A jornalista brasileira Fernanda Santos conversava ao telefone com uma amiga mexicana em um café de North Phoenix quando percebeu que um senhor a encarava. “Quando eu desliguei, ele me disse: ‘fale em inglês!’”. Fernanda é casada com um americano, tem uma filha nascida nos EUA e é uma das mais bem sucedidas repórteres do New York Times.
Em inglês fluente, ela respondeu a ele que falava quatro línguas. Queria dizer mais, deixar claro que não planejou viver nos EUA, mas foi lá que construiu a vida após se casar e sempre se sentiu bem-vinda no Arizona, onde vive há quatro anos com a família. Mas antes que pudesse continuar, o homem bradou: “Fuck off!”
“Talvez ele fosse suficientemente velho para ser meu pai. Estou tremendo”, escreveu Fernanda em sua conta no twitter. “Como imigrante e repórter do NYT, eu nunca me senti mal acolhida. Hoje, eu me senti.” Há inúmeros relatos de episódios similares nos últimos dias.
Em “O Mal-estar na Civilização”, Freud observou que o esforço coercivo do homem para se tornar civilizado continuava fraturando seus relacionamentos sociais, resultando, em última instância, em atrocidades indescritíveis contra a Humanidade. Para Freud, o homem não é naturalmente gentil. Seu instinto é de agressividade. E o mal-estar deriva da necessidade de conter seus impulsos, da renúncia à satisfação, “a grande conquista cultural”, para viver em sociedade.
Há inúmeras formas de explicar a vitória de Donald Trump à Casa Branca. Mas a verdade é que, apesar da pregação do absurdo do magnata, Hilary Clinton não conseguiu apoio suficiente para conquistar 270 votos no Colégio Eleitoral e derrotar o republicano. Supremacistas brancos apoiaram Trump em massa (sua vitória foi celebrada publicamente por David Duke, ex-líder da Ku Klux Klan), mas esse eleitorado ultrarradical sozinho não garantiria vitória ao republicano.
A questão racial é um fator certamente relevante. O magnata abarcou com folga os votos de brancos da classe trabalhadora menos educada, como era previsto, mas parte desse eleitorado é o mesmo que ajudou a eleger e reeleger o primeiro presidente negro dos EUA, Barack Obama, em 2008 e 2012.
Protestos contra Trump após resultado das eleições americanas
Obama teve índices de votação piores do que qualquer candidato democrata entre eleitores brancos desde 1984, mas esse resultado foi puxado principalmente pelos sulistas. Ele teve o apoio de boa parte da classe branca trabalhadora e rural do norte, que nesta eleição votou de forma esmagadora em Trump – apesar de ter como opção uma candidata também branca.
Talvez os americanos não estejam preparados para votar em uma mulher. Mas o que explica a surpreendente parcela de 42% das mulheres que votaram em Trump, mesmo depois de divulgado áudio em que o magnata se enaltece de suas qualidades como homem das cavernas, tocando mulheres à revelia de seu consentimento? Hillary conquistou 54% de votos femininos, mais do que Trump, mas menos do que Obama em 2012, mesmo sendo mulher e concorrendo com um misógino declarado.
Entre as brancas apenas, Trump ficou com 53% dos votos. Entre as latinas, 26%. Entre hispânicos em geral, Hillary teve 65% dos votos, aquém de Obama (71%), enquanto Trump conseguiu atrair mais apoiadores que Mitt Romney, em 2012 (29% contra 27%), mesmo defendendo inúmeras vezes a expulsão de imigrantes dos EUA e a construção de um muro na fronteira com o México.
A vitória de Hillary dependia largamente das minorias que votaram em massa em Obama nas duas últimas eleições. Mas a apoio a ela, embora maior do que a Trump, não foi suficiente. Ela só conseguiu larga vantagem entre negros (88%), também aquém de Obama (93%). Entre outras minorias, como asiáticos, teve 65% dos votos, menos do que os 73% para Obama em 2012.
A preferência do eleitorado mais velho por Trump era clara, o que exigiria boa margem de Hillary entre jovens. Ela teve 55% dos votos de eleitores com até 30 anos, 5% menos do que Obama em 2012; 37% desses jovens votaram em Trump.
“Trump foi alçado à Casa Branca por uma onda de insatisfação popular”, escreveu a Economist, atribuindo a isso, em parte, a estagnação da renda média dos homens americanos. Mas mais da metade (52%) dos eleitores de baixa renda (até US$ 50 mil por ano) votaram em Hillary. Além disso, o índice de desemprego nos EUA despencou na era Obama – de 10% em 2009 para 4,9% hoje. Mais de 20 milhões se beneficiaram com o Obamacare.
O que é certo sobre a vitória de Trump – assim como do Brexit – é que velhas certezas produziram uma massa de descontentes. Trump soube explorar a insatisfação do homem como ninguém e abrir caminho para uma era de incivilidade.