The Economist: entenda motivos de a Arábia Saudita gastar fortuna no esporte


País diz que investimento ajudará a diversificar sua economia. Críticos chamam a operação de ‘sportswashing’

Por The Economist
Atualização:

The Economist - A maior competição de futebol da Arábia Saudita, a Saudi Pro League, começou a temporada 2023-24. O torneio da última temporada não chegou a empolgar a torcida. Em média, apenas 9.300 torcedores assistiram aos jogos. Em três das últimas cinco temporadas, o artilheiro foi Abderrazak Hamdallah, um marroquino que não jogou em nenhum dos principais clubes do mundo.

Mas esta temporada pode ser diferente. A equipe de Hamdallah, o Al Ittihad, acaba de contratar Karim Benzema, vencedor da Bola de Ouro 2022, do Real Madrid, e N’Golo Kante, estrela do Chelsea. Em janeiro, Cristiano Ronaldo, cinco vezes vencedor da Bola de Ouro, transferiu-se do Manchester United para o Al Nassr, outro clube saudita. O ex-atacante do Liverpool Sadio Mané se juntou a ele no clube, enquanto o capitão do Liverpool, Jordan Henderson, assinou com o Al Ettifaq. A lista continua. Os times da liga saudita gastaram mais de US$ 480 milhões neste verão, colocando-os entre os maiores gastadores do futebol global.

Os movimentos da Pro League são apenas uma parte de um esforço multibilionário da Arábia Saudita no esporte global, apoiado por Muhammad bin Salman, conhecido como MBS, o príncipe herdeiro e governante de fato. A iniciativa vai muito além do futebol e está agitando o golfe, a Fórmula 1, o boxe e muito mais. A ambição de MBS é usar o esporte para modernizar a Arábia Saudita e transformar a percepção do mundo exterior sobre o reino de 36 milhões de pessoas.

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Benzema seguiu os passos de Cristiano Ronaldo e foi jogar na Arábia Saudita Foto: Stringer / Reuters

A investida saudita acontece no momento em que a indústria esportiva global está sendo abalada pela disrupção digital e uma nova onda de investimentos em private equity. Os críticos acusam MBS de promover projetos de vaidade e sportswashing - ou seja, fazer “lavagem esportiva”, usar o esporte para limpar a reputação do país, marcada por abusos dos direitos humanos. Autoridades sauditas se ressentem de tais críticas. Fahad Nazer, da embaixada saudita em Washington, diz que a ideia de que o país vem fazendo sportswashing “está muito longe da verdade”. Ele diz que essas afirmações cheiram a “etnocentrismo”: tudo foi feito, diz ele, tendo em mente a Arábia Saudita e seus cidadãos - não os ocidentais.

Muitos observadores acreditam que os movimentos mudarão não apenas a Arábia Saudita, mas todo o esporte global, apresentando uma nova força dinâmica e arrancando a iniciativa dos enfadonhos guardiões de times e torneios ocidentais. Os gastos vêm ocorrendo há vários anos, mas até recentemente seu escopo total foi obscurecido por uma abordagem dispersiva. Investimentos e negociações ocorreram em várias camadas da indústria esportiva, como compra de jogadores, aquisição de clubes estrangeiros, desenvolvimento de clubes nacionais e compra ou desenvolvimento de torneios no país e no exterior.

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Esses negócios têm sido buscados por um esquadrão de entidades sauditas, entre elas o próprio governo, o Fundo de Investimento Público (PIF, na sigla em inglês), um fundo soberano e até a Saudi Aramco, a petrolífera que é a empresa mais lucrativa do mundo. O escopo é impressionante, com pelo menos US$ 10 bilhões gastos em meia dúzia de esportes importantes.

VAMOS LÁ, RAPAZES

Em 2021, um consórcio liderado pela Arábia Saudita assumiu o controle do Newcastle United, um time histórico, mas em dificuldades, da Premier League inglesa, por US$ 391 milhões. Além de desenvolver sua liga nacional, há intensa especulação de que a Arábia Saudita lançará uma candidatura para sediar a Copa do Mundo, talvez em 2030, seguindo os passos do vizinho Catar em 2022. Acredita-se que em 2021 o dinheiro do Golfo tenha apoiado a tentativa de criar uma superliga europeia, que entrou em colapso após a oposição dos torcedores.

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No golfe, a principal organização dos Estados Unidos, o PGA Tour, acaba de concordar com uma fusão com o LIV Golf, um torneio iniciante saudita que causou furor no esporte ao oferecer aos melhores jogadores centenas de milhões de dólares para trocar sua lealdade. O DP World Tour da Europa, outra instituição organizadora, também faz parte do acordo. Donald Trump, cujos campos recebem eventos LIV, descreve-o como um “negócio lindo e glamoroso”. Elizabeth Warren e Ron Wyden, dois senadores de esquerda, recentemente condenaram “a última tentativa do regime saudita de limpar seus abusos” em uma carta pública ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

A Arábia Saudita sedia um novo Grande Prêmio de Fórmula 1 em Jeddah e está construindo uma pista perto da capital, Riad. Investidores sauditas teriam considerado oferecer US$ 20 bilhões por toda a Fórmula 1 no ano passado. O ministro do Esporte saudita rejeitou os relatos como “pura especulação”. A Aramco continua sendo um dos principais patrocinadores da F1.

Uma autoridade do circuito masculino de tênis ATP admitiu ter conversado “positivamente” com possíveis investidores, entre eles o PIF. O tour de tênis feminino WTA está considerando a possibilidade de realizar um evento na Arábia Saudita e um dirigente visitou o país recentemente. O reino agora é palco de grandes lutas de boxe, noites de luta livre e eventos de eSports. Apesar do clima, o país também foi selecionado para sediar os Jogos Asiáticos de Inverno em 2029.

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Prova no Circuito de Jeddah Corniche faz parte do calendário da Fórmula 1 Foto: Hamad I Mohammed / Reuters

UMA LIGA PRÓPRIA

Por que o país está esbanjando nos esportes? Também tem a ver com vaidade e inveja. Muitos membros da realeza saudita são fãs e torcedores. Investiram em times de outros lugares e agora querem ter seus próprios. Também querem ser levados a sério entre a elite esportiva global. Yasir Al-Rumayyan, diretor do PIF, é fanático por golfe. Documentos divulgados em recentes audiências do Congresso sobre o acordo PGA Tour-LIV sugerem que uma ideia proposta durante a transação foi que ele poderia se tornar membro do Augusta, o clube mais exclusivo dos Estados Unidos.

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Os sauditas observaram como seus vizinhos intensificaram os investimentos. A corrida começou em 1993, diz Danyel Reiche, da Georgetown University, no Catar. Foi quando o Catar sediou pela primeira vez um torneio de tênis masculino ATP (Boris Becker venceu). O país gastou US$ 200 bilhões se preparando para sediar a Copa do Mundo de 2022. Um de seus membros da realeza também é dono do Paris St. Germain, um dos principais clubes franceses. O Manchester City, de propriedade da realeza de Abu Dhabi, agora é a marca de futebol mais valiosa do mundo.

Mas o plano saudita vai muito além de regalias para suas elites e tentativas de acompanhar o ritmo dos vizinhos. Preços e produção de energia flutuantes significam que suas exportações de petróleo devem ultrapassar US$ 166 bilhões este ano, ou 16% do PIB. Com a transição energética global se aproximando, o plano “Visão 2030″ visa diversificar a economia do reino para além do petróleo, desenvolvendo novas indústrias e liberalizando a economia, inclusive colocando mais mulheres na força de trabalho. O PIF é um ator importante, usando seus mais de US$ 700 bilhões em fundos para redistribuir capital em novas áreas da economia e fazer investimentos estratégicos em marcas e tecnologia.

O reino quer que a Saudi Pro League atraia investimentos e torcedores. O objetivo é receber 100 milhões de visitantes por ano até 2030 (foram 64 milhões em 2021). As autoridades esperam que até lá a liga quadruplique sua receita para US$ 480 milhões, embora isso ainda seja insignificante diante, por exemplo, da Premier League inglesa, que gerou dez vezes mais no ano passado.

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O esporte, espera-se, terá um efeito de transbordamento para o resto da economia. Parte disso é um exercício de rebranding em uma região conhecida por conflitos religiosos, extremismo e guerra. “É melhor que todos trabalhem juntos pela prosperidade na região, não pelo conflito, e os sauditas querem ser vistos na vanguarda desse processo”, explica Steven Cook, do Council on Foreign Relations, um instituto de pesquisa em Nova York.

Uma marca melhor e mais eventos podem impulsionar o setor de turismo, que o governo espera que aumente de 3% do PIB em 2019 para 10% em 2030. Quando você quer se tornar um destino de férias, o poder das estrelas ajuda: Lionel Messi, talvez o maior jogador de futebol em atividade, é um embaixador do turismo saudita e publica fotos ensolaradas para seus 482 milhões de seguidores no Instagram.

O esporte pode até ser útil como mecanismo para complementar a reforma social. Nos últimos anos, o governo saudita se tornou mais receptivo à mistura de sexos em público e tomou algumas medidas para controlar sua rigorosa polícia religiosa. As mulheres finalmente foram autorizadas a dirigir em 2018. Agora o país está apoiando esportes femininos e masculinos. A seleção saudita de futebol feminino conquistou seu primeiro ranking da Fifa em março. Tudo isso pode deixar o país mais atraente para as turistas do sexo feminino.

Em toda a região, a realização de eventos esportivos “em geral foi percebida de forma positiva pelos habitantes”, diz Wadih Ishac, professor assistente de gestão esportiva na Universidade do Catar. Nazer, da embaixada saudita em Washington, aponta que 70% da população saudita tem menos de 35 anos e que os jovens adoram os eventos esportivos.

O plano mestre enfrenta dois grandes riscos. O primeiro é que seus modelos de negócios não funcionem. Os proprietários do Golfo claramente sabem administrar negócios esportivos. O Manchester City prosperou com seu investidor dos Emirados Árabes Unidos (embora em fevereiro a Premier League o tenha acusado de supostamente quebrar regras financeiras, uma acusação que o clube nega). Durante o primeiro ano de propriedade saudita, o Newcastle United gastou cerca de US$ 126 milhões e saiu da zona de rebaixamento. O clube ficou em quarto lugar, classificando-se para a Liga dos Campeões, principal competição de clubes da Europa, pela primeira vez em vinte anos.

Ainda assim, na Arábia Saudita, o esporte é uma preocupação estatal, e não empresarial, com todos os problemas que isso pode acarretar. Em junho, alguns dos principais clubes de futebol, anteriormente sob o controle do Ministério do Esporte, foram supostamente privatizados. Mas o PIF tem 75% de participação em quatro times. A petroleira Aramco tem outro time e Neom, a metrópole que está sendo construída no deserto, também tem um clube na segunda divisão. “É quase como se os clubes de futebol tivessem se tornado estatais na Arábia Saudita”, diz Simon Chadwick, da Skema Business School, em Paris. Em vez de um novo motor dinâmico da economia, o esporte poderia se tornar uma manifestação de seu antigo sistema de patrocínio estatal.

Para atrair estrelas, os salários precisam ser enormes. Benzema supostamente assinou um contrato de dois anos no valor de US$ 440 milhões e há rumores de que Ronaldo ganha US$ 200 milhões por ano. Neste verão, o Al Hilal ofereceu um recorde de US$ 330 milhões ao Paris St. Germain pela estrela francesa Kylian Mbappé, que até agora recusou. O jogador de golfe Phil Mickelson embolsou US$ 200 milhões do LIV Golf, apesar de certa vez ter caracterizado os sauditas como “filhos da puta assustadores” (depois ele se desculpou). Salários colossais significam que até mesmo os times europeus mais bem-sucedidos estão com dificuldades para ganhar dinheiro. Mais da metade das equipes da Premier League tiveram perdas em 2022 e, no geral, as ligas da Itália, Alemanha e Espanha estão no vermelho. (A Exor, que tem participação na controladora da revista The Economist, também é investidora da Juventus, um clube de futebol italiano, e da Ferrari, uma montadora italiana).

Graças à sua riqueza em petróleo, o experimento saudita não quebrará o banco. De acordo com o relatório anual do PIF em 2021, lazer e entretenimento representaram apenas 1,6% de seus ativos. Mas a combinação de baixas receitas domésticas e altos custos pode significar que muitos empreendimentos esportivos sauditas não consigam se sustentar ou competir globalmente sem subsídios.

A Arábia Saudita pode enfrentar alguns dos mesmos problemas que a China encarou com o futebol quando tentou impulsionar Super League na última década. Estrelas caras e importadas podem reclamar do padrão do futebol e haverá muito ceticismo sobre a sustentabilidade do atual nível de gastos. Mas o apoio do estado anulará os problemas financeiros e o escrutínio político que dificultaram o projeto chinês. Os sauditas também estão tentando atrair talentos mais jovens, e não apenas ser como os Estados Unidos, onde muitos jogadores importantes de clubes europeus tradicionalmente jogam seus últimos anos.

Cristiano Ronaldo foi o primeiro astro contratado para o projeto do futebol na Arábia Saudita Foto: EFE

Mas o pequeno público doméstico da Arábia Saudita também pode barrar suas ambições. Há um exemplo de uma economia emergente assumindo um papel dominante nas operações comerciais de um esporte global. Em 2008, a Índia lançou a Indian Premier League (IPL), um torneio de críquete. No ano passado, os direitos de transmissão das partidas nos próximos cinco anos foram vendidos por mais de US$ 6 bilhões, tornando-a a segunda liga esportiva mais lucrativa do mundo por jogo, depois da NFL, a liga de futebol americano. A influência financeira da Índia deu a ela uma voz poderosa sobre o críquete em todo o mundo. Mas a base do sucesso da Índia tem sido a escala do público, com 1,4 bilhão de cidadãos loucos por críquete. A Arábia Saudita não consegue rivalizar com isso.

O segundo grande perigo é que o impulso desencadeie uma reação. O esporte às vezes é uma indústria sensível e o status da Arábia Saudita como estado autocrático não ajuda. Vários grupos de direitos humanos acusaram os sauditas de sportswashing, por exemplo, quando a Fifa concedeu a eles a Copa do Mundo de Clubes de 2023.

É uma nova versão de uma velha ideia: regimes sórdidos usando esportes para exibir seus modelos políticos, como Mussolini fez com a Copa do Mundo em 1934 e Hitler com as Olimpíadas de 1936. A Alemanha Oriental e a União Soviética tinham programas de doping patrocinados pelo estado nas décadas de 1970 e 1980. Mais recentemente, a China foi acusada de sportswashing quando sediou as Olimpíadas de Inverno no ano passado, assim como a Rússia quando sediou a Copa do Mundo de futebol em 2018. O Catar também enfrentou muitas críticas em 2022.

Hoje, os críticos apontam para a escassez de liberdades democráticas na Arábia Saudita e a supressão dos direitos das mulheres e dos homossexuais. O terrível assassinato do jornalista Jamal Khashoggi no consulado saudita em Istambul em 2018 não foi esquecido, nem o papel central do reino na sangrenta guerra no Iêmen.

PENÍNSULA INSULAR

No entanto, a política autocrática da Arábia Saudita provavelmente não impedirá que ela assuma um papel crescente nos esportes globais. A classificação para a Liga dos Campeões ajudou bastante a acalmar as críticas ao investimento saudita no Newcastle United. O presidente Joe Biden, depois de qualificar o reino como um “pária” em 2019, agora está empenhado em reparar a aliança americana. Mas a reputação do país pode complicar os negócios. A proposta de fusão do PGA Tour com o LIV Golf criou uma mácula e está sendo avaliada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos para se verificar se viola a lei antitruste.

Os executivos do PGA Tour foram levados a um comitê do Senado no mês passado. O senador Richard Blumenthal reclamou de uma cláusula no acordo que poderia impedir os jogadores de falar mal da Arábia Saudita: “É a cláusula mais abrangente que já vi”. Os apoiadores do acordo no PGA Tour, sem dúvida, procuram sugerir que os sauditas terão um papel secundário - provavelmente uma visão muito diferente da de MBS, na qual os sauditas estão no controle e não só dando dinheiro.

Mas mesmo que alguns negócios não transformem o país da maneira que MBS espera, a Arábia Saudita faz parte de uma mudança mais ampla no esporte global. O aumento dos investimentos do reino integra a ascensão de uma nova corte de fundos soberanos e de private equity que estão investindo pesado em esportes. A Bloomberg informou que as empresas de private equity gastaram US$ 51 bilhões em transações esportivas em 2021, quase o dobro do total de 2017.

As regras de propriedade estão sendo liberalizadas à medida que clubes e torneios buscam novas fontes de capital para se manterem competitivos. As ligas esportivas americanas são as melhores do mundo em arrecadar dinheiro. Desde 2019, várias grandes ligas americanas relaxaram suas regras para permitir investimentos minoritários de investidores institucionais. Em julho, a autoridade de investimentos do Catar fechou um acordo para comprar 5% da empresa matriz do Washington Wizards, um time de basquete americano.

A disrupção digital também acabou atingindo os esportes ao vivo, que eram um dos últimos bastiões da televisão tradicional. Cada vez mais espectadores que “cortaram o cabo” da televisão assistem a esportes por meio de serviços de streaming que oferecem jogos ao vivo, além de destaques, análises e outros conteúdos sob demanda. Essa mudança digital está sendo acompanhada por redemoinhos inesperados e mudanças no público. Por exemplo, a Fórmula 1, antes notável por ter pouca presença nos Estados Unidos, agora está ganhando força por lá, impulsionada por parcerias com a Netflix.

A gastança esportiva saudita reflete em parte a dinâmica dentro do reino: uma nova enxurrada de petrodólares e a ambição de MSB para criar uma sociedade socialmente mais liberal e restaurar sua reputação manchada no Ocidente. Mas as mudanças também refletem a sensação de que há uma nova janela de oportunidade no esporte global: conquistar audiências maiores e mais novas, criar diferentes tipos de eventos e torneios e reinventar os antigos.

O último relatório anual do PIF, divulgado esta semana, inclui o anúncio de um veículo de investimento específico para esportes, sugerindo planos futuros mais ambiciosos. É provável que Benzema e Ronaldo marquem gols nos próximos meses. Já o reino tem muitos outros objetivos. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The Economist - A maior competição de futebol da Arábia Saudita, a Saudi Pro League, começou a temporada 2023-24. O torneio da última temporada não chegou a empolgar a torcida. Em média, apenas 9.300 torcedores assistiram aos jogos. Em três das últimas cinco temporadas, o artilheiro foi Abderrazak Hamdallah, um marroquino que não jogou em nenhum dos principais clubes do mundo.

Mas esta temporada pode ser diferente. A equipe de Hamdallah, o Al Ittihad, acaba de contratar Karim Benzema, vencedor da Bola de Ouro 2022, do Real Madrid, e N’Golo Kante, estrela do Chelsea. Em janeiro, Cristiano Ronaldo, cinco vezes vencedor da Bola de Ouro, transferiu-se do Manchester United para o Al Nassr, outro clube saudita. O ex-atacante do Liverpool Sadio Mané se juntou a ele no clube, enquanto o capitão do Liverpool, Jordan Henderson, assinou com o Al Ettifaq. A lista continua. Os times da liga saudita gastaram mais de US$ 480 milhões neste verão, colocando-os entre os maiores gastadores do futebol global.

Os movimentos da Pro League são apenas uma parte de um esforço multibilionário da Arábia Saudita no esporte global, apoiado por Muhammad bin Salman, conhecido como MBS, o príncipe herdeiro e governante de fato. A iniciativa vai muito além do futebol e está agitando o golfe, a Fórmula 1, o boxe e muito mais. A ambição de MBS é usar o esporte para modernizar a Arábia Saudita e transformar a percepção do mundo exterior sobre o reino de 36 milhões de pessoas.

Benzema seguiu os passos de Cristiano Ronaldo e foi jogar na Arábia Saudita Foto: Stringer / Reuters

A investida saudita acontece no momento em que a indústria esportiva global está sendo abalada pela disrupção digital e uma nova onda de investimentos em private equity. Os críticos acusam MBS de promover projetos de vaidade e sportswashing - ou seja, fazer “lavagem esportiva”, usar o esporte para limpar a reputação do país, marcada por abusos dos direitos humanos. Autoridades sauditas se ressentem de tais críticas. Fahad Nazer, da embaixada saudita em Washington, diz que a ideia de que o país vem fazendo sportswashing “está muito longe da verdade”. Ele diz que essas afirmações cheiram a “etnocentrismo”: tudo foi feito, diz ele, tendo em mente a Arábia Saudita e seus cidadãos - não os ocidentais.

Muitos observadores acreditam que os movimentos mudarão não apenas a Arábia Saudita, mas todo o esporte global, apresentando uma nova força dinâmica e arrancando a iniciativa dos enfadonhos guardiões de times e torneios ocidentais. Os gastos vêm ocorrendo há vários anos, mas até recentemente seu escopo total foi obscurecido por uma abordagem dispersiva. Investimentos e negociações ocorreram em várias camadas da indústria esportiva, como compra de jogadores, aquisição de clubes estrangeiros, desenvolvimento de clubes nacionais e compra ou desenvolvimento de torneios no país e no exterior.

Esses negócios têm sido buscados por um esquadrão de entidades sauditas, entre elas o próprio governo, o Fundo de Investimento Público (PIF, na sigla em inglês), um fundo soberano e até a Saudi Aramco, a petrolífera que é a empresa mais lucrativa do mundo. O escopo é impressionante, com pelo menos US$ 10 bilhões gastos em meia dúzia de esportes importantes.

VAMOS LÁ, RAPAZES

Em 2021, um consórcio liderado pela Arábia Saudita assumiu o controle do Newcastle United, um time histórico, mas em dificuldades, da Premier League inglesa, por US$ 391 milhões. Além de desenvolver sua liga nacional, há intensa especulação de que a Arábia Saudita lançará uma candidatura para sediar a Copa do Mundo, talvez em 2030, seguindo os passos do vizinho Catar em 2022. Acredita-se que em 2021 o dinheiro do Golfo tenha apoiado a tentativa de criar uma superliga europeia, que entrou em colapso após a oposição dos torcedores.

No golfe, a principal organização dos Estados Unidos, o PGA Tour, acaba de concordar com uma fusão com o LIV Golf, um torneio iniciante saudita que causou furor no esporte ao oferecer aos melhores jogadores centenas de milhões de dólares para trocar sua lealdade. O DP World Tour da Europa, outra instituição organizadora, também faz parte do acordo. Donald Trump, cujos campos recebem eventos LIV, descreve-o como um “negócio lindo e glamoroso”. Elizabeth Warren e Ron Wyden, dois senadores de esquerda, recentemente condenaram “a última tentativa do regime saudita de limpar seus abusos” em uma carta pública ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

A Arábia Saudita sedia um novo Grande Prêmio de Fórmula 1 em Jeddah e está construindo uma pista perto da capital, Riad. Investidores sauditas teriam considerado oferecer US$ 20 bilhões por toda a Fórmula 1 no ano passado. O ministro do Esporte saudita rejeitou os relatos como “pura especulação”. A Aramco continua sendo um dos principais patrocinadores da F1.

Uma autoridade do circuito masculino de tênis ATP admitiu ter conversado “positivamente” com possíveis investidores, entre eles o PIF. O tour de tênis feminino WTA está considerando a possibilidade de realizar um evento na Arábia Saudita e um dirigente visitou o país recentemente. O reino agora é palco de grandes lutas de boxe, noites de luta livre e eventos de eSports. Apesar do clima, o país também foi selecionado para sediar os Jogos Asiáticos de Inverno em 2029.

Prova no Circuito de Jeddah Corniche faz parte do calendário da Fórmula 1 Foto: Hamad I Mohammed / Reuters

UMA LIGA PRÓPRIA

Por que o país está esbanjando nos esportes? Também tem a ver com vaidade e inveja. Muitos membros da realeza saudita são fãs e torcedores. Investiram em times de outros lugares e agora querem ter seus próprios. Também querem ser levados a sério entre a elite esportiva global. Yasir Al-Rumayyan, diretor do PIF, é fanático por golfe. Documentos divulgados em recentes audiências do Congresso sobre o acordo PGA Tour-LIV sugerem que uma ideia proposta durante a transação foi que ele poderia se tornar membro do Augusta, o clube mais exclusivo dos Estados Unidos.

Os sauditas observaram como seus vizinhos intensificaram os investimentos. A corrida começou em 1993, diz Danyel Reiche, da Georgetown University, no Catar. Foi quando o Catar sediou pela primeira vez um torneio de tênis masculino ATP (Boris Becker venceu). O país gastou US$ 200 bilhões se preparando para sediar a Copa do Mundo de 2022. Um de seus membros da realeza também é dono do Paris St. Germain, um dos principais clubes franceses. O Manchester City, de propriedade da realeza de Abu Dhabi, agora é a marca de futebol mais valiosa do mundo.

Mas o plano saudita vai muito além de regalias para suas elites e tentativas de acompanhar o ritmo dos vizinhos. Preços e produção de energia flutuantes significam que suas exportações de petróleo devem ultrapassar US$ 166 bilhões este ano, ou 16% do PIB. Com a transição energética global se aproximando, o plano “Visão 2030″ visa diversificar a economia do reino para além do petróleo, desenvolvendo novas indústrias e liberalizando a economia, inclusive colocando mais mulheres na força de trabalho. O PIF é um ator importante, usando seus mais de US$ 700 bilhões em fundos para redistribuir capital em novas áreas da economia e fazer investimentos estratégicos em marcas e tecnologia.

O reino quer que a Saudi Pro League atraia investimentos e torcedores. O objetivo é receber 100 milhões de visitantes por ano até 2030 (foram 64 milhões em 2021). As autoridades esperam que até lá a liga quadruplique sua receita para US$ 480 milhões, embora isso ainda seja insignificante diante, por exemplo, da Premier League inglesa, que gerou dez vezes mais no ano passado.

O esporte, espera-se, terá um efeito de transbordamento para o resto da economia. Parte disso é um exercício de rebranding em uma região conhecida por conflitos religiosos, extremismo e guerra. “É melhor que todos trabalhem juntos pela prosperidade na região, não pelo conflito, e os sauditas querem ser vistos na vanguarda desse processo”, explica Steven Cook, do Council on Foreign Relations, um instituto de pesquisa em Nova York.

Uma marca melhor e mais eventos podem impulsionar o setor de turismo, que o governo espera que aumente de 3% do PIB em 2019 para 10% em 2030. Quando você quer se tornar um destino de férias, o poder das estrelas ajuda: Lionel Messi, talvez o maior jogador de futebol em atividade, é um embaixador do turismo saudita e publica fotos ensolaradas para seus 482 milhões de seguidores no Instagram.

O esporte pode até ser útil como mecanismo para complementar a reforma social. Nos últimos anos, o governo saudita se tornou mais receptivo à mistura de sexos em público e tomou algumas medidas para controlar sua rigorosa polícia religiosa. As mulheres finalmente foram autorizadas a dirigir em 2018. Agora o país está apoiando esportes femininos e masculinos. A seleção saudita de futebol feminino conquistou seu primeiro ranking da Fifa em março. Tudo isso pode deixar o país mais atraente para as turistas do sexo feminino.

Em toda a região, a realização de eventos esportivos “em geral foi percebida de forma positiva pelos habitantes”, diz Wadih Ishac, professor assistente de gestão esportiva na Universidade do Catar. Nazer, da embaixada saudita em Washington, aponta que 70% da população saudita tem menos de 35 anos e que os jovens adoram os eventos esportivos.

O plano mestre enfrenta dois grandes riscos. O primeiro é que seus modelos de negócios não funcionem. Os proprietários do Golfo claramente sabem administrar negócios esportivos. O Manchester City prosperou com seu investidor dos Emirados Árabes Unidos (embora em fevereiro a Premier League o tenha acusado de supostamente quebrar regras financeiras, uma acusação que o clube nega). Durante o primeiro ano de propriedade saudita, o Newcastle United gastou cerca de US$ 126 milhões e saiu da zona de rebaixamento. O clube ficou em quarto lugar, classificando-se para a Liga dos Campeões, principal competição de clubes da Europa, pela primeira vez em vinte anos.

Ainda assim, na Arábia Saudita, o esporte é uma preocupação estatal, e não empresarial, com todos os problemas que isso pode acarretar. Em junho, alguns dos principais clubes de futebol, anteriormente sob o controle do Ministério do Esporte, foram supostamente privatizados. Mas o PIF tem 75% de participação em quatro times. A petroleira Aramco tem outro time e Neom, a metrópole que está sendo construída no deserto, também tem um clube na segunda divisão. “É quase como se os clubes de futebol tivessem se tornado estatais na Arábia Saudita”, diz Simon Chadwick, da Skema Business School, em Paris. Em vez de um novo motor dinâmico da economia, o esporte poderia se tornar uma manifestação de seu antigo sistema de patrocínio estatal.

Para atrair estrelas, os salários precisam ser enormes. Benzema supostamente assinou um contrato de dois anos no valor de US$ 440 milhões e há rumores de que Ronaldo ganha US$ 200 milhões por ano. Neste verão, o Al Hilal ofereceu um recorde de US$ 330 milhões ao Paris St. Germain pela estrela francesa Kylian Mbappé, que até agora recusou. O jogador de golfe Phil Mickelson embolsou US$ 200 milhões do LIV Golf, apesar de certa vez ter caracterizado os sauditas como “filhos da puta assustadores” (depois ele se desculpou). Salários colossais significam que até mesmo os times europeus mais bem-sucedidos estão com dificuldades para ganhar dinheiro. Mais da metade das equipes da Premier League tiveram perdas em 2022 e, no geral, as ligas da Itália, Alemanha e Espanha estão no vermelho. (A Exor, que tem participação na controladora da revista The Economist, também é investidora da Juventus, um clube de futebol italiano, e da Ferrari, uma montadora italiana).

Graças à sua riqueza em petróleo, o experimento saudita não quebrará o banco. De acordo com o relatório anual do PIF em 2021, lazer e entretenimento representaram apenas 1,6% de seus ativos. Mas a combinação de baixas receitas domésticas e altos custos pode significar que muitos empreendimentos esportivos sauditas não consigam se sustentar ou competir globalmente sem subsídios.

A Arábia Saudita pode enfrentar alguns dos mesmos problemas que a China encarou com o futebol quando tentou impulsionar Super League na última década. Estrelas caras e importadas podem reclamar do padrão do futebol e haverá muito ceticismo sobre a sustentabilidade do atual nível de gastos. Mas o apoio do estado anulará os problemas financeiros e o escrutínio político que dificultaram o projeto chinês. Os sauditas também estão tentando atrair talentos mais jovens, e não apenas ser como os Estados Unidos, onde muitos jogadores importantes de clubes europeus tradicionalmente jogam seus últimos anos.

Cristiano Ronaldo foi o primeiro astro contratado para o projeto do futebol na Arábia Saudita Foto: EFE

Mas o pequeno público doméstico da Arábia Saudita também pode barrar suas ambições. Há um exemplo de uma economia emergente assumindo um papel dominante nas operações comerciais de um esporte global. Em 2008, a Índia lançou a Indian Premier League (IPL), um torneio de críquete. No ano passado, os direitos de transmissão das partidas nos próximos cinco anos foram vendidos por mais de US$ 6 bilhões, tornando-a a segunda liga esportiva mais lucrativa do mundo por jogo, depois da NFL, a liga de futebol americano. A influência financeira da Índia deu a ela uma voz poderosa sobre o críquete em todo o mundo. Mas a base do sucesso da Índia tem sido a escala do público, com 1,4 bilhão de cidadãos loucos por críquete. A Arábia Saudita não consegue rivalizar com isso.

O segundo grande perigo é que o impulso desencadeie uma reação. O esporte às vezes é uma indústria sensível e o status da Arábia Saudita como estado autocrático não ajuda. Vários grupos de direitos humanos acusaram os sauditas de sportswashing, por exemplo, quando a Fifa concedeu a eles a Copa do Mundo de Clubes de 2023.

É uma nova versão de uma velha ideia: regimes sórdidos usando esportes para exibir seus modelos políticos, como Mussolini fez com a Copa do Mundo em 1934 e Hitler com as Olimpíadas de 1936. A Alemanha Oriental e a União Soviética tinham programas de doping patrocinados pelo estado nas décadas de 1970 e 1980. Mais recentemente, a China foi acusada de sportswashing quando sediou as Olimpíadas de Inverno no ano passado, assim como a Rússia quando sediou a Copa do Mundo de futebol em 2018. O Catar também enfrentou muitas críticas em 2022.

Hoje, os críticos apontam para a escassez de liberdades democráticas na Arábia Saudita e a supressão dos direitos das mulheres e dos homossexuais. O terrível assassinato do jornalista Jamal Khashoggi no consulado saudita em Istambul em 2018 não foi esquecido, nem o papel central do reino na sangrenta guerra no Iêmen.

PENÍNSULA INSULAR

No entanto, a política autocrática da Arábia Saudita provavelmente não impedirá que ela assuma um papel crescente nos esportes globais. A classificação para a Liga dos Campeões ajudou bastante a acalmar as críticas ao investimento saudita no Newcastle United. O presidente Joe Biden, depois de qualificar o reino como um “pária” em 2019, agora está empenhado em reparar a aliança americana. Mas a reputação do país pode complicar os negócios. A proposta de fusão do PGA Tour com o LIV Golf criou uma mácula e está sendo avaliada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos para se verificar se viola a lei antitruste.

Os executivos do PGA Tour foram levados a um comitê do Senado no mês passado. O senador Richard Blumenthal reclamou de uma cláusula no acordo que poderia impedir os jogadores de falar mal da Arábia Saudita: “É a cláusula mais abrangente que já vi”. Os apoiadores do acordo no PGA Tour, sem dúvida, procuram sugerir que os sauditas terão um papel secundário - provavelmente uma visão muito diferente da de MBS, na qual os sauditas estão no controle e não só dando dinheiro.

Mas mesmo que alguns negócios não transformem o país da maneira que MBS espera, a Arábia Saudita faz parte de uma mudança mais ampla no esporte global. O aumento dos investimentos do reino integra a ascensão de uma nova corte de fundos soberanos e de private equity que estão investindo pesado em esportes. A Bloomberg informou que as empresas de private equity gastaram US$ 51 bilhões em transações esportivas em 2021, quase o dobro do total de 2017.

As regras de propriedade estão sendo liberalizadas à medida que clubes e torneios buscam novas fontes de capital para se manterem competitivos. As ligas esportivas americanas são as melhores do mundo em arrecadar dinheiro. Desde 2019, várias grandes ligas americanas relaxaram suas regras para permitir investimentos minoritários de investidores institucionais. Em julho, a autoridade de investimentos do Catar fechou um acordo para comprar 5% da empresa matriz do Washington Wizards, um time de basquete americano.

A disrupção digital também acabou atingindo os esportes ao vivo, que eram um dos últimos bastiões da televisão tradicional. Cada vez mais espectadores que “cortaram o cabo” da televisão assistem a esportes por meio de serviços de streaming que oferecem jogos ao vivo, além de destaques, análises e outros conteúdos sob demanda. Essa mudança digital está sendo acompanhada por redemoinhos inesperados e mudanças no público. Por exemplo, a Fórmula 1, antes notável por ter pouca presença nos Estados Unidos, agora está ganhando força por lá, impulsionada por parcerias com a Netflix.

A gastança esportiva saudita reflete em parte a dinâmica dentro do reino: uma nova enxurrada de petrodólares e a ambição de MSB para criar uma sociedade socialmente mais liberal e restaurar sua reputação manchada no Ocidente. Mas as mudanças também refletem a sensação de que há uma nova janela de oportunidade no esporte global: conquistar audiências maiores e mais novas, criar diferentes tipos de eventos e torneios e reinventar os antigos.

O último relatório anual do PIF, divulgado esta semana, inclui o anúncio de um veículo de investimento específico para esportes, sugerindo planos futuros mais ambiciosos. É provável que Benzema e Ronaldo marquem gols nos próximos meses. Já o reino tem muitos outros objetivos. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The Economist - A maior competição de futebol da Arábia Saudita, a Saudi Pro League, começou a temporada 2023-24. O torneio da última temporada não chegou a empolgar a torcida. Em média, apenas 9.300 torcedores assistiram aos jogos. Em três das últimas cinco temporadas, o artilheiro foi Abderrazak Hamdallah, um marroquino que não jogou em nenhum dos principais clubes do mundo.

Mas esta temporada pode ser diferente. A equipe de Hamdallah, o Al Ittihad, acaba de contratar Karim Benzema, vencedor da Bola de Ouro 2022, do Real Madrid, e N’Golo Kante, estrela do Chelsea. Em janeiro, Cristiano Ronaldo, cinco vezes vencedor da Bola de Ouro, transferiu-se do Manchester United para o Al Nassr, outro clube saudita. O ex-atacante do Liverpool Sadio Mané se juntou a ele no clube, enquanto o capitão do Liverpool, Jordan Henderson, assinou com o Al Ettifaq. A lista continua. Os times da liga saudita gastaram mais de US$ 480 milhões neste verão, colocando-os entre os maiores gastadores do futebol global.

Os movimentos da Pro League são apenas uma parte de um esforço multibilionário da Arábia Saudita no esporte global, apoiado por Muhammad bin Salman, conhecido como MBS, o príncipe herdeiro e governante de fato. A iniciativa vai muito além do futebol e está agitando o golfe, a Fórmula 1, o boxe e muito mais. A ambição de MBS é usar o esporte para modernizar a Arábia Saudita e transformar a percepção do mundo exterior sobre o reino de 36 milhões de pessoas.

Benzema seguiu os passos de Cristiano Ronaldo e foi jogar na Arábia Saudita Foto: Stringer / Reuters

A investida saudita acontece no momento em que a indústria esportiva global está sendo abalada pela disrupção digital e uma nova onda de investimentos em private equity. Os críticos acusam MBS de promover projetos de vaidade e sportswashing - ou seja, fazer “lavagem esportiva”, usar o esporte para limpar a reputação do país, marcada por abusos dos direitos humanos. Autoridades sauditas se ressentem de tais críticas. Fahad Nazer, da embaixada saudita em Washington, diz que a ideia de que o país vem fazendo sportswashing “está muito longe da verdade”. Ele diz que essas afirmações cheiram a “etnocentrismo”: tudo foi feito, diz ele, tendo em mente a Arábia Saudita e seus cidadãos - não os ocidentais.

Muitos observadores acreditam que os movimentos mudarão não apenas a Arábia Saudita, mas todo o esporte global, apresentando uma nova força dinâmica e arrancando a iniciativa dos enfadonhos guardiões de times e torneios ocidentais. Os gastos vêm ocorrendo há vários anos, mas até recentemente seu escopo total foi obscurecido por uma abordagem dispersiva. Investimentos e negociações ocorreram em várias camadas da indústria esportiva, como compra de jogadores, aquisição de clubes estrangeiros, desenvolvimento de clubes nacionais e compra ou desenvolvimento de torneios no país e no exterior.

Esses negócios têm sido buscados por um esquadrão de entidades sauditas, entre elas o próprio governo, o Fundo de Investimento Público (PIF, na sigla em inglês), um fundo soberano e até a Saudi Aramco, a petrolífera que é a empresa mais lucrativa do mundo. O escopo é impressionante, com pelo menos US$ 10 bilhões gastos em meia dúzia de esportes importantes.

VAMOS LÁ, RAPAZES

Em 2021, um consórcio liderado pela Arábia Saudita assumiu o controle do Newcastle United, um time histórico, mas em dificuldades, da Premier League inglesa, por US$ 391 milhões. Além de desenvolver sua liga nacional, há intensa especulação de que a Arábia Saudita lançará uma candidatura para sediar a Copa do Mundo, talvez em 2030, seguindo os passos do vizinho Catar em 2022. Acredita-se que em 2021 o dinheiro do Golfo tenha apoiado a tentativa de criar uma superliga europeia, que entrou em colapso após a oposição dos torcedores.

No golfe, a principal organização dos Estados Unidos, o PGA Tour, acaba de concordar com uma fusão com o LIV Golf, um torneio iniciante saudita que causou furor no esporte ao oferecer aos melhores jogadores centenas de milhões de dólares para trocar sua lealdade. O DP World Tour da Europa, outra instituição organizadora, também faz parte do acordo. Donald Trump, cujos campos recebem eventos LIV, descreve-o como um “negócio lindo e glamoroso”. Elizabeth Warren e Ron Wyden, dois senadores de esquerda, recentemente condenaram “a última tentativa do regime saudita de limpar seus abusos” em uma carta pública ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

A Arábia Saudita sedia um novo Grande Prêmio de Fórmula 1 em Jeddah e está construindo uma pista perto da capital, Riad. Investidores sauditas teriam considerado oferecer US$ 20 bilhões por toda a Fórmula 1 no ano passado. O ministro do Esporte saudita rejeitou os relatos como “pura especulação”. A Aramco continua sendo um dos principais patrocinadores da F1.

Uma autoridade do circuito masculino de tênis ATP admitiu ter conversado “positivamente” com possíveis investidores, entre eles o PIF. O tour de tênis feminino WTA está considerando a possibilidade de realizar um evento na Arábia Saudita e um dirigente visitou o país recentemente. O reino agora é palco de grandes lutas de boxe, noites de luta livre e eventos de eSports. Apesar do clima, o país também foi selecionado para sediar os Jogos Asiáticos de Inverno em 2029.

Prova no Circuito de Jeddah Corniche faz parte do calendário da Fórmula 1 Foto: Hamad I Mohammed / Reuters

UMA LIGA PRÓPRIA

Por que o país está esbanjando nos esportes? Também tem a ver com vaidade e inveja. Muitos membros da realeza saudita são fãs e torcedores. Investiram em times de outros lugares e agora querem ter seus próprios. Também querem ser levados a sério entre a elite esportiva global. Yasir Al-Rumayyan, diretor do PIF, é fanático por golfe. Documentos divulgados em recentes audiências do Congresso sobre o acordo PGA Tour-LIV sugerem que uma ideia proposta durante a transação foi que ele poderia se tornar membro do Augusta, o clube mais exclusivo dos Estados Unidos.

Os sauditas observaram como seus vizinhos intensificaram os investimentos. A corrida começou em 1993, diz Danyel Reiche, da Georgetown University, no Catar. Foi quando o Catar sediou pela primeira vez um torneio de tênis masculino ATP (Boris Becker venceu). O país gastou US$ 200 bilhões se preparando para sediar a Copa do Mundo de 2022. Um de seus membros da realeza também é dono do Paris St. Germain, um dos principais clubes franceses. O Manchester City, de propriedade da realeza de Abu Dhabi, agora é a marca de futebol mais valiosa do mundo.

Mas o plano saudita vai muito além de regalias para suas elites e tentativas de acompanhar o ritmo dos vizinhos. Preços e produção de energia flutuantes significam que suas exportações de petróleo devem ultrapassar US$ 166 bilhões este ano, ou 16% do PIB. Com a transição energética global se aproximando, o plano “Visão 2030″ visa diversificar a economia do reino para além do petróleo, desenvolvendo novas indústrias e liberalizando a economia, inclusive colocando mais mulheres na força de trabalho. O PIF é um ator importante, usando seus mais de US$ 700 bilhões em fundos para redistribuir capital em novas áreas da economia e fazer investimentos estratégicos em marcas e tecnologia.

O reino quer que a Saudi Pro League atraia investimentos e torcedores. O objetivo é receber 100 milhões de visitantes por ano até 2030 (foram 64 milhões em 2021). As autoridades esperam que até lá a liga quadruplique sua receita para US$ 480 milhões, embora isso ainda seja insignificante diante, por exemplo, da Premier League inglesa, que gerou dez vezes mais no ano passado.

O esporte, espera-se, terá um efeito de transbordamento para o resto da economia. Parte disso é um exercício de rebranding em uma região conhecida por conflitos religiosos, extremismo e guerra. “É melhor que todos trabalhem juntos pela prosperidade na região, não pelo conflito, e os sauditas querem ser vistos na vanguarda desse processo”, explica Steven Cook, do Council on Foreign Relations, um instituto de pesquisa em Nova York.

Uma marca melhor e mais eventos podem impulsionar o setor de turismo, que o governo espera que aumente de 3% do PIB em 2019 para 10% em 2030. Quando você quer se tornar um destino de férias, o poder das estrelas ajuda: Lionel Messi, talvez o maior jogador de futebol em atividade, é um embaixador do turismo saudita e publica fotos ensolaradas para seus 482 milhões de seguidores no Instagram.

O esporte pode até ser útil como mecanismo para complementar a reforma social. Nos últimos anos, o governo saudita se tornou mais receptivo à mistura de sexos em público e tomou algumas medidas para controlar sua rigorosa polícia religiosa. As mulheres finalmente foram autorizadas a dirigir em 2018. Agora o país está apoiando esportes femininos e masculinos. A seleção saudita de futebol feminino conquistou seu primeiro ranking da Fifa em março. Tudo isso pode deixar o país mais atraente para as turistas do sexo feminino.

Em toda a região, a realização de eventos esportivos “em geral foi percebida de forma positiva pelos habitantes”, diz Wadih Ishac, professor assistente de gestão esportiva na Universidade do Catar. Nazer, da embaixada saudita em Washington, aponta que 70% da população saudita tem menos de 35 anos e que os jovens adoram os eventos esportivos.

O plano mestre enfrenta dois grandes riscos. O primeiro é que seus modelos de negócios não funcionem. Os proprietários do Golfo claramente sabem administrar negócios esportivos. O Manchester City prosperou com seu investidor dos Emirados Árabes Unidos (embora em fevereiro a Premier League o tenha acusado de supostamente quebrar regras financeiras, uma acusação que o clube nega). Durante o primeiro ano de propriedade saudita, o Newcastle United gastou cerca de US$ 126 milhões e saiu da zona de rebaixamento. O clube ficou em quarto lugar, classificando-se para a Liga dos Campeões, principal competição de clubes da Europa, pela primeira vez em vinte anos.

Ainda assim, na Arábia Saudita, o esporte é uma preocupação estatal, e não empresarial, com todos os problemas que isso pode acarretar. Em junho, alguns dos principais clubes de futebol, anteriormente sob o controle do Ministério do Esporte, foram supostamente privatizados. Mas o PIF tem 75% de participação em quatro times. A petroleira Aramco tem outro time e Neom, a metrópole que está sendo construída no deserto, também tem um clube na segunda divisão. “É quase como se os clubes de futebol tivessem se tornado estatais na Arábia Saudita”, diz Simon Chadwick, da Skema Business School, em Paris. Em vez de um novo motor dinâmico da economia, o esporte poderia se tornar uma manifestação de seu antigo sistema de patrocínio estatal.

Para atrair estrelas, os salários precisam ser enormes. Benzema supostamente assinou um contrato de dois anos no valor de US$ 440 milhões e há rumores de que Ronaldo ganha US$ 200 milhões por ano. Neste verão, o Al Hilal ofereceu um recorde de US$ 330 milhões ao Paris St. Germain pela estrela francesa Kylian Mbappé, que até agora recusou. O jogador de golfe Phil Mickelson embolsou US$ 200 milhões do LIV Golf, apesar de certa vez ter caracterizado os sauditas como “filhos da puta assustadores” (depois ele se desculpou). Salários colossais significam que até mesmo os times europeus mais bem-sucedidos estão com dificuldades para ganhar dinheiro. Mais da metade das equipes da Premier League tiveram perdas em 2022 e, no geral, as ligas da Itália, Alemanha e Espanha estão no vermelho. (A Exor, que tem participação na controladora da revista The Economist, também é investidora da Juventus, um clube de futebol italiano, e da Ferrari, uma montadora italiana).

Graças à sua riqueza em petróleo, o experimento saudita não quebrará o banco. De acordo com o relatório anual do PIF em 2021, lazer e entretenimento representaram apenas 1,6% de seus ativos. Mas a combinação de baixas receitas domésticas e altos custos pode significar que muitos empreendimentos esportivos sauditas não consigam se sustentar ou competir globalmente sem subsídios.

A Arábia Saudita pode enfrentar alguns dos mesmos problemas que a China encarou com o futebol quando tentou impulsionar Super League na última década. Estrelas caras e importadas podem reclamar do padrão do futebol e haverá muito ceticismo sobre a sustentabilidade do atual nível de gastos. Mas o apoio do estado anulará os problemas financeiros e o escrutínio político que dificultaram o projeto chinês. Os sauditas também estão tentando atrair talentos mais jovens, e não apenas ser como os Estados Unidos, onde muitos jogadores importantes de clubes europeus tradicionalmente jogam seus últimos anos.

Cristiano Ronaldo foi o primeiro astro contratado para o projeto do futebol na Arábia Saudita Foto: EFE

Mas o pequeno público doméstico da Arábia Saudita também pode barrar suas ambições. Há um exemplo de uma economia emergente assumindo um papel dominante nas operações comerciais de um esporte global. Em 2008, a Índia lançou a Indian Premier League (IPL), um torneio de críquete. No ano passado, os direitos de transmissão das partidas nos próximos cinco anos foram vendidos por mais de US$ 6 bilhões, tornando-a a segunda liga esportiva mais lucrativa do mundo por jogo, depois da NFL, a liga de futebol americano. A influência financeira da Índia deu a ela uma voz poderosa sobre o críquete em todo o mundo. Mas a base do sucesso da Índia tem sido a escala do público, com 1,4 bilhão de cidadãos loucos por críquete. A Arábia Saudita não consegue rivalizar com isso.

O segundo grande perigo é que o impulso desencadeie uma reação. O esporte às vezes é uma indústria sensível e o status da Arábia Saudita como estado autocrático não ajuda. Vários grupos de direitos humanos acusaram os sauditas de sportswashing, por exemplo, quando a Fifa concedeu a eles a Copa do Mundo de Clubes de 2023.

É uma nova versão de uma velha ideia: regimes sórdidos usando esportes para exibir seus modelos políticos, como Mussolini fez com a Copa do Mundo em 1934 e Hitler com as Olimpíadas de 1936. A Alemanha Oriental e a União Soviética tinham programas de doping patrocinados pelo estado nas décadas de 1970 e 1980. Mais recentemente, a China foi acusada de sportswashing quando sediou as Olimpíadas de Inverno no ano passado, assim como a Rússia quando sediou a Copa do Mundo de futebol em 2018. O Catar também enfrentou muitas críticas em 2022.

Hoje, os críticos apontam para a escassez de liberdades democráticas na Arábia Saudita e a supressão dos direitos das mulheres e dos homossexuais. O terrível assassinato do jornalista Jamal Khashoggi no consulado saudita em Istambul em 2018 não foi esquecido, nem o papel central do reino na sangrenta guerra no Iêmen.

PENÍNSULA INSULAR

No entanto, a política autocrática da Arábia Saudita provavelmente não impedirá que ela assuma um papel crescente nos esportes globais. A classificação para a Liga dos Campeões ajudou bastante a acalmar as críticas ao investimento saudita no Newcastle United. O presidente Joe Biden, depois de qualificar o reino como um “pária” em 2019, agora está empenhado em reparar a aliança americana. Mas a reputação do país pode complicar os negócios. A proposta de fusão do PGA Tour com o LIV Golf criou uma mácula e está sendo avaliada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos para se verificar se viola a lei antitruste.

Os executivos do PGA Tour foram levados a um comitê do Senado no mês passado. O senador Richard Blumenthal reclamou de uma cláusula no acordo que poderia impedir os jogadores de falar mal da Arábia Saudita: “É a cláusula mais abrangente que já vi”. Os apoiadores do acordo no PGA Tour, sem dúvida, procuram sugerir que os sauditas terão um papel secundário - provavelmente uma visão muito diferente da de MBS, na qual os sauditas estão no controle e não só dando dinheiro.

Mas mesmo que alguns negócios não transformem o país da maneira que MBS espera, a Arábia Saudita faz parte de uma mudança mais ampla no esporte global. O aumento dos investimentos do reino integra a ascensão de uma nova corte de fundos soberanos e de private equity que estão investindo pesado em esportes. A Bloomberg informou que as empresas de private equity gastaram US$ 51 bilhões em transações esportivas em 2021, quase o dobro do total de 2017.

As regras de propriedade estão sendo liberalizadas à medida que clubes e torneios buscam novas fontes de capital para se manterem competitivos. As ligas esportivas americanas são as melhores do mundo em arrecadar dinheiro. Desde 2019, várias grandes ligas americanas relaxaram suas regras para permitir investimentos minoritários de investidores institucionais. Em julho, a autoridade de investimentos do Catar fechou um acordo para comprar 5% da empresa matriz do Washington Wizards, um time de basquete americano.

A disrupção digital também acabou atingindo os esportes ao vivo, que eram um dos últimos bastiões da televisão tradicional. Cada vez mais espectadores que “cortaram o cabo” da televisão assistem a esportes por meio de serviços de streaming que oferecem jogos ao vivo, além de destaques, análises e outros conteúdos sob demanda. Essa mudança digital está sendo acompanhada por redemoinhos inesperados e mudanças no público. Por exemplo, a Fórmula 1, antes notável por ter pouca presença nos Estados Unidos, agora está ganhando força por lá, impulsionada por parcerias com a Netflix.

A gastança esportiva saudita reflete em parte a dinâmica dentro do reino: uma nova enxurrada de petrodólares e a ambição de MSB para criar uma sociedade socialmente mais liberal e restaurar sua reputação manchada no Ocidente. Mas as mudanças também refletem a sensação de que há uma nova janela de oportunidade no esporte global: conquistar audiências maiores e mais novas, criar diferentes tipos de eventos e torneios e reinventar os antigos.

O último relatório anual do PIF, divulgado esta semana, inclui o anúncio de um veículo de investimento específico para esportes, sugerindo planos futuros mais ambiciosos. É provável que Benzema e Ronaldo marquem gols nos próximos meses. Já o reino tem muitos outros objetivos. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

The Economist - A maior competição de futebol da Arábia Saudita, a Saudi Pro League, começou a temporada 2023-24. O torneio da última temporada não chegou a empolgar a torcida. Em média, apenas 9.300 torcedores assistiram aos jogos. Em três das últimas cinco temporadas, o artilheiro foi Abderrazak Hamdallah, um marroquino que não jogou em nenhum dos principais clubes do mundo.

Mas esta temporada pode ser diferente. A equipe de Hamdallah, o Al Ittihad, acaba de contratar Karim Benzema, vencedor da Bola de Ouro 2022, do Real Madrid, e N’Golo Kante, estrela do Chelsea. Em janeiro, Cristiano Ronaldo, cinco vezes vencedor da Bola de Ouro, transferiu-se do Manchester United para o Al Nassr, outro clube saudita. O ex-atacante do Liverpool Sadio Mané se juntou a ele no clube, enquanto o capitão do Liverpool, Jordan Henderson, assinou com o Al Ettifaq. A lista continua. Os times da liga saudita gastaram mais de US$ 480 milhões neste verão, colocando-os entre os maiores gastadores do futebol global.

Os movimentos da Pro League são apenas uma parte de um esforço multibilionário da Arábia Saudita no esporte global, apoiado por Muhammad bin Salman, conhecido como MBS, o príncipe herdeiro e governante de fato. A iniciativa vai muito além do futebol e está agitando o golfe, a Fórmula 1, o boxe e muito mais. A ambição de MBS é usar o esporte para modernizar a Arábia Saudita e transformar a percepção do mundo exterior sobre o reino de 36 milhões de pessoas.

Benzema seguiu os passos de Cristiano Ronaldo e foi jogar na Arábia Saudita Foto: Stringer / Reuters

A investida saudita acontece no momento em que a indústria esportiva global está sendo abalada pela disrupção digital e uma nova onda de investimentos em private equity. Os críticos acusam MBS de promover projetos de vaidade e sportswashing - ou seja, fazer “lavagem esportiva”, usar o esporte para limpar a reputação do país, marcada por abusos dos direitos humanos. Autoridades sauditas se ressentem de tais críticas. Fahad Nazer, da embaixada saudita em Washington, diz que a ideia de que o país vem fazendo sportswashing “está muito longe da verdade”. Ele diz que essas afirmações cheiram a “etnocentrismo”: tudo foi feito, diz ele, tendo em mente a Arábia Saudita e seus cidadãos - não os ocidentais.

Muitos observadores acreditam que os movimentos mudarão não apenas a Arábia Saudita, mas todo o esporte global, apresentando uma nova força dinâmica e arrancando a iniciativa dos enfadonhos guardiões de times e torneios ocidentais. Os gastos vêm ocorrendo há vários anos, mas até recentemente seu escopo total foi obscurecido por uma abordagem dispersiva. Investimentos e negociações ocorreram em várias camadas da indústria esportiva, como compra de jogadores, aquisição de clubes estrangeiros, desenvolvimento de clubes nacionais e compra ou desenvolvimento de torneios no país e no exterior.

Esses negócios têm sido buscados por um esquadrão de entidades sauditas, entre elas o próprio governo, o Fundo de Investimento Público (PIF, na sigla em inglês), um fundo soberano e até a Saudi Aramco, a petrolífera que é a empresa mais lucrativa do mundo. O escopo é impressionante, com pelo menos US$ 10 bilhões gastos em meia dúzia de esportes importantes.

VAMOS LÁ, RAPAZES

Em 2021, um consórcio liderado pela Arábia Saudita assumiu o controle do Newcastle United, um time histórico, mas em dificuldades, da Premier League inglesa, por US$ 391 milhões. Além de desenvolver sua liga nacional, há intensa especulação de que a Arábia Saudita lançará uma candidatura para sediar a Copa do Mundo, talvez em 2030, seguindo os passos do vizinho Catar em 2022. Acredita-se que em 2021 o dinheiro do Golfo tenha apoiado a tentativa de criar uma superliga europeia, que entrou em colapso após a oposição dos torcedores.

No golfe, a principal organização dos Estados Unidos, o PGA Tour, acaba de concordar com uma fusão com o LIV Golf, um torneio iniciante saudita que causou furor no esporte ao oferecer aos melhores jogadores centenas de milhões de dólares para trocar sua lealdade. O DP World Tour da Europa, outra instituição organizadora, também faz parte do acordo. Donald Trump, cujos campos recebem eventos LIV, descreve-o como um “negócio lindo e glamoroso”. Elizabeth Warren e Ron Wyden, dois senadores de esquerda, recentemente condenaram “a última tentativa do regime saudita de limpar seus abusos” em uma carta pública ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

A Arábia Saudita sedia um novo Grande Prêmio de Fórmula 1 em Jeddah e está construindo uma pista perto da capital, Riad. Investidores sauditas teriam considerado oferecer US$ 20 bilhões por toda a Fórmula 1 no ano passado. O ministro do Esporte saudita rejeitou os relatos como “pura especulação”. A Aramco continua sendo um dos principais patrocinadores da F1.

Uma autoridade do circuito masculino de tênis ATP admitiu ter conversado “positivamente” com possíveis investidores, entre eles o PIF. O tour de tênis feminino WTA está considerando a possibilidade de realizar um evento na Arábia Saudita e um dirigente visitou o país recentemente. O reino agora é palco de grandes lutas de boxe, noites de luta livre e eventos de eSports. Apesar do clima, o país também foi selecionado para sediar os Jogos Asiáticos de Inverno em 2029.

Prova no Circuito de Jeddah Corniche faz parte do calendário da Fórmula 1 Foto: Hamad I Mohammed / Reuters

UMA LIGA PRÓPRIA

Por que o país está esbanjando nos esportes? Também tem a ver com vaidade e inveja. Muitos membros da realeza saudita são fãs e torcedores. Investiram em times de outros lugares e agora querem ter seus próprios. Também querem ser levados a sério entre a elite esportiva global. Yasir Al-Rumayyan, diretor do PIF, é fanático por golfe. Documentos divulgados em recentes audiências do Congresso sobre o acordo PGA Tour-LIV sugerem que uma ideia proposta durante a transação foi que ele poderia se tornar membro do Augusta, o clube mais exclusivo dos Estados Unidos.

Os sauditas observaram como seus vizinhos intensificaram os investimentos. A corrida começou em 1993, diz Danyel Reiche, da Georgetown University, no Catar. Foi quando o Catar sediou pela primeira vez um torneio de tênis masculino ATP (Boris Becker venceu). O país gastou US$ 200 bilhões se preparando para sediar a Copa do Mundo de 2022. Um de seus membros da realeza também é dono do Paris St. Germain, um dos principais clubes franceses. O Manchester City, de propriedade da realeza de Abu Dhabi, agora é a marca de futebol mais valiosa do mundo.

Mas o plano saudita vai muito além de regalias para suas elites e tentativas de acompanhar o ritmo dos vizinhos. Preços e produção de energia flutuantes significam que suas exportações de petróleo devem ultrapassar US$ 166 bilhões este ano, ou 16% do PIB. Com a transição energética global se aproximando, o plano “Visão 2030″ visa diversificar a economia do reino para além do petróleo, desenvolvendo novas indústrias e liberalizando a economia, inclusive colocando mais mulheres na força de trabalho. O PIF é um ator importante, usando seus mais de US$ 700 bilhões em fundos para redistribuir capital em novas áreas da economia e fazer investimentos estratégicos em marcas e tecnologia.

O reino quer que a Saudi Pro League atraia investimentos e torcedores. O objetivo é receber 100 milhões de visitantes por ano até 2030 (foram 64 milhões em 2021). As autoridades esperam que até lá a liga quadruplique sua receita para US$ 480 milhões, embora isso ainda seja insignificante diante, por exemplo, da Premier League inglesa, que gerou dez vezes mais no ano passado.

O esporte, espera-se, terá um efeito de transbordamento para o resto da economia. Parte disso é um exercício de rebranding em uma região conhecida por conflitos religiosos, extremismo e guerra. “É melhor que todos trabalhem juntos pela prosperidade na região, não pelo conflito, e os sauditas querem ser vistos na vanguarda desse processo”, explica Steven Cook, do Council on Foreign Relations, um instituto de pesquisa em Nova York.

Uma marca melhor e mais eventos podem impulsionar o setor de turismo, que o governo espera que aumente de 3% do PIB em 2019 para 10% em 2030. Quando você quer se tornar um destino de férias, o poder das estrelas ajuda: Lionel Messi, talvez o maior jogador de futebol em atividade, é um embaixador do turismo saudita e publica fotos ensolaradas para seus 482 milhões de seguidores no Instagram.

O esporte pode até ser útil como mecanismo para complementar a reforma social. Nos últimos anos, o governo saudita se tornou mais receptivo à mistura de sexos em público e tomou algumas medidas para controlar sua rigorosa polícia religiosa. As mulheres finalmente foram autorizadas a dirigir em 2018. Agora o país está apoiando esportes femininos e masculinos. A seleção saudita de futebol feminino conquistou seu primeiro ranking da Fifa em março. Tudo isso pode deixar o país mais atraente para as turistas do sexo feminino.

Em toda a região, a realização de eventos esportivos “em geral foi percebida de forma positiva pelos habitantes”, diz Wadih Ishac, professor assistente de gestão esportiva na Universidade do Catar. Nazer, da embaixada saudita em Washington, aponta que 70% da população saudita tem menos de 35 anos e que os jovens adoram os eventos esportivos.

O plano mestre enfrenta dois grandes riscos. O primeiro é que seus modelos de negócios não funcionem. Os proprietários do Golfo claramente sabem administrar negócios esportivos. O Manchester City prosperou com seu investidor dos Emirados Árabes Unidos (embora em fevereiro a Premier League o tenha acusado de supostamente quebrar regras financeiras, uma acusação que o clube nega). Durante o primeiro ano de propriedade saudita, o Newcastle United gastou cerca de US$ 126 milhões e saiu da zona de rebaixamento. O clube ficou em quarto lugar, classificando-se para a Liga dos Campeões, principal competição de clubes da Europa, pela primeira vez em vinte anos.

Ainda assim, na Arábia Saudita, o esporte é uma preocupação estatal, e não empresarial, com todos os problemas que isso pode acarretar. Em junho, alguns dos principais clubes de futebol, anteriormente sob o controle do Ministério do Esporte, foram supostamente privatizados. Mas o PIF tem 75% de participação em quatro times. A petroleira Aramco tem outro time e Neom, a metrópole que está sendo construída no deserto, também tem um clube na segunda divisão. “É quase como se os clubes de futebol tivessem se tornado estatais na Arábia Saudita”, diz Simon Chadwick, da Skema Business School, em Paris. Em vez de um novo motor dinâmico da economia, o esporte poderia se tornar uma manifestação de seu antigo sistema de patrocínio estatal.

Para atrair estrelas, os salários precisam ser enormes. Benzema supostamente assinou um contrato de dois anos no valor de US$ 440 milhões e há rumores de que Ronaldo ganha US$ 200 milhões por ano. Neste verão, o Al Hilal ofereceu um recorde de US$ 330 milhões ao Paris St. Germain pela estrela francesa Kylian Mbappé, que até agora recusou. O jogador de golfe Phil Mickelson embolsou US$ 200 milhões do LIV Golf, apesar de certa vez ter caracterizado os sauditas como “filhos da puta assustadores” (depois ele se desculpou). Salários colossais significam que até mesmo os times europeus mais bem-sucedidos estão com dificuldades para ganhar dinheiro. Mais da metade das equipes da Premier League tiveram perdas em 2022 e, no geral, as ligas da Itália, Alemanha e Espanha estão no vermelho. (A Exor, que tem participação na controladora da revista The Economist, também é investidora da Juventus, um clube de futebol italiano, e da Ferrari, uma montadora italiana).

Graças à sua riqueza em petróleo, o experimento saudita não quebrará o banco. De acordo com o relatório anual do PIF em 2021, lazer e entretenimento representaram apenas 1,6% de seus ativos. Mas a combinação de baixas receitas domésticas e altos custos pode significar que muitos empreendimentos esportivos sauditas não consigam se sustentar ou competir globalmente sem subsídios.

A Arábia Saudita pode enfrentar alguns dos mesmos problemas que a China encarou com o futebol quando tentou impulsionar Super League na última década. Estrelas caras e importadas podem reclamar do padrão do futebol e haverá muito ceticismo sobre a sustentabilidade do atual nível de gastos. Mas o apoio do estado anulará os problemas financeiros e o escrutínio político que dificultaram o projeto chinês. Os sauditas também estão tentando atrair talentos mais jovens, e não apenas ser como os Estados Unidos, onde muitos jogadores importantes de clubes europeus tradicionalmente jogam seus últimos anos.

Cristiano Ronaldo foi o primeiro astro contratado para o projeto do futebol na Arábia Saudita Foto: EFE

Mas o pequeno público doméstico da Arábia Saudita também pode barrar suas ambições. Há um exemplo de uma economia emergente assumindo um papel dominante nas operações comerciais de um esporte global. Em 2008, a Índia lançou a Indian Premier League (IPL), um torneio de críquete. No ano passado, os direitos de transmissão das partidas nos próximos cinco anos foram vendidos por mais de US$ 6 bilhões, tornando-a a segunda liga esportiva mais lucrativa do mundo por jogo, depois da NFL, a liga de futebol americano. A influência financeira da Índia deu a ela uma voz poderosa sobre o críquete em todo o mundo. Mas a base do sucesso da Índia tem sido a escala do público, com 1,4 bilhão de cidadãos loucos por críquete. A Arábia Saudita não consegue rivalizar com isso.

O segundo grande perigo é que o impulso desencadeie uma reação. O esporte às vezes é uma indústria sensível e o status da Arábia Saudita como estado autocrático não ajuda. Vários grupos de direitos humanos acusaram os sauditas de sportswashing, por exemplo, quando a Fifa concedeu a eles a Copa do Mundo de Clubes de 2023.

É uma nova versão de uma velha ideia: regimes sórdidos usando esportes para exibir seus modelos políticos, como Mussolini fez com a Copa do Mundo em 1934 e Hitler com as Olimpíadas de 1936. A Alemanha Oriental e a União Soviética tinham programas de doping patrocinados pelo estado nas décadas de 1970 e 1980. Mais recentemente, a China foi acusada de sportswashing quando sediou as Olimpíadas de Inverno no ano passado, assim como a Rússia quando sediou a Copa do Mundo de futebol em 2018. O Catar também enfrentou muitas críticas em 2022.

Hoje, os críticos apontam para a escassez de liberdades democráticas na Arábia Saudita e a supressão dos direitos das mulheres e dos homossexuais. O terrível assassinato do jornalista Jamal Khashoggi no consulado saudita em Istambul em 2018 não foi esquecido, nem o papel central do reino na sangrenta guerra no Iêmen.

PENÍNSULA INSULAR

No entanto, a política autocrática da Arábia Saudita provavelmente não impedirá que ela assuma um papel crescente nos esportes globais. A classificação para a Liga dos Campeões ajudou bastante a acalmar as críticas ao investimento saudita no Newcastle United. O presidente Joe Biden, depois de qualificar o reino como um “pária” em 2019, agora está empenhado em reparar a aliança americana. Mas a reputação do país pode complicar os negócios. A proposta de fusão do PGA Tour com o LIV Golf criou uma mácula e está sendo avaliada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos para se verificar se viola a lei antitruste.

Os executivos do PGA Tour foram levados a um comitê do Senado no mês passado. O senador Richard Blumenthal reclamou de uma cláusula no acordo que poderia impedir os jogadores de falar mal da Arábia Saudita: “É a cláusula mais abrangente que já vi”. Os apoiadores do acordo no PGA Tour, sem dúvida, procuram sugerir que os sauditas terão um papel secundário - provavelmente uma visão muito diferente da de MBS, na qual os sauditas estão no controle e não só dando dinheiro.

Mas mesmo que alguns negócios não transformem o país da maneira que MBS espera, a Arábia Saudita faz parte de uma mudança mais ampla no esporte global. O aumento dos investimentos do reino integra a ascensão de uma nova corte de fundos soberanos e de private equity que estão investindo pesado em esportes. A Bloomberg informou que as empresas de private equity gastaram US$ 51 bilhões em transações esportivas em 2021, quase o dobro do total de 2017.

As regras de propriedade estão sendo liberalizadas à medida que clubes e torneios buscam novas fontes de capital para se manterem competitivos. As ligas esportivas americanas são as melhores do mundo em arrecadar dinheiro. Desde 2019, várias grandes ligas americanas relaxaram suas regras para permitir investimentos minoritários de investidores institucionais. Em julho, a autoridade de investimentos do Catar fechou um acordo para comprar 5% da empresa matriz do Washington Wizards, um time de basquete americano.

A disrupção digital também acabou atingindo os esportes ao vivo, que eram um dos últimos bastiões da televisão tradicional. Cada vez mais espectadores que “cortaram o cabo” da televisão assistem a esportes por meio de serviços de streaming que oferecem jogos ao vivo, além de destaques, análises e outros conteúdos sob demanda. Essa mudança digital está sendo acompanhada por redemoinhos inesperados e mudanças no público. Por exemplo, a Fórmula 1, antes notável por ter pouca presença nos Estados Unidos, agora está ganhando força por lá, impulsionada por parcerias com a Netflix.

A gastança esportiva saudita reflete em parte a dinâmica dentro do reino: uma nova enxurrada de petrodólares e a ambição de MSB para criar uma sociedade socialmente mais liberal e restaurar sua reputação manchada no Ocidente. Mas as mudanças também refletem a sensação de que há uma nova janela de oportunidade no esporte global: conquistar audiências maiores e mais novas, criar diferentes tipos de eventos e torneios e reinventar os antigos.

O último relatório anual do PIF, divulgado esta semana, inclui o anúncio de um veículo de investimento específico para esportes, sugerindo planos futuros mais ambiciosos. É provável que Benzema e Ronaldo marquem gols nos próximos meses. Já o reino tem muitos outros objetivos. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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