A imunização contra o HPV tem sido um dos alvos mais frequentes da desinformação antivacina nas redes sociais. Apesar de a Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras entidades internacionais recomendarem a vacina e atestarem sua segurança, o medo e a desconfiança causados por boatos persistem. O Ministério da Saúde registrou surtos de sintomas desencadeados por fatores emocionais após vacinação contra HPV de jovens em Bertioga, em São Paulo, e em Rio Branco, no Acre. Colômbia, Dinamarca e Peru também registraram casos similares.
No Acre, jovens afetados por reações adversas pós-vacina foram examinados por uma equipe de profissionais do Instituto de Psiquiatria (IPq) da Universidade de São Paulo (USP). O relatório médico concluiu que os adolescentes que sofriam de convulsões, desmaios e dores de cabeça na verdade apresentavam reações psicogênicas, causadas por elementos psicológicos e sociais - entre eles a crença antivacina e o sugestionamento por meio de boatos em redes sociais.
Apesar do diagnóstico não apontar problemas na vacina, a desinformação sobre o assunto continuou. No início deste ano, ganhou repercussão nas redes sociais a entrevista de uma médica que afirma que esses jovens podem "morrer em breve". Isso não é verdade, de acordo com um dos profissionais que avaliaram os adolescentes acreanos, o psiquiatra José Gallucci Neto, diretor da unidade de Videoeletroencefalograma do IPq.
"As convulsões (que as jovens do Acre sofreram) não são de natureza neurológica, e sim o que chamamos de crise não epiléptica psicogênica", disse Galluci Neto. "Apesar de ser um problema médico, esse tipo de reação não confere risco de morte. Se tratado corretamente, tem evolução positiva."
De acordo com o psiquiatra, o tratamento recomendado é a terapia cognitivo-comportamental. O relatório da USP também sugere acompanhamento médico dos jovens e intervenção social nas famílias - todos os pacientes examinados pela universidade tinham situação social e econômica desfavorável, o que agravaria sua fragilidade psíquica.
O Estadão Verifica tentou obter informações mais atualizadas sobre o estado de saúde dos adolescentes afetados por sintomas pós-vacina por meio da Secretaria de Saúde do Acre e de uma das famílias, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.
O Ministério Público do Acre também acompanha casos de reações adversas à vacina HPV no Estado -- a investigação já dura dois anos. O promotor responsável pelo caso, Glaucio Oshiro, reforçou que o diagnóstico da USP descartou qualquer relação dos sintomas com a imunização. "As famílias (das jovens afetadas) foram orientadas a procurar assistência, e o MP continua à disposição delas", disse.
Como foram feitos os exames da USP
A equipe do IPq avaliou dez meninas e dois meninos entre 11 e 17 anos que tiveram reações adversas pós-vacina. Em nenhum dos casos, os sintomas foram causados pela imunização contra HPV. Apenas dois pacientes, irmãos, foram diagnosticados com epilepsia de origem genética. Todas as outras jovens avaliadas sofriam de reações psicogênicas. "O mecanismo não está relacionado às propriedades biológicas da vacina, mas sim ao estresse do ato de vacinar", informa o relatório médico.
A OMS classifica esse quadro de saúde como Resposta ao Estresse Desencadeada pela Vacinação. Gallucci explica que a reação não é exclusiva da vacina contra HPV - existem relatos relacionados a outras imunizações também, como as contra cólera e tétano. "Hoje, pessoas que vão se vacinar têm medo, insegurança, por causa das informações equivocadas nas redes sociais", diz Gallucci.
O relatório da USP ressalta que crises psicogênicas são marcadas por sintomas involuntários -- isto é, o paciente não está fingindo nem inventando problemas de saúde. Uma história pessoal de negligência e traumas são algumas das causas mais frequentes. "(O paciente) simplesmente os sente (os sintomas)", afirma o documento. "Não por falha de caráter, nem para chamar a atenção (...). Mas porque está adoecido, sem condições de controlar parte do funcionamento do seu cérebro".
Para ter certeza definitiva do diagnóstico, os jovens foram submetidos a um monitoramento prolongado com videoencefalograma por duas semanas (cerca de 300 horas de avaliação). Esse exame analisa a atividade cerebral, e, quanto mais longo for o monitoramento, mais preciso é o resultado - duas semanas garantem sensibilidade de 100%, de acordo com a literatura médica. Os pacientes também foram submetidos a ressonâncias magnéticas, avaliações psicológicas e vários outros exames de saúde.
A médica que alega que as jovens acreanas correm risco de morrer, Maria Emília Gadelha Serra, questiona o diagnóstico da USP e o método utilizado nos exames. Ela, que não é especialista em imunologia, afirma ter examinado as adolescentes afetadas por conta própria e ter encontrado "lesões neurológicas" e "risco de trombose". Questionada, ela não apresentou os exames próprios.
Gallucci, no entanto, afirma que a metodologia do IPq seguiu o padrão-ouro para diagnóstico de epilepsia e crises psicogênicas."O relatório médico foi acompanhado pela OMS e pela OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde), avaliado por órgãos de altíssima competência", disse o psiquiatra. "Avaliamos muitos pacientes, e, no caso das jovens do Acre, fizemos até exames a mais."
De acordo com seu currículo lattes, Maria Emília é especializada em otorrinolaringologia. Ela também é diretora da Associação Brasileira de Ozonioterapia (ABOZ), reconhecida pelo Ministério da Saúde como uma prática integrativa e complementar, como a aromaterapia e a arteterapia. De acordo com a Folha de S. Paulo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) entrou com uma ação contra a médica por danos morais. Ela teria questionado a isenção da entidade para avaliar a segurança da ozonioterapia -- o CFM afirma que a prática não tem garantias de segurança e eficácia.
Segundo Maria Emília, em seu curso de Perícias Médicas na Santa Casa de São Paulo, ela analisou notificações de farmacovigilância na base de dados da OMS. Esses registros estão disponíveis publicamente no site VigiAcess. A médica destacou que, nos casos notificados de reações adversas à vacina contra HPV, quase metade era relacionado ao sistema nervoso central -- a maioria desses relatos era de dor de cabeça e tontura.
O próprio site da OMS traz o alerta de que as notificações registradas ali não são comprovadamente causadas pelos medicamentos. "As informações sobre suspeitas de reações adversas não devem ser interpretadas no sentido de que o medicamento em questão causa o efeito observado ou não é seguro", comunica a OMS. Outros remédios e vacinas, como o paracetamol e a vacina contra gripe, têm número de reações adversas superior ao registrado com a vacina contra HPV.
A segurança da vacina contra HPV
A imunização é considerada segura e eficaz por diversos órgãos de saúde ao redor do mundo: a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e o Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC). No Brasil, a vacina é produzida pelo Instituto Butantan (veja a bula abaixo).
A médica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), afirma que a vacina contra HPV é extremamente segura. "Desde 2007, quando ela começou a ser aplicada, o perfil de segurança continuou o mesmo", explica ela. "É uma vacina inativa, que não tem o vírus. Ela funciona injetando o 'invólucro' do HPV no corpo do paciente. Isso engana o sistema imunológico, que vai produzir anticorpos."
O vírus HPV (Papilomavírus Humano) infecta homens e mulheres e pode causar verrugas e vários tipos de câncer. Ele é transmitido por relações sexuais ou pelo contato com a pele infectada. A vacina é a forma mais eficaz de prevenção, e devem recebê-la no SUS meninas de 9 a 14 anos e meninos de 11 a 14 anos. O exame papanicolau e o uso de preservativos são outras formas importantes de prevenção.
O câncer mais frequente causado pelo HPV, de colo de útero, afeta 16 mil mulheres por ano no Brasil, segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA). São registradas cerca de 6 mil mortes por ano no país. A Austrália, um dos primeiros países a introduzir a vacina contra HPV em seu calendário, em 2007, tem uma das menores taxas de câncer cervical do mundo. A estimativa é que sejam 6 casos a cada 100 mil mulheres este ano.
De acordo com Ballalai, a reação adversa à vacina mais comum é a dor no braço. Dores de cabeça são raras, mas podem acontecer. Ela também esclarece que a vacina não contém chumbo nem metais pesados - um dos mitos mais comuns sobre a imunização. "O que a vacina contra HPV tem, e quase todas as outras vacinas têm, é o alumínio, usado como adjuvante, para potencializar o efeito da vacina", explica a médica. "Ele é usado há décadas de maneira comprovadamente segura."
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.