem horizontal, a fala das ruas e das redes sociais. O ativista é o sujeito da ação emancipatória, a história resumida à sua própria conduta. É a "performance" que se esgota em si mesma, visando a mídia e não a ação legislativa consequente. Essa é inspiração dos nossos diplomatas, o protagonismo do Brasil. Já o do tomate, que já foi capa de revista, pode ser efêmero ou não, dependendo do que vier a seguir. Claro que há um erro basilar nesse raciocínio que associa a inflação às hortaliças: sempre vai haver o feijão carioca, a batata inglesa e o chuchu crescendo muito mais que a média dos outros preços, enquanto outras coisas registrarão variações negativas. O próprio tomate esteve a 40 centavos o quilo não faz tanto tempo.Uma vicissitude das médias é a de reunir em torno de si diversas observações formando um gráfico em forma de sino. A designação técnica para os extremos da distribuição de frequência é "cauda", o que serve também para descrever a origem dos tomates vendidos no Brasil acima de R$ 12: eles vêm de Urumqi, na China, a localidade que ostenta o recorde de maior distância de qualquer porto marítimo. É desse lugar que o país dotado de mais área agricultável do mundo importa seus tomates. Algo deve estar errado, não?Mas não vamos nos perder no detalhe pitoresco. O essencial é que a inflação é um esporte de massa, um processo coletivo, que envolve o todo, que em matéria econômica, costuma ser amplamente maior que as partes. É exatamente nesse sentido que se diz que a inflação é uma doença caracterizada pelo aumento generalizado dos preços. A palavra-chave aqui é justamente o "generalizado", que expressa a natureza social do processo. Os fenômenos sociais, no dizer, de um dos protagonistas (oops) da sociologia, Emile Durkheim, são exteriores às consciências individuais e sua natureza tem a ver com o coletivo, cuja identidade é singular e diversa daquela de suas partes componentes.Essa é a explicação "sociológica" para o fato de a inflação permanecer imune aos truques como o controle de alguns ou mesmo de todos os preços, e também às manipulações estatísticas: a tentativa de encobrir manifestações individuais, ou a evidência amostral, não interfere com o fenômeno social. As causas da inflação são tão conhecidas que até os apóstolos não aguentam mais repetir. Quem quer ouvir sobre o "rombo" nas contas públicas? Isso sim é um pepino, o principal item da cesta básica de qualquer autoridade, lidar com gastos excessivos. Faz lembrar uma ótima frase de Ciro Gomes ao deixar o Ministério da Fazenda: "Convencer governadores a reduzir despesa é como explicar o significado do Natal ao peru."A heterodoxia está prevalecendo, entre outras razões, em face do tédio à controvérsia, ou ao cansaço em rebater a pseudociência. A contabilidade criativa, o voluntarismo e o "corpo a corpo" reconquistaram o protagonismo (não resisto) de outrora, vejam quem são os interlocutores da presidente, os especialistas consultados. Por isso, talvez se diga que estamos revivendo o governo Geisel, inclusive com alguns personagens em comum.Noutra época, as teses ortodoxas sobre a inflação eram acusadas de "fundamentalismo", uma designação pejorativa para o truísmo segundo a qual as febres derivam das infecções. A ideia pode parecer óbvia, e é, mas alguém precisa dizê-lo à presidente. Pergunte-se ao nosso campeão Bernardinho sobre a receita para o sucesso em esportes coletivos: domínio dos fundamentos (sic), perícia técnica e trabalho de equipe (grifos meus). Era com ele que a presidente deveria estar conversando, em vez de flertar com a medicina alternativa e com a experiência pregressa em lidar com hortaliças indisciplinadas.É preciso esclarecer, todavia, que o aumento nos juros não é o exercício do "fundamentalismo". A política monetária é uma espécie de antitérmico, e não funciona como antibiótico. É o recurso que sobra quando o governo se abstém de tratar das coisas fundamentais ou as conduz de forma equivocada, como tem feito com a nossa política fiscal. A ideia que o problema do crescimento se resolve assinando cheques, ou pedaços de papel pintado, é tão tosca como dizer que o problema social é um problema de polícia. Diante desse quadro, entretanto, não há alternativa: o Banco Central assumirá o ônus de reduzir a febre causada pela gastança e atrairá para si a zanga do "setor produtivo", quando os verdadeiros culpados estão bem escondidos no emaranhado opaco em que se tornaram as nossas contas públicas.

* Gustavo H.B. Franco é expresidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos.

Há uma síndrome que costuma acometer as autoridades brasileiras quando se trata de inflação: a dificuldade em perceber que se trata de um esporte coletivo. A inflação não é fruto de jogadas individuais que encantam ou irritam torcedores e dirigentes, de vilões ou heróis facilmente identificáveis, mas do trabalho de uma equipe muito grande manobrando atabalhoadamente um transatlântico.A confusão parece se ampliar em tempos recentes por outra síndrome, esta de natureza pós-moderna, a do "protagonismo". Não há dois parágrafos seguidos de qualquer texto sobre a diplomacia brasileira sem ao menos uma incidência de "protagonismo". Assim como o Banco Central se encantou com "resiliência", que usava como uma espécie de autoelogio, e agora, desafortunadamente, parece se aplicar muito mais à inflação que ao PIB.O fato é que "protagonismo", em oposição à delegação e representação, tem sido um dos mantras do novo ativismo social do qual o movimento "Occupy" é um dos maiores exemplos. É a democracia direta, a linguagem horizontal, a fala das ruas e das redes sociais. O ativista é o sujeito da ação emancipatória, a história resumida à sua própria conduta. É a "performance" que se esgota em si mesma, visando a mídia e não a ação legislativa consequente. Essa é inspiração dos nossos diplomatas, o protagonismo do Brasil. Já o do tomate, que já foi capa de revista, pode ser efêmero ou não, dependendo do que vier a seguir. Claro que há um erro basilar nesse raciocínio que associa a inflação às hortaliças: sempre vai haver o feijão carioca, a batata inglesa e o chuchu crescendo muito mais que a média dos outros preços, enquanto outras coisas registrarão variações negativas. O próprio tomate esteve a 40 centavos o quilo não faz tanto tempo.Uma vicissitude das médias é a de reunir em torno de si diversas observações formando um gráfico em forma de sino. A designação técnica para os extremos da distribuição de frequência é "cauda", o que serve também para descrever a origem dos tomates vendidos no Brasil acima de R$ 12: eles vêm de Urumqi, na China, a localidade que ostenta o recorde de maior distância de qualquer porto marítimo. É desse lugar que o país dotado de mais área agricultável do mundo importa seus tomates. Algo deve estar errado, não?Mas não vamos nos perder no detalhe pitoresco. O essencial é que a inflação é um esporte de massa, um processo coletivo, que envolve o todo, que em matéria econômica, costuma ser amplamente maior que as partes. É exatamente nesse sentido que se diz que a inflação é uma doença caracterizada pelo aumento generalizado dos preços. A palavra-chave aqui é justamente o "generalizado", que expressa a natureza social do processo. Os fenômenos sociais, no dizer, de um dos protagonistas (oops) da sociologia, Emile Durkheim, são exteriores às consciências individuais e sua natureza tem a ver com o coletivo, cuja identidade é singular e diversa daquela de suas partes componentes.Essa é a explicação "sociológica" para o fato de a inflação permanecer imune aos truques como o controle de alguns ou mesmo de todos os preços, e também às manipulações estatísticas: a tentativa de encobrir manifestações individuais, ou a evidência amostral, não interfere com o fenômeno social. As causas da inflação são tão conhecidas que até os apóstolos não aguentam mais repetir. Quem quer ouvir sobre o "rombo" nas contas públicas? Isso sim é um pepino, o principal item da cesta básica de qualquer autoridade, lidar com gastos excessivos. Faz lembrar uma ótima frase de Ciro Gomes ao deixar o Ministério da Fazenda: "Convencer governadores a reduzir despesa é como explicar o significado do Natal ao peru."A heterodoxia está prevalecendo, entre outras razões, em face do tédio à controvérsia, ou ao cansaço em rebater a pseudociência. A contabilidade criativa, o voluntarismo e o "corpo a corpo" reconquistaram o protagonismo (não resisto) de outrora, vejam quem são os interlocutores da presidente, os especialistas consultados. Por isso, talvez se diga que estamos revivendo o governo Geisel, inclusive com alguns personagens em comum.Noutra época, as teses ortodoxas sobre a inflação eram acusadas de "fundamentalismo", uma designação pejorativa para o truísmo segundo a qual as febres derivam das infecções. A ideia pode parecer óbvia, e é, mas alguém precisa dizê-lo à presidente. Pergunte-se ao nosso campeão Bernardinho sobre a receita para o sucesso em esportes coletivos: domínio dos fundamentos (sic), perícia técnica e trabalho de equipe (grifos meus). Era com ele que a presidente deveria estar conversando, em vez de flertar com a medicina alternativa e com a experiência pregressa em lidar com hortaliças indisciplinadas.É preciso esclarecer, todavia, que o aumento nos juros não é o exercício do "fundamentalismo". A política monetária é uma espécie de antitérmico, e não funciona como antibiótico. É o recurso que sobra quando o governo se abstém de tratar das coisas fundamentais ou as conduz de forma equivocada, como tem feito com a nossa política fiscal. A ideia que o problema do crescimento se resolve assinando cheques, ou pedaços de papel pintado, é tão tosca como dizer que o problema social é um problema de polícia. Diante desse quadro, entretanto, não há alternativa: o Banco Central assumirá o ônus de reduzir a febre causada pela gastança e atrairá para si a zanga do "setor produtivo", quando os verdadeiros culpados estão bem escondidos no emaranhado opaco em que se tornaram as nossas contas públicas.

* Gustavo H.B. Franco é expresidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos.

Opinião por Gustavo H.B. Franco

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