Doutor em Economia

A faminta


No trilionário orçamento dos governos há espaço, embora falte disposição, para combater a fome

Por Pedro Fernando Nery
Atualização:

Não conheço Rosângela Sibele. Escolhi sua história para este Dia das Crianças. Li sobre ela nos jornais: suco Tang, miojos e uma garrafinha de Coca-Cola. Mãe de cinco, sendo duas crianças pequenas, ela disse que estava com fome ao ser presa pelo furto. Consegui imaginar mais sobre o seu drama nas anódinas planilhas do Portal da Transparência. 

É que com as informações burocráticas do site é possível conjecturar sobre a sua desgraça, comum a tantos brasileiros neste 2021. Rosângela Sibele nunca foi beneficiária do Bolsa Família. Recebeu o auxílio emergencial em 2020.

Neste ano, parece ter sido cortada fora. Como o ministro Paulo Guedes argumentou no início do ano, o auxílio emergencial até voltaria em 2021, após ser suspenso durante a segunda onda, mas seria focalizado.

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'No trilionário orçamento dos governos há espaço para combater a fome' Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Índole indiscutivelmente voltada à delinquência. Apesar do pleito da Defensoria, Rosângela Sibele teve a soltura negada pela primeira e pela segunda instância.

Os desembargadores consideraram que seu comportamento perdeu a característica de bagatela e o princípio da insignificância não pode ser acolhido. Rosângela Sibele já havia furtado alimentos e produtos higiênicos duas vezes, antes da pandemia.

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Por que uma mãe que furta alimentos nunca esteve no nosso principal programa social? Por que foi preciso uma pandemia e um benefício generoso como o auxílio emergencial de 2020 para receber apoio? Por que no pior momento da crise ele foi cortado? Sua história, assim de longe, parece contar o fracasso de nossa política social que perpassa vários governos. 

Pode ser que você ache que benefícios como o Bolsa Família deveriam ser focalizados ou pode ser que ache que deveriam ser expandidos: em qualquer versão uma mãe em insegurança alimentar deveria fazer parte. Não é nem como se ela morasse em um rincão, porque vivia na maior cidade do País.

Doravante, vamos chamá-la de Faminta. Para aproveitar a ironia da história. É que o relator da prisão se chama Farto. Foi o Dr. Farto que escreveu que, por conta dos furtos anteriores, a Faminta tem índole indiscutivelmente voltada à delinquência. Como se a pandemia, o desemprego, a inflação – e a desproteção estatal – não existissem. 

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Os demais desembargadores acompanharam Farto, e Faminta continuou na cadeia. Dou um suco Tang para o leitor que descobrir se Farto estava entre os desembargadores do TJ que recebiam auxílio-moradia, equivalente a umas 200 vezes o valor do furto de Faminta.

Licitamente, claro, assim é como é considerado lícito para o Estado “focalizar” e não pagar o Bolsa ou o auxílio a quem tem direito. Ou como é lícito o dinheiro de ministro de Estado morar em paraíso fiscal.

Faminta, a sem o auxílio emergencial ou auxílio-moradia, mora na rua. De fato, ao que parece não tem a guarda das crianças, que já estariam com a avó. Talvez seja um alívio para o leitor que se pergunta, como eu, se neste Dia das Crianças os filhos percebem que a mãe está na cadeia.

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Ou para o católico que se pergunta se, neste Dia de Nossa Senhora Aparecida, a mãe já se acostumou com a distância dos filhos. Também é lembrete de que transferências de renda, embora importantes, não conseguem mudar muitas coisas – a própria crise habitacional, por exemplo. 

No final do ano passado, meu editor me pediu um texto para um especial do jornal, que sairia no inicinho de janeiro com perspectivas para o novo ano. Havia otimismo com a recuperação econômica e a vacinação.

Mandei o texto: 2021 vai ser pior. Não sabia, claro, da diabólica variante de Manaus, mas me preocupava com o fim do auxílio emergencial. Já a indiferença, a perda de coesão social, não davam pra ver de longe.

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O sofrimento enorme de muitas famílias no País é evitável e no trilionário orçamento dos governos há espaço, embora falte disposição, para combater a fome. Naturalizaremos mães famintas na cadeia como naturalizamos com desfaçatez as vantagens dos ricos com o “não é ilegal”? 

Na recessão da Dilma, Rosângela Sibele tinha furtado desodorantes. Deveria ter aberto uma offshore. 

DOUTOR EM ECONOMIA 

Não conheço Rosângela Sibele. Escolhi sua história para este Dia das Crianças. Li sobre ela nos jornais: suco Tang, miojos e uma garrafinha de Coca-Cola. Mãe de cinco, sendo duas crianças pequenas, ela disse que estava com fome ao ser presa pelo furto. Consegui imaginar mais sobre o seu drama nas anódinas planilhas do Portal da Transparência. 

É que com as informações burocráticas do site é possível conjecturar sobre a sua desgraça, comum a tantos brasileiros neste 2021. Rosângela Sibele nunca foi beneficiária do Bolsa Família. Recebeu o auxílio emergencial em 2020.

Neste ano, parece ter sido cortada fora. Como o ministro Paulo Guedes argumentou no início do ano, o auxílio emergencial até voltaria em 2021, após ser suspenso durante a segunda onda, mas seria focalizado.

'No trilionário orçamento dos governos há espaço para combater a fome' Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Índole indiscutivelmente voltada à delinquência. Apesar do pleito da Defensoria, Rosângela Sibele teve a soltura negada pela primeira e pela segunda instância.

Os desembargadores consideraram que seu comportamento perdeu a característica de bagatela e o princípio da insignificância não pode ser acolhido. Rosângela Sibele já havia furtado alimentos e produtos higiênicos duas vezes, antes da pandemia.

Por que uma mãe que furta alimentos nunca esteve no nosso principal programa social? Por que foi preciso uma pandemia e um benefício generoso como o auxílio emergencial de 2020 para receber apoio? Por que no pior momento da crise ele foi cortado? Sua história, assim de longe, parece contar o fracasso de nossa política social que perpassa vários governos. 

Pode ser que você ache que benefícios como o Bolsa Família deveriam ser focalizados ou pode ser que ache que deveriam ser expandidos: em qualquer versão uma mãe em insegurança alimentar deveria fazer parte. Não é nem como se ela morasse em um rincão, porque vivia na maior cidade do País.

Doravante, vamos chamá-la de Faminta. Para aproveitar a ironia da história. É que o relator da prisão se chama Farto. Foi o Dr. Farto que escreveu que, por conta dos furtos anteriores, a Faminta tem índole indiscutivelmente voltada à delinquência. Como se a pandemia, o desemprego, a inflação – e a desproteção estatal – não existissem. 

Os demais desembargadores acompanharam Farto, e Faminta continuou na cadeia. Dou um suco Tang para o leitor que descobrir se Farto estava entre os desembargadores do TJ que recebiam auxílio-moradia, equivalente a umas 200 vezes o valor do furto de Faminta.

Licitamente, claro, assim é como é considerado lícito para o Estado “focalizar” e não pagar o Bolsa ou o auxílio a quem tem direito. Ou como é lícito o dinheiro de ministro de Estado morar em paraíso fiscal.

Faminta, a sem o auxílio emergencial ou auxílio-moradia, mora na rua. De fato, ao que parece não tem a guarda das crianças, que já estariam com a avó. Talvez seja um alívio para o leitor que se pergunta, como eu, se neste Dia das Crianças os filhos percebem que a mãe está na cadeia.

Ou para o católico que se pergunta se, neste Dia de Nossa Senhora Aparecida, a mãe já se acostumou com a distância dos filhos. Também é lembrete de que transferências de renda, embora importantes, não conseguem mudar muitas coisas – a própria crise habitacional, por exemplo. 

No final do ano passado, meu editor me pediu um texto para um especial do jornal, que sairia no inicinho de janeiro com perspectivas para o novo ano. Havia otimismo com a recuperação econômica e a vacinação.

Mandei o texto: 2021 vai ser pior. Não sabia, claro, da diabólica variante de Manaus, mas me preocupava com o fim do auxílio emergencial. Já a indiferença, a perda de coesão social, não davam pra ver de longe.

O sofrimento enorme de muitas famílias no País é evitável e no trilionário orçamento dos governos há espaço, embora falte disposição, para combater a fome. Naturalizaremos mães famintas na cadeia como naturalizamos com desfaçatez as vantagens dos ricos com o “não é ilegal”? 

Na recessão da Dilma, Rosângela Sibele tinha furtado desodorantes. Deveria ter aberto uma offshore. 

DOUTOR EM ECONOMIA 

Não conheço Rosângela Sibele. Escolhi sua história para este Dia das Crianças. Li sobre ela nos jornais: suco Tang, miojos e uma garrafinha de Coca-Cola. Mãe de cinco, sendo duas crianças pequenas, ela disse que estava com fome ao ser presa pelo furto. Consegui imaginar mais sobre o seu drama nas anódinas planilhas do Portal da Transparência. 

É que com as informações burocráticas do site é possível conjecturar sobre a sua desgraça, comum a tantos brasileiros neste 2021. Rosângela Sibele nunca foi beneficiária do Bolsa Família. Recebeu o auxílio emergencial em 2020.

Neste ano, parece ter sido cortada fora. Como o ministro Paulo Guedes argumentou no início do ano, o auxílio emergencial até voltaria em 2021, após ser suspenso durante a segunda onda, mas seria focalizado.

'No trilionário orçamento dos governos há espaço para combater a fome' Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Índole indiscutivelmente voltada à delinquência. Apesar do pleito da Defensoria, Rosângela Sibele teve a soltura negada pela primeira e pela segunda instância.

Os desembargadores consideraram que seu comportamento perdeu a característica de bagatela e o princípio da insignificância não pode ser acolhido. Rosângela Sibele já havia furtado alimentos e produtos higiênicos duas vezes, antes da pandemia.

Por que uma mãe que furta alimentos nunca esteve no nosso principal programa social? Por que foi preciso uma pandemia e um benefício generoso como o auxílio emergencial de 2020 para receber apoio? Por que no pior momento da crise ele foi cortado? Sua história, assim de longe, parece contar o fracasso de nossa política social que perpassa vários governos. 

Pode ser que você ache que benefícios como o Bolsa Família deveriam ser focalizados ou pode ser que ache que deveriam ser expandidos: em qualquer versão uma mãe em insegurança alimentar deveria fazer parte. Não é nem como se ela morasse em um rincão, porque vivia na maior cidade do País.

Doravante, vamos chamá-la de Faminta. Para aproveitar a ironia da história. É que o relator da prisão se chama Farto. Foi o Dr. Farto que escreveu que, por conta dos furtos anteriores, a Faminta tem índole indiscutivelmente voltada à delinquência. Como se a pandemia, o desemprego, a inflação – e a desproteção estatal – não existissem. 

Os demais desembargadores acompanharam Farto, e Faminta continuou na cadeia. Dou um suco Tang para o leitor que descobrir se Farto estava entre os desembargadores do TJ que recebiam auxílio-moradia, equivalente a umas 200 vezes o valor do furto de Faminta.

Licitamente, claro, assim é como é considerado lícito para o Estado “focalizar” e não pagar o Bolsa ou o auxílio a quem tem direito. Ou como é lícito o dinheiro de ministro de Estado morar em paraíso fiscal.

Faminta, a sem o auxílio emergencial ou auxílio-moradia, mora na rua. De fato, ao que parece não tem a guarda das crianças, que já estariam com a avó. Talvez seja um alívio para o leitor que se pergunta, como eu, se neste Dia das Crianças os filhos percebem que a mãe está na cadeia.

Ou para o católico que se pergunta se, neste Dia de Nossa Senhora Aparecida, a mãe já se acostumou com a distância dos filhos. Também é lembrete de que transferências de renda, embora importantes, não conseguem mudar muitas coisas – a própria crise habitacional, por exemplo. 

No final do ano passado, meu editor me pediu um texto para um especial do jornal, que sairia no inicinho de janeiro com perspectivas para o novo ano. Havia otimismo com a recuperação econômica e a vacinação.

Mandei o texto: 2021 vai ser pior. Não sabia, claro, da diabólica variante de Manaus, mas me preocupava com o fim do auxílio emergencial. Já a indiferença, a perda de coesão social, não davam pra ver de longe.

O sofrimento enorme de muitas famílias no País é evitável e no trilionário orçamento dos governos há espaço, embora falte disposição, para combater a fome. Naturalizaremos mães famintas na cadeia como naturalizamos com desfaçatez as vantagens dos ricos com o “não é ilegal”? 

Na recessão da Dilma, Rosângela Sibele tinha furtado desodorantes. Deveria ter aberto uma offshore. 

DOUTOR EM ECONOMIA 

Não conheço Rosângela Sibele. Escolhi sua história para este Dia das Crianças. Li sobre ela nos jornais: suco Tang, miojos e uma garrafinha de Coca-Cola. Mãe de cinco, sendo duas crianças pequenas, ela disse que estava com fome ao ser presa pelo furto. Consegui imaginar mais sobre o seu drama nas anódinas planilhas do Portal da Transparência. 

É que com as informações burocráticas do site é possível conjecturar sobre a sua desgraça, comum a tantos brasileiros neste 2021. Rosângela Sibele nunca foi beneficiária do Bolsa Família. Recebeu o auxílio emergencial em 2020.

Neste ano, parece ter sido cortada fora. Como o ministro Paulo Guedes argumentou no início do ano, o auxílio emergencial até voltaria em 2021, após ser suspenso durante a segunda onda, mas seria focalizado.

'No trilionário orçamento dos governos há espaço para combater a fome' Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Índole indiscutivelmente voltada à delinquência. Apesar do pleito da Defensoria, Rosângela Sibele teve a soltura negada pela primeira e pela segunda instância.

Os desembargadores consideraram que seu comportamento perdeu a característica de bagatela e o princípio da insignificância não pode ser acolhido. Rosângela Sibele já havia furtado alimentos e produtos higiênicos duas vezes, antes da pandemia.

Por que uma mãe que furta alimentos nunca esteve no nosso principal programa social? Por que foi preciso uma pandemia e um benefício generoso como o auxílio emergencial de 2020 para receber apoio? Por que no pior momento da crise ele foi cortado? Sua história, assim de longe, parece contar o fracasso de nossa política social que perpassa vários governos. 

Pode ser que você ache que benefícios como o Bolsa Família deveriam ser focalizados ou pode ser que ache que deveriam ser expandidos: em qualquer versão uma mãe em insegurança alimentar deveria fazer parte. Não é nem como se ela morasse em um rincão, porque vivia na maior cidade do País.

Doravante, vamos chamá-la de Faminta. Para aproveitar a ironia da história. É que o relator da prisão se chama Farto. Foi o Dr. Farto que escreveu que, por conta dos furtos anteriores, a Faminta tem índole indiscutivelmente voltada à delinquência. Como se a pandemia, o desemprego, a inflação – e a desproteção estatal – não existissem. 

Os demais desembargadores acompanharam Farto, e Faminta continuou na cadeia. Dou um suco Tang para o leitor que descobrir se Farto estava entre os desembargadores do TJ que recebiam auxílio-moradia, equivalente a umas 200 vezes o valor do furto de Faminta.

Licitamente, claro, assim é como é considerado lícito para o Estado “focalizar” e não pagar o Bolsa ou o auxílio a quem tem direito. Ou como é lícito o dinheiro de ministro de Estado morar em paraíso fiscal.

Faminta, a sem o auxílio emergencial ou auxílio-moradia, mora na rua. De fato, ao que parece não tem a guarda das crianças, que já estariam com a avó. Talvez seja um alívio para o leitor que se pergunta, como eu, se neste Dia das Crianças os filhos percebem que a mãe está na cadeia.

Ou para o católico que se pergunta se, neste Dia de Nossa Senhora Aparecida, a mãe já se acostumou com a distância dos filhos. Também é lembrete de que transferências de renda, embora importantes, não conseguem mudar muitas coisas – a própria crise habitacional, por exemplo. 

No final do ano passado, meu editor me pediu um texto para um especial do jornal, que sairia no inicinho de janeiro com perspectivas para o novo ano. Havia otimismo com a recuperação econômica e a vacinação.

Mandei o texto: 2021 vai ser pior. Não sabia, claro, da diabólica variante de Manaus, mas me preocupava com o fim do auxílio emergencial. Já a indiferença, a perda de coesão social, não davam pra ver de longe.

O sofrimento enorme de muitas famílias no País é evitável e no trilionário orçamento dos governos há espaço, embora falte disposição, para combater a fome. Naturalizaremos mães famintas na cadeia como naturalizamos com desfaçatez as vantagens dos ricos com o “não é ilegal”? 

Na recessão da Dilma, Rosângela Sibele tinha furtado desodorantes. Deveria ter aberto uma offshore. 

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