A imagem do país é similar ao do personagem Bronn, do programa de TV "Games of Thrones", uma espécie de série histórica de fantasia que deixaria no chinelo as tramóias do florentino Niccolò Machiavelli (1469-1527), autor de "O Príncipe". Bronn de Aguasnegras é um caboclo que trabalha como guarda-costas para Tyrion Lannister, um calculista anão que integra a mais importante casa de nobres do imaginário reino medieval onde transcorrem as ações. Um dia os dois conversam sobre Petyr "Mindinho" Baelish, Conselheiro da Moeda, que além de conseguir dinheiro com impostos e emissão monetária descontrolada, vive aumentando a dívida pública. Durante um dos mais emblemáticos diálogos da série (aqui está o vídeo) Tyrion ironiza a capacidade de Baelish, afirmando que "durante anos escutei que ele era um mágico. Sempre que a coroa precisa dinheiro ele esfrega as mãos e puf, montanhas de ouro!". Bronn entende a ironia e comenta:
- "Já sei, ele não é um mágico"
Tyrion responde: "Não..."
Bronn - Ele está roubando?
Tyrion - Pior do que isso. Ele pede emprestado.
Bronn - E que isso tem de errado?
Tyrion - É que ele não consegue economizar para devolver o dinheiro. Isso é o que tem de errado. A coroa deve milhões a meu pai.
Bronn - Seu pai não pode perdoar esse dinheiro?
Tyrion - Meu pai, perdoar uma dívida? Para um homem de mundo como você, parece naif neste caso...
Bronn - Eu nunca pedi dinheiro emprestado...Não sei claramente quais são as regras.
Tyrion - Bom...cóf, cóf...O princípio básico é que te empresto dinheiro e após um período combinado de tempo, você me devolve o dinheiro, com juros.
Bronn - E se eu não pago?
Tyrion - Você tem que pagar...
Bronn - Mas e seu eu não pago?
Tyrion - ...É por isso que não te empresto dinheiro...
A Argentina seria, mutatis mutandis, o fanfarrão personagem Bronn, pois, para não pagar os "holdouts" (7,6% dos total dos credores da dívida) colocou em perigo o pagamento a seus credores reestruturados (92,4%), entrando em estado de calote parcial com estes últimos, e auto-torpedeia as chances de contar com novos créditos externos a curto e médio prazo (algo que os próximos presidentes argentinos - e não Cristina Kirchner, que termina o mandato daqui a 16 meses - terão como pesadelos próprios).
O governo Kirchner insiste que não entrou em estado de calote na quarta-feira ao não pagar US$ 539 milhões em Nova York aos credores da dívida pública que possuem bônus Discount com jurisdição nos Estados Unidos. O governo afirma que depositou o dinheiro e que este não pode ser entregue por determinação do juiz Griesa, que indicou que se a Argentina quer pagar os reestruturados deverá também pagar os "holdouts".
O fato é que existe um calote parcial, já que do total de US$ 10,792 bilhões que deveria pagar a todos seus credores reestruturados em 2014 e 2015, não poderá entregar US$ 3,086 bilhões. Mas, independentemente do rigor para definir este calote sui generis, para os mercados internacionais a imagem é de um novo calote da Argentina. E, neste século de maior peso da percepção do que a realidade, a imagem de caloteira pesa mais.
Desta forma, com um "calote pero no mucho", a última crise da dívida argentina prolonga-se de uma maneira ou outra intermitente desde o dia 23 de dezembro de 2001, quando o presidente provisório Adolfo Rodríguez Sáa anunciou o calote dos US$ 81 bilhões de dívida pública com os credores privados, transformando-se no maior default da História moderna. O Parlamento argentino em peso aplaudiu a decisão. Imediatamente o país tornou-se pária dos mercados mundiais.
Quatro anos depois, em 2005 o então presidente Néstor Kirchner reestruturou a maioria dos títulos em estado de calote, oferecendo aos credores maiores prazos para pagamento e uma redução do valor nominal dos títulos. A maior parte dos credores aceitou a proposta. Kirchner, para indicar que não abriria novas ofertas no futuro, aprovou a "lei ferrolho", que impedia a realização de novas reestruturações. Na ocasião, o então ministro da Economia, Roberto Lavagna, afirmou categórico: "quem não aceitou a troca de títulos ficará a ver navios!".
No entanto, país continuou sem acesso ao mercado internacional de créditos. Nesse cenário, Kirchner teve que recorrer ao presidente Hugo Chávez da Venezuela, que transformou-se no único comprador externo de títulos argentinos. Mas, desde 2008, mergulhado em problemas financeiros internos, o líder bolivariano deixou de lado as compras desses bônus, complicando as fontes de financiamento externo da administração Kirchner, que começou a rumar na direção do déficit fiscal.
Em 2010, após pressões dos mercados internacionais, a presidente Cristina Kirchner encaminhou uma proposta de reestruturação da dívida com os credores que haviam ficado fora da operação em 2005. Na época os partidos de esquerda criticaram o governo, acusando-o de violar a "lei ferrolho". Mas Cristina ignorou as críticas e - passando por cima de suas próprias promessas - reabriu a reestruturação e obteve uma adesão de mais "holdouts".
Mas, ficaram remanescentes 7,6% de credores que não aceitaram nenhuma das duas trocas de títulos. Embora poucos, estes "holdouts" transformaram-se em uma pedra no sapato do governo Kirchner, promovendo ações na Justiça internacional contra a Argentina, impedindo que o país voltasse ao mercado de capitais com taxas de juros razoáveis.
Tal como Bronn de Águasnegras, a Argentina teria dificuldades nos próximos tempos para conseguir empréstimos.
referenceE falando em dinheiro, o "Rondo du brésilien", da ópera "La vie parisienne", de Jacques Offenbach:
//www.youtube.com/embed/tRVenJPpBuk
Em 2009 "Os Hermanos" recebeu o prêmio de melhor blog do Estadão (prêmio compartilhado com o blogueiro Gustavo Chacra). Em 2013 publicou "Os Argentinos", pela Editora Contexto, uma espécie de "manual" sobre a Argentina. Em 2014, em parceria com Guga Chacra, escreveu "Os Hermanos e Nós", livro sobre o futebol argentino e os mitos da "rivalidade" Brasil-Argentina.