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Opinião|O Amor nos Tempos da Seca


Anúncio no Tinder, 2015: tenho água das 6h às 15h, procuro mulher com água das 15h às 6h para relacionamento limpinho.

Por Renato Essenfelder
  Foto: Estadão

arte: loro verz

trilha sonora: Samba do Grande Amor

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» Anúncio no Tinder, 2015: tenho água das 6h às 15h, procuro mulher com água das 15h às 6h para relacionamento limpinho. 

Tinder, 2016: tenho água aos sábados, procuro parceira com água às quartas. Revezo banho.

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 ***

 Aconteceu num sábado em São Paulo. Marcaram encontro num bar, num show de jazz e destilados - a cerveja acabara, a água acabara, mas restavam uísque e cachaça. Morena, olhos castanhos, olhar meio perdido. Disse que era bailarina. Engataram um papo de horas, descobriram suas coincidências. Ele, fascinado.

Na sua casa ou na minha? "Na sua", ela não hesitou. Foram para a casa dele. No caminho ele tentava avançar: mãos sobre as coxas, um beijo no pescoço. Ela resistia. "Calma." Chegaram. Ele afoito empurrou-a porta adentro, apertando sua cintura e tentando avançar lábios sobre lábios. "Calma."

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- Preciso de uma ducha, tudo bem?

Ele tremeu. Como assim, uma ducha? A minha ducha? Mas então pensou: bailarina, olhos castanhos, lânguidos. Mãos compridas, seios firmes. Linda. Claro, eu te espero. Foi para o quarto, deitou-se apenas de cueca, ensaiando alguma posição sensual para impressioná-la (três uísques além da possibilidade do ridículo). Estalou os dedos. Quatro dedos. Estava ansioso.

Mas: cinco minutos, seis minutos. Porra, a essa altura já deveria ter saído. Oito minutos. Começou a se desesperar. Sentiu uma pontada na altura do umbigo. Eram os rins, as malditas pedras nos rins. Tentou lembrar da última vez em que bebera água. Anteontem, naquela festa na casa do Paulinho. Ele tentou regular, mas arregacei logo dois copos. Riu-se. Outra pontada. Quase dez minutos. Caralho, a Sabesp vai me ferrar. E os vizinhos? E se os vizinhos descobrem? Tremeu com a visão de piquetes à porta de casa, aquela multidão de colegas-de-elevador empunhando ancinhos e tochas. Queimem o filho da puta dos dez minutos!

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Desde que a água acabara, em 2015, tinha se esmerado para cultivar a imagem de cidadão consciente. Banho só uma vez por semana, e de canequinha. Era, com orgulho, um homem de três minutos. A maioria era homem de seis, no máximo cinco. Ele, não. Banhava-se em três minutos, uma vez por semana, com exatos 200 ml de água cuidadosamente espargida por lencinhos e petelecos.

Onze minutos e se desesperou. Correu para a porta do banheiro e a esmurrou. Tudo bem? Está tudo bem aí? Silêncio. Ei! Tudo bem aí? Batendo e batendo com mais força a cada segundo.

Silêncio. O registro fecha, o chuveiro silencia. Pelo menos isso.

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A mulher abriu a porta. Linda e calada, já vestida, cheirando a sabonete - sabonete, meu Deus, ela usou sabonete! - e água morna. Sorriu. "Calma, me espera no quarto." Ele respirou fundo o precioso vapor d'água e conteve um pouco o pânico. Ali, ridículo, de cuecas, suado no meio do corredor do apartamento (vou precisar de mais um lencinho, pensou rapidamente, mas afastou a ideia com a pressa de quem antevê uma noite fenomenal de amor).

Voltou para o quarto, sorrindo.

Enquanto aguardava, ansioso, ela, em menos de dois minutos, desapareceu. Com os saltos nas mãos caminhou como um felino pela casa até cruzar a porta, entrar no elevador e desaparecer para sempre.

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Triunfal: havia conseguido garantir seu banho. Estava sem água havia cinco dias, e já enlouquecia com a falta de perspectiva de um banho minucioso, sem truques de lenços ou esponjas umedecidas.

Contra a seca, só o amor.

Só o amor salva. Da seca.  «

 

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 ***

 Aconteceu num sábado em São Paulo. Marcaram encontro num bar, num show de jazz e destilados - a cerveja acabara, a água acabara, mas restavam uísque e cachaça. Morena, olhos castanhos, olhar meio perdido. Disse que era bailarina. Engataram um papo de horas, descobriram suas coincidências. Ele, fascinado.

Na sua casa ou na minha? "Na sua", ela não hesitou. Foram para a casa dele. No caminho ele tentava avançar: mãos sobre as coxas, um beijo no pescoço. Ela resistia. "Calma." Chegaram. Ele afoito empurrou-a porta adentro, apertando sua cintura e tentando avançar lábios sobre lábios. "Calma."

- Preciso de uma ducha, tudo bem?

Ele tremeu. Como assim, uma ducha? A minha ducha? Mas então pensou: bailarina, olhos castanhos, lânguidos. Mãos compridas, seios firmes. Linda. Claro, eu te espero. Foi para o quarto, deitou-se apenas de cueca, ensaiando alguma posição sensual para impressioná-la (três uísques além da possibilidade do ridículo). Estalou os dedos. Quatro dedos. Estava ansioso.

Mas: cinco minutos, seis minutos. Porra, a essa altura já deveria ter saído. Oito minutos. Começou a se desesperar. Sentiu uma pontada na altura do umbigo. Eram os rins, as malditas pedras nos rins. Tentou lembrar da última vez em que bebera água. Anteontem, naquela festa na casa do Paulinho. Ele tentou regular, mas arregacei logo dois copos. Riu-se. Outra pontada. Quase dez minutos. Caralho, a Sabesp vai me ferrar. E os vizinhos? E se os vizinhos descobrem? Tremeu com a visão de piquetes à porta de casa, aquela multidão de colegas-de-elevador empunhando ancinhos e tochas. Queimem o filho da puta dos dez minutos!

Desde que a água acabara, em 2015, tinha se esmerado para cultivar a imagem de cidadão consciente. Banho só uma vez por semana, e de canequinha. Era, com orgulho, um homem de três minutos. A maioria era homem de seis, no máximo cinco. Ele, não. Banhava-se em três minutos, uma vez por semana, com exatos 200 ml de água cuidadosamente espargida por lencinhos e petelecos.

Onze minutos e se desesperou. Correu para a porta do banheiro e a esmurrou. Tudo bem? Está tudo bem aí? Silêncio. Ei! Tudo bem aí? Batendo e batendo com mais força a cada segundo.

Silêncio. O registro fecha, o chuveiro silencia. Pelo menos isso.

A mulher abriu a porta. Linda e calada, já vestida, cheirando a sabonete - sabonete, meu Deus, ela usou sabonete! - e água morna. Sorriu. "Calma, me espera no quarto." Ele respirou fundo o precioso vapor d'água e conteve um pouco o pânico. Ali, ridículo, de cuecas, suado no meio do corredor do apartamento (vou precisar de mais um lencinho, pensou rapidamente, mas afastou a ideia com a pressa de quem antevê uma noite fenomenal de amor).

Voltou para o quarto, sorrindo.

Enquanto aguardava, ansioso, ela, em menos de dois minutos, desapareceu. Com os saltos nas mãos caminhou como um felino pela casa até cruzar a porta, entrar no elevador e desaparecer para sempre.

Triunfal: havia conseguido garantir seu banho. Estava sem água havia cinco dias, e já enlouquecia com a falta de perspectiva de um banho minucioso, sem truques de lenços ou esponjas umedecidas.

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Na sua casa ou na minha? "Na sua", ela não hesitou. Foram para a casa dele. No caminho ele tentava avançar: mãos sobre as coxas, um beijo no pescoço. Ela resistia. "Calma." Chegaram. Ele afoito empurrou-a porta adentro, apertando sua cintura e tentando avançar lábios sobre lábios. "Calma."

- Preciso de uma ducha, tudo bem?

Ele tremeu. Como assim, uma ducha? A minha ducha? Mas então pensou: bailarina, olhos castanhos, lânguidos. Mãos compridas, seios firmes. Linda. Claro, eu te espero. Foi para o quarto, deitou-se apenas de cueca, ensaiando alguma posição sensual para impressioná-la (três uísques além da possibilidade do ridículo). Estalou os dedos. Quatro dedos. Estava ansioso.

Mas: cinco minutos, seis minutos. Porra, a essa altura já deveria ter saído. Oito minutos. Começou a se desesperar. Sentiu uma pontada na altura do umbigo. Eram os rins, as malditas pedras nos rins. Tentou lembrar da última vez em que bebera água. Anteontem, naquela festa na casa do Paulinho. Ele tentou regular, mas arregacei logo dois copos. Riu-se. Outra pontada. Quase dez minutos. Caralho, a Sabesp vai me ferrar. E os vizinhos? E se os vizinhos descobrem? Tremeu com a visão de piquetes à porta de casa, aquela multidão de colegas-de-elevador empunhando ancinhos e tochas. Queimem o filho da puta dos dez minutos!

Desde que a água acabara, em 2015, tinha se esmerado para cultivar a imagem de cidadão consciente. Banho só uma vez por semana, e de canequinha. Era, com orgulho, um homem de três minutos. A maioria era homem de seis, no máximo cinco. Ele, não. Banhava-se em três minutos, uma vez por semana, com exatos 200 ml de água cuidadosamente espargida por lencinhos e petelecos.

Onze minutos e se desesperou. Correu para a porta do banheiro e a esmurrou. Tudo bem? Está tudo bem aí? Silêncio. Ei! Tudo bem aí? Batendo e batendo com mais força a cada segundo.

Silêncio. O registro fecha, o chuveiro silencia. Pelo menos isso.

A mulher abriu a porta. Linda e calada, já vestida, cheirando a sabonete - sabonete, meu Deus, ela usou sabonete! - e água morna. Sorriu. "Calma, me espera no quarto." Ele respirou fundo o precioso vapor d'água e conteve um pouco o pânico. Ali, ridículo, de cuecas, suado no meio do corredor do apartamento (vou precisar de mais um lencinho, pensou rapidamente, mas afastou a ideia com a pressa de quem antevê uma noite fenomenal de amor).

Voltou para o quarto, sorrindo.

Enquanto aguardava, ansioso, ela, em menos de dois minutos, desapareceu. Com os saltos nas mãos caminhou como um felino pela casa até cruzar a porta, entrar no elevador e desaparecer para sempre.

Triunfal: havia conseguido garantir seu banho. Estava sem água havia cinco dias, e já enlouquecia com a falta de perspectiva de um banho minucioso, sem truques de lenços ou esponjas umedecidas.

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Na sua casa ou na minha? "Na sua", ela não hesitou. Foram para a casa dele. No caminho ele tentava avançar: mãos sobre as coxas, um beijo no pescoço. Ela resistia. "Calma." Chegaram. Ele afoito empurrou-a porta adentro, apertando sua cintura e tentando avançar lábios sobre lábios. "Calma."

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Ele tremeu. Como assim, uma ducha? A minha ducha? Mas então pensou: bailarina, olhos castanhos, lânguidos. Mãos compridas, seios firmes. Linda. Claro, eu te espero. Foi para o quarto, deitou-se apenas de cueca, ensaiando alguma posição sensual para impressioná-la (três uísques além da possibilidade do ridículo). Estalou os dedos. Quatro dedos. Estava ansioso.

Mas: cinco minutos, seis minutos. Porra, a essa altura já deveria ter saído. Oito minutos. Começou a se desesperar. Sentiu uma pontada na altura do umbigo. Eram os rins, as malditas pedras nos rins. Tentou lembrar da última vez em que bebera água. Anteontem, naquela festa na casa do Paulinho. Ele tentou regular, mas arregacei logo dois copos. Riu-se. Outra pontada. Quase dez minutos. Caralho, a Sabesp vai me ferrar. E os vizinhos? E se os vizinhos descobrem? Tremeu com a visão de piquetes à porta de casa, aquela multidão de colegas-de-elevador empunhando ancinhos e tochas. Queimem o filho da puta dos dez minutos!

Desde que a água acabara, em 2015, tinha se esmerado para cultivar a imagem de cidadão consciente. Banho só uma vez por semana, e de canequinha. Era, com orgulho, um homem de três minutos. A maioria era homem de seis, no máximo cinco. Ele, não. Banhava-se em três minutos, uma vez por semana, com exatos 200 ml de água cuidadosamente espargida por lencinhos e petelecos.

Onze minutos e se desesperou. Correu para a porta do banheiro e a esmurrou. Tudo bem? Está tudo bem aí? Silêncio. Ei! Tudo bem aí? Batendo e batendo com mais força a cada segundo.

Silêncio. O registro fecha, o chuveiro silencia. Pelo menos isso.

A mulher abriu a porta. Linda e calada, já vestida, cheirando a sabonete - sabonete, meu Deus, ela usou sabonete! - e água morna. Sorriu. "Calma, me espera no quarto." Ele respirou fundo o precioso vapor d'água e conteve um pouco o pânico. Ali, ridículo, de cuecas, suado no meio do corredor do apartamento (vou precisar de mais um lencinho, pensou rapidamente, mas afastou a ideia com a pressa de quem antevê uma noite fenomenal de amor).

Voltou para o quarto, sorrindo.

Enquanto aguardava, ansioso, ela, em menos de dois minutos, desapareceu. Com os saltos nas mãos caminhou como um felino pela casa até cruzar a porta, entrar no elevador e desaparecer para sempre.

Triunfal: havia conseguido garantir seu banho. Estava sem água havia cinco dias, e já enlouquecia com a falta de perspectiva de um banho minucioso, sem truques de lenços ou esponjas umedecidas.

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Opinião por Renato Essenfelder

Escritor e professor universitário, com um pé no Brasil e outro em Portugal. Doutor em Ciências da Comunicação pela USP e autor de Febre (2013), As Moiras (2014) e Ninguém Mais Diz Adeus (2020). Docente e pesquisador nas áreas de storytelling e escrita criativa, escreve crônicas de cultura e comportamento no Estadão desde 2013.

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