‘Biden terá de buscar cooperação com a China’


Ex-presidente do Banco Mundial afirma que é impossível para os EUA deterem o crescimento da economia chinesa

Por Guilherme Evelin

Robert Zoellick ficou famoso no Brasil como o “sub do sub do sub”. Em 2002, foi assim que o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva o qualificou em meio à proposta de criação de uma Área de Livre-Comércio das Américas (Alca). Como representante comercial dos EUA, Zoellick era o principal negociador do governo George W. Bush. 

Apesar do desdém de Lula, Zoellick foi figura importante do governo Bush, o segundo nome do Departamento de Estado e presidente do Banco Mundial entre 2007 e 2012. Depois, se tornou membro do Centro Belfer para Ciência e Relações Internacionais, da Universidade Harvard. Este ano, Zoellick publicou o livro America in the World: A History of U.S Diplomacy and Foreign Policy. A seguir, trechos da entrevista dada por ele ao Estadão.

Feira internacional de importação e exportação em Xangai Foto: EFE/EPA/ALEX PLAVEVSKI
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O senhor vê grandes mudanças na política externa dos EUA em um governo Biden?  Trump representa uma quebra da política externa americana. Sua abordagem é transacional. Suas relações são baseadas no seu ego e nas ligações pessoais com outras figuras políticas. Sua política externa foi a continuidade de sua política doméstica. Ele governou desafiando a ordem estabelecida. Certos temas se tornaram simbólicos dessa mudança. Se Barack Obama negociou com o Irã, Trump quis sair do acordo. Se outros presidentes não negociaram com a Coreia do Norte, ele tratou de fazer isso. Sua política externa foi uma forma de se comunicar com sua base e dizer que ele era autêntico, diferente, e quebraria todos os padrões. Joe Biden foi presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado e vice-presidente. Seu desafio é ter uma agenda doméstica carregada: ele terá de lidar com a pandemia, recuperar a economia, lidar com questões raciais e de imigração e terá de dar prioridade às mudanças climáticas. Sua equipe deve se lembrar que Jimmy Carter, Bill Clinton e Barack Obama foram eleitos com maiorias democratas e grandes expectativas. Mas, depois de dois anos, tiveram derrotas políticas. Lembro do conselho que meu antigo chefe, James Baker, que foi chefe de gabinete de Ronald Reagan, deu a ele em 1981. “Presidente, o senhor tem três prioridades: recuperação econômica, recuperação econômica e recuperação econômica.”

Biden deve adotar uma abordagem mais multilateral nas relações internacionais. Qual o significado disso? Isso ainda é muito vago. A equipe de Biden deveria alavancar sua agenda doméstica para o plano internacional. Por exemplo, se no próximo ano você tiver uma vacina e melhores tratamentos para a covid, os EUA deveriam não apenas voltar à OMS, mas tentar uma melhor cooperação entre Banco Mundial, bancos regionais de desenvolvimento e OMS para distribuição dessa vacina. Na questão das mudanças climáticas, além de voltar ao Acordo de Paris, ele deveria obter apoio de países em desenvolvimento. Ele pode dar ênfase a esforços contra o desflorestamento. Algumas iniciativas poderiam levar financiamento para países em desenvolvimento, como o Brasil. Em cada um dos temas domésticos, Biden pode achar um componente internacional, até mesmo para reconstruir laços com nossos aliados e criar uma base para lidar com grandes questões, como o futuro das sociedades livres e a ascensão da China. 

É possível prever antagonismos entre Biden e Bolsonaro na questão ambiental? Vai depender das ações de Bolsonaro e do Congresso brasileiro. Um governo Biden não vai procurar briga com o Brasil. Ele tem outras demandas. Parte do desafio na América Latina será evitar uma década de estagnação por causa da pandemia. A crise da Venezuela também não atende ao interesse de ninguém. É uma tragédia que tem múltiplos efeitos, até mesmo para o Brasil. Biden deve conversar com outros governos na América Latina sobre como lidar com esse problema. Minha aposta é que o Brasil pode ser um parceiro-chave. Suspeito que Biden tentará encontrar uma política comum com o Brasil para lidar com a Venezuela. E Bolsonaro pode ser mais receptivo que outros governos brasileiros foram a uma ação conjunta, já que Lula parecia querer acomodar e aceitar os ataques à democracia na Venezuela. 

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Como fica a competição entre EUA e China? As relações estão em queda livre. Não sabemos qual é o fundo do poço e isso é perigoso. Trump começou focando no déficit comercial. Entre 2017 e 2019, o déficit não mudou. As exportações americanas, este ano, caíram em relação a 2017. À medida que a covid-19 passou a ameaçar sua reeleição, Trump passou a culpar a China pelo vírus, como desculpa para justificar sua resposta à pandemia. Isso provocou reação da China em quase todos os campos: ideológico, político, tecnológico, segurança. Biden tem de reconhecer que a atitude geral nos EUA se tornou mais negativa em relação à China. Os empresários americanos se queixam de transferência de tecnologia, de respeito a direitos de propriedade intelectual e da falta de acesso a mercados. O tratamento a Hong Kong e à minoria uigur é um entrave. A ansiedade cresceu com a maior assertividade dos militares chineses no Mar do Sul da China. As tensões estão em alta em relação ao Tibete. Há uma preocupação com o fato de os chineses quererem dominar tecnologias do futuro e isso pode colocar em risco as sociedades livres. Há dificuldades, mas a questão é saber se os EUA ainda podem trabalhar com a China. Se alguém quiser conter pandemia, mudanças climáticas e proliferação nuclear tem de trabalhar com a China. Reconheço que Xi Jinping está reforçando o papel do Partido Comunista e do setor estatal com políticas mais agressivas. A questão é achar uma base para competir com a China e, ao mesmo tempo, encontrar áreas para cooperar. Biden deve trabalhar de forma mais próxima aos aliados, incluindo Japão, Coreia do Sul e Austrália, além dos europeus. E isso pode propiciar uma oportunidade para o Brasil, não para cortar relações com a China, mas para pressionar os chineses em questões de interesse comum, como comércio, tecnologia e direitos humanos.

É possível concorrer e cooperar com a China? O esforço para achar interesses comuns foi bem-sucedido no passado, em uma série de tópicos, como proliferação nuclear, taxas de câmbio para reduzir o superávit chinês nas transações correntes, cooperação com Banco Mundial e com FMI. É possível conter a China economicamente? Não. Outros países não aceitariam essa ideia. Você pode lidar com pandemia, questões climáticas e economia internacional isolando a China? Não. Então, do ponto de vista prático, você tem de encontrar áreas onde deter a China, como segurança; onde se desvincular da China, como 5G e tecnologia; e outras em que pode haver cooperação. Não é uma questão de preto ou branco. 

A pandemia aumentará o protecionismo no mundo? A pandemia levou algumas economias a adotar políticas autárquicas para proibir a exportação de equipamentos de saúde ou alimentos. Também levou algumas empresas a adaptar suas cadeias de suprimento para ter maior diversidade de fontes. Vai haver uma tensão entre a adaptação ao novo mundo da covid e a autarquia. A autarquia não será bem-sucedida, mas as forças protecionistas vão procurar tirar vantagem para levantar barreiras. Teremos também políticas mais cautelosas. Há medidas que serão desenhadas para proteger a saúde das sociedades, mas que podem facilmente se transformar em políticas protecionistas. Se os EUA dão um passo atrás na globalização, como fez Trump, outros países se sentem incentivados a tomar a mesma atitude – e isso mina a capacidade de recuperação da economia internacional. A equipe de Biden não gosta da política comercial de Trump, mas ele sofre alguns constrangimentos por causa das forças protecionistas em feudos eleitorais do Partido Democrata. Minha aposta é que ele não dará ênfase ao comércio, mas seus assessores vão procurar oportunidades para promover a liberalização em algumas áreas, como comércio digital, bens ambientais e suprimentos de saúde.

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O sr. trabalhou com James Baker, um dos pilares do que era o establishment republicano. Como vê o futuro do partido? Trump sequestrou o partido. Em várias partes do mundo, as pessoas se sentem ameaçadas. Não é uma ameaça econômica. É mais uma ameaça à identidade e ao lugar que ocupam nas sociedades. Trump usou os ressentimentos das pessoas para construir uma coalizão política, que tirou o Partido Republicano do caminho para o qual estava indo, que era o de alcançar mais eleitores hispânicos, mulheres e moradores dos subúrbios. Ele foi bem-sucedido em construir uma base política forte, mas a demografia dessa coalizão não é boa no longo prazo. O eleitorado de homens brancos sem instrução superior deve encolher. Mas Trump foi eficaz em mobilizar a base e deixou outros republicanos com receio de enfrentá-lo. Eles encontraram, então, uma forma de se acomodar com Trump. Concentraram seus interesses em cortes de impostos e indicação de juízes conservadores para os tribunais. Após a derrota, é difícil dizer o que Trump fará. Muitos apostam que ele não vai se aposentar e ainda será uma força política. Acredito que haverá um debate entre os republicanos sobre o que significa ser um partido político de centro-direita conservadora. O Partido Republicano pode se transformar num partido populista nacionalista ou pode tentar recuperar políticas mais inclusivas. 

Robert Zoellick ficou famoso no Brasil como o “sub do sub do sub”. Em 2002, foi assim que o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva o qualificou em meio à proposta de criação de uma Área de Livre-Comércio das Américas (Alca). Como representante comercial dos EUA, Zoellick era o principal negociador do governo George W. Bush. 

Apesar do desdém de Lula, Zoellick foi figura importante do governo Bush, o segundo nome do Departamento de Estado e presidente do Banco Mundial entre 2007 e 2012. Depois, se tornou membro do Centro Belfer para Ciência e Relações Internacionais, da Universidade Harvard. Este ano, Zoellick publicou o livro America in the World: A History of U.S Diplomacy and Foreign Policy. A seguir, trechos da entrevista dada por ele ao Estadão.

Feira internacional de importação e exportação em Xangai Foto: EFE/EPA/ALEX PLAVEVSKI

O senhor vê grandes mudanças na política externa dos EUA em um governo Biden?  Trump representa uma quebra da política externa americana. Sua abordagem é transacional. Suas relações são baseadas no seu ego e nas ligações pessoais com outras figuras políticas. Sua política externa foi a continuidade de sua política doméstica. Ele governou desafiando a ordem estabelecida. Certos temas se tornaram simbólicos dessa mudança. Se Barack Obama negociou com o Irã, Trump quis sair do acordo. Se outros presidentes não negociaram com a Coreia do Norte, ele tratou de fazer isso. Sua política externa foi uma forma de se comunicar com sua base e dizer que ele era autêntico, diferente, e quebraria todos os padrões. Joe Biden foi presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado e vice-presidente. Seu desafio é ter uma agenda doméstica carregada: ele terá de lidar com a pandemia, recuperar a economia, lidar com questões raciais e de imigração e terá de dar prioridade às mudanças climáticas. Sua equipe deve se lembrar que Jimmy Carter, Bill Clinton e Barack Obama foram eleitos com maiorias democratas e grandes expectativas. Mas, depois de dois anos, tiveram derrotas políticas. Lembro do conselho que meu antigo chefe, James Baker, que foi chefe de gabinete de Ronald Reagan, deu a ele em 1981. “Presidente, o senhor tem três prioridades: recuperação econômica, recuperação econômica e recuperação econômica.”

Biden deve adotar uma abordagem mais multilateral nas relações internacionais. Qual o significado disso? Isso ainda é muito vago. A equipe de Biden deveria alavancar sua agenda doméstica para o plano internacional. Por exemplo, se no próximo ano você tiver uma vacina e melhores tratamentos para a covid, os EUA deveriam não apenas voltar à OMS, mas tentar uma melhor cooperação entre Banco Mundial, bancos regionais de desenvolvimento e OMS para distribuição dessa vacina. Na questão das mudanças climáticas, além de voltar ao Acordo de Paris, ele deveria obter apoio de países em desenvolvimento. Ele pode dar ênfase a esforços contra o desflorestamento. Algumas iniciativas poderiam levar financiamento para países em desenvolvimento, como o Brasil. Em cada um dos temas domésticos, Biden pode achar um componente internacional, até mesmo para reconstruir laços com nossos aliados e criar uma base para lidar com grandes questões, como o futuro das sociedades livres e a ascensão da China. 

É possível prever antagonismos entre Biden e Bolsonaro na questão ambiental? Vai depender das ações de Bolsonaro e do Congresso brasileiro. Um governo Biden não vai procurar briga com o Brasil. Ele tem outras demandas. Parte do desafio na América Latina será evitar uma década de estagnação por causa da pandemia. A crise da Venezuela também não atende ao interesse de ninguém. É uma tragédia que tem múltiplos efeitos, até mesmo para o Brasil. Biden deve conversar com outros governos na América Latina sobre como lidar com esse problema. Minha aposta é que o Brasil pode ser um parceiro-chave. Suspeito que Biden tentará encontrar uma política comum com o Brasil para lidar com a Venezuela. E Bolsonaro pode ser mais receptivo que outros governos brasileiros foram a uma ação conjunta, já que Lula parecia querer acomodar e aceitar os ataques à democracia na Venezuela. 

Como fica a competição entre EUA e China? As relações estão em queda livre. Não sabemos qual é o fundo do poço e isso é perigoso. Trump começou focando no déficit comercial. Entre 2017 e 2019, o déficit não mudou. As exportações americanas, este ano, caíram em relação a 2017. À medida que a covid-19 passou a ameaçar sua reeleição, Trump passou a culpar a China pelo vírus, como desculpa para justificar sua resposta à pandemia. Isso provocou reação da China em quase todos os campos: ideológico, político, tecnológico, segurança. Biden tem de reconhecer que a atitude geral nos EUA se tornou mais negativa em relação à China. Os empresários americanos se queixam de transferência de tecnologia, de respeito a direitos de propriedade intelectual e da falta de acesso a mercados. O tratamento a Hong Kong e à minoria uigur é um entrave. A ansiedade cresceu com a maior assertividade dos militares chineses no Mar do Sul da China. As tensões estão em alta em relação ao Tibete. Há uma preocupação com o fato de os chineses quererem dominar tecnologias do futuro e isso pode colocar em risco as sociedades livres. Há dificuldades, mas a questão é saber se os EUA ainda podem trabalhar com a China. Se alguém quiser conter pandemia, mudanças climáticas e proliferação nuclear tem de trabalhar com a China. Reconheço que Xi Jinping está reforçando o papel do Partido Comunista e do setor estatal com políticas mais agressivas. A questão é achar uma base para competir com a China e, ao mesmo tempo, encontrar áreas para cooperar. Biden deve trabalhar de forma mais próxima aos aliados, incluindo Japão, Coreia do Sul e Austrália, além dos europeus. E isso pode propiciar uma oportunidade para o Brasil, não para cortar relações com a China, mas para pressionar os chineses em questões de interesse comum, como comércio, tecnologia e direitos humanos.

É possível concorrer e cooperar com a China? O esforço para achar interesses comuns foi bem-sucedido no passado, em uma série de tópicos, como proliferação nuclear, taxas de câmbio para reduzir o superávit chinês nas transações correntes, cooperação com Banco Mundial e com FMI. É possível conter a China economicamente? Não. Outros países não aceitariam essa ideia. Você pode lidar com pandemia, questões climáticas e economia internacional isolando a China? Não. Então, do ponto de vista prático, você tem de encontrar áreas onde deter a China, como segurança; onde se desvincular da China, como 5G e tecnologia; e outras em que pode haver cooperação. Não é uma questão de preto ou branco. 

A pandemia aumentará o protecionismo no mundo? A pandemia levou algumas economias a adotar políticas autárquicas para proibir a exportação de equipamentos de saúde ou alimentos. Também levou algumas empresas a adaptar suas cadeias de suprimento para ter maior diversidade de fontes. Vai haver uma tensão entre a adaptação ao novo mundo da covid e a autarquia. A autarquia não será bem-sucedida, mas as forças protecionistas vão procurar tirar vantagem para levantar barreiras. Teremos também políticas mais cautelosas. Há medidas que serão desenhadas para proteger a saúde das sociedades, mas que podem facilmente se transformar em políticas protecionistas. Se os EUA dão um passo atrás na globalização, como fez Trump, outros países se sentem incentivados a tomar a mesma atitude – e isso mina a capacidade de recuperação da economia internacional. A equipe de Biden não gosta da política comercial de Trump, mas ele sofre alguns constrangimentos por causa das forças protecionistas em feudos eleitorais do Partido Democrata. Minha aposta é que ele não dará ênfase ao comércio, mas seus assessores vão procurar oportunidades para promover a liberalização em algumas áreas, como comércio digital, bens ambientais e suprimentos de saúde.

O sr. trabalhou com James Baker, um dos pilares do que era o establishment republicano. Como vê o futuro do partido? Trump sequestrou o partido. Em várias partes do mundo, as pessoas se sentem ameaçadas. Não é uma ameaça econômica. É mais uma ameaça à identidade e ao lugar que ocupam nas sociedades. Trump usou os ressentimentos das pessoas para construir uma coalizão política, que tirou o Partido Republicano do caminho para o qual estava indo, que era o de alcançar mais eleitores hispânicos, mulheres e moradores dos subúrbios. Ele foi bem-sucedido em construir uma base política forte, mas a demografia dessa coalizão não é boa no longo prazo. O eleitorado de homens brancos sem instrução superior deve encolher. Mas Trump foi eficaz em mobilizar a base e deixou outros republicanos com receio de enfrentá-lo. Eles encontraram, então, uma forma de se acomodar com Trump. Concentraram seus interesses em cortes de impostos e indicação de juízes conservadores para os tribunais. Após a derrota, é difícil dizer o que Trump fará. Muitos apostam que ele não vai se aposentar e ainda será uma força política. Acredito que haverá um debate entre os republicanos sobre o que significa ser um partido político de centro-direita conservadora. O Partido Republicano pode se transformar num partido populista nacionalista ou pode tentar recuperar políticas mais inclusivas. 

Robert Zoellick ficou famoso no Brasil como o “sub do sub do sub”. Em 2002, foi assim que o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva o qualificou em meio à proposta de criação de uma Área de Livre-Comércio das Américas (Alca). Como representante comercial dos EUA, Zoellick era o principal negociador do governo George W. Bush. 

Apesar do desdém de Lula, Zoellick foi figura importante do governo Bush, o segundo nome do Departamento de Estado e presidente do Banco Mundial entre 2007 e 2012. Depois, se tornou membro do Centro Belfer para Ciência e Relações Internacionais, da Universidade Harvard. Este ano, Zoellick publicou o livro America in the World: A History of U.S Diplomacy and Foreign Policy. A seguir, trechos da entrevista dada por ele ao Estadão.

Feira internacional de importação e exportação em Xangai Foto: EFE/EPA/ALEX PLAVEVSKI

O senhor vê grandes mudanças na política externa dos EUA em um governo Biden?  Trump representa uma quebra da política externa americana. Sua abordagem é transacional. Suas relações são baseadas no seu ego e nas ligações pessoais com outras figuras políticas. Sua política externa foi a continuidade de sua política doméstica. Ele governou desafiando a ordem estabelecida. Certos temas se tornaram simbólicos dessa mudança. Se Barack Obama negociou com o Irã, Trump quis sair do acordo. Se outros presidentes não negociaram com a Coreia do Norte, ele tratou de fazer isso. Sua política externa foi uma forma de se comunicar com sua base e dizer que ele era autêntico, diferente, e quebraria todos os padrões. Joe Biden foi presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado e vice-presidente. Seu desafio é ter uma agenda doméstica carregada: ele terá de lidar com a pandemia, recuperar a economia, lidar com questões raciais e de imigração e terá de dar prioridade às mudanças climáticas. Sua equipe deve se lembrar que Jimmy Carter, Bill Clinton e Barack Obama foram eleitos com maiorias democratas e grandes expectativas. Mas, depois de dois anos, tiveram derrotas políticas. Lembro do conselho que meu antigo chefe, James Baker, que foi chefe de gabinete de Ronald Reagan, deu a ele em 1981. “Presidente, o senhor tem três prioridades: recuperação econômica, recuperação econômica e recuperação econômica.”

Biden deve adotar uma abordagem mais multilateral nas relações internacionais. Qual o significado disso? Isso ainda é muito vago. A equipe de Biden deveria alavancar sua agenda doméstica para o plano internacional. Por exemplo, se no próximo ano você tiver uma vacina e melhores tratamentos para a covid, os EUA deveriam não apenas voltar à OMS, mas tentar uma melhor cooperação entre Banco Mundial, bancos regionais de desenvolvimento e OMS para distribuição dessa vacina. Na questão das mudanças climáticas, além de voltar ao Acordo de Paris, ele deveria obter apoio de países em desenvolvimento. Ele pode dar ênfase a esforços contra o desflorestamento. Algumas iniciativas poderiam levar financiamento para países em desenvolvimento, como o Brasil. Em cada um dos temas domésticos, Biden pode achar um componente internacional, até mesmo para reconstruir laços com nossos aliados e criar uma base para lidar com grandes questões, como o futuro das sociedades livres e a ascensão da China. 

É possível prever antagonismos entre Biden e Bolsonaro na questão ambiental? Vai depender das ações de Bolsonaro e do Congresso brasileiro. Um governo Biden não vai procurar briga com o Brasil. Ele tem outras demandas. Parte do desafio na América Latina será evitar uma década de estagnação por causa da pandemia. A crise da Venezuela também não atende ao interesse de ninguém. É uma tragédia que tem múltiplos efeitos, até mesmo para o Brasil. Biden deve conversar com outros governos na América Latina sobre como lidar com esse problema. Minha aposta é que o Brasil pode ser um parceiro-chave. Suspeito que Biden tentará encontrar uma política comum com o Brasil para lidar com a Venezuela. E Bolsonaro pode ser mais receptivo que outros governos brasileiros foram a uma ação conjunta, já que Lula parecia querer acomodar e aceitar os ataques à democracia na Venezuela. 

Como fica a competição entre EUA e China? As relações estão em queda livre. Não sabemos qual é o fundo do poço e isso é perigoso. Trump começou focando no déficit comercial. Entre 2017 e 2019, o déficit não mudou. As exportações americanas, este ano, caíram em relação a 2017. À medida que a covid-19 passou a ameaçar sua reeleição, Trump passou a culpar a China pelo vírus, como desculpa para justificar sua resposta à pandemia. Isso provocou reação da China em quase todos os campos: ideológico, político, tecnológico, segurança. Biden tem de reconhecer que a atitude geral nos EUA se tornou mais negativa em relação à China. Os empresários americanos se queixam de transferência de tecnologia, de respeito a direitos de propriedade intelectual e da falta de acesso a mercados. O tratamento a Hong Kong e à minoria uigur é um entrave. A ansiedade cresceu com a maior assertividade dos militares chineses no Mar do Sul da China. As tensões estão em alta em relação ao Tibete. Há uma preocupação com o fato de os chineses quererem dominar tecnologias do futuro e isso pode colocar em risco as sociedades livres. Há dificuldades, mas a questão é saber se os EUA ainda podem trabalhar com a China. Se alguém quiser conter pandemia, mudanças climáticas e proliferação nuclear tem de trabalhar com a China. Reconheço que Xi Jinping está reforçando o papel do Partido Comunista e do setor estatal com políticas mais agressivas. A questão é achar uma base para competir com a China e, ao mesmo tempo, encontrar áreas para cooperar. Biden deve trabalhar de forma mais próxima aos aliados, incluindo Japão, Coreia do Sul e Austrália, além dos europeus. E isso pode propiciar uma oportunidade para o Brasil, não para cortar relações com a China, mas para pressionar os chineses em questões de interesse comum, como comércio, tecnologia e direitos humanos.

É possível concorrer e cooperar com a China? O esforço para achar interesses comuns foi bem-sucedido no passado, em uma série de tópicos, como proliferação nuclear, taxas de câmbio para reduzir o superávit chinês nas transações correntes, cooperação com Banco Mundial e com FMI. É possível conter a China economicamente? Não. Outros países não aceitariam essa ideia. Você pode lidar com pandemia, questões climáticas e economia internacional isolando a China? Não. Então, do ponto de vista prático, você tem de encontrar áreas onde deter a China, como segurança; onde se desvincular da China, como 5G e tecnologia; e outras em que pode haver cooperação. Não é uma questão de preto ou branco. 

A pandemia aumentará o protecionismo no mundo? A pandemia levou algumas economias a adotar políticas autárquicas para proibir a exportação de equipamentos de saúde ou alimentos. Também levou algumas empresas a adaptar suas cadeias de suprimento para ter maior diversidade de fontes. Vai haver uma tensão entre a adaptação ao novo mundo da covid e a autarquia. A autarquia não será bem-sucedida, mas as forças protecionistas vão procurar tirar vantagem para levantar barreiras. Teremos também políticas mais cautelosas. Há medidas que serão desenhadas para proteger a saúde das sociedades, mas que podem facilmente se transformar em políticas protecionistas. Se os EUA dão um passo atrás na globalização, como fez Trump, outros países se sentem incentivados a tomar a mesma atitude – e isso mina a capacidade de recuperação da economia internacional. A equipe de Biden não gosta da política comercial de Trump, mas ele sofre alguns constrangimentos por causa das forças protecionistas em feudos eleitorais do Partido Democrata. Minha aposta é que ele não dará ênfase ao comércio, mas seus assessores vão procurar oportunidades para promover a liberalização em algumas áreas, como comércio digital, bens ambientais e suprimentos de saúde.

O sr. trabalhou com James Baker, um dos pilares do que era o establishment republicano. Como vê o futuro do partido? Trump sequestrou o partido. Em várias partes do mundo, as pessoas se sentem ameaçadas. Não é uma ameaça econômica. É mais uma ameaça à identidade e ao lugar que ocupam nas sociedades. Trump usou os ressentimentos das pessoas para construir uma coalizão política, que tirou o Partido Republicano do caminho para o qual estava indo, que era o de alcançar mais eleitores hispânicos, mulheres e moradores dos subúrbios. Ele foi bem-sucedido em construir uma base política forte, mas a demografia dessa coalizão não é boa no longo prazo. O eleitorado de homens brancos sem instrução superior deve encolher. Mas Trump foi eficaz em mobilizar a base e deixou outros republicanos com receio de enfrentá-lo. Eles encontraram, então, uma forma de se acomodar com Trump. Concentraram seus interesses em cortes de impostos e indicação de juízes conservadores para os tribunais. Após a derrota, é difícil dizer o que Trump fará. Muitos apostam que ele não vai se aposentar e ainda será uma força política. Acredito que haverá um debate entre os republicanos sobre o que significa ser um partido político de centro-direita conservadora. O Partido Republicano pode se transformar num partido populista nacionalista ou pode tentar recuperar políticas mais inclusivas. 

Robert Zoellick ficou famoso no Brasil como o “sub do sub do sub”. Em 2002, foi assim que o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva o qualificou em meio à proposta de criação de uma Área de Livre-Comércio das Américas (Alca). Como representante comercial dos EUA, Zoellick era o principal negociador do governo George W. Bush. 

Apesar do desdém de Lula, Zoellick foi figura importante do governo Bush, o segundo nome do Departamento de Estado e presidente do Banco Mundial entre 2007 e 2012. Depois, se tornou membro do Centro Belfer para Ciência e Relações Internacionais, da Universidade Harvard. Este ano, Zoellick publicou o livro America in the World: A History of U.S Diplomacy and Foreign Policy. A seguir, trechos da entrevista dada por ele ao Estadão.

Feira internacional de importação e exportação em Xangai Foto: EFE/EPA/ALEX PLAVEVSKI

O senhor vê grandes mudanças na política externa dos EUA em um governo Biden?  Trump representa uma quebra da política externa americana. Sua abordagem é transacional. Suas relações são baseadas no seu ego e nas ligações pessoais com outras figuras políticas. Sua política externa foi a continuidade de sua política doméstica. Ele governou desafiando a ordem estabelecida. Certos temas se tornaram simbólicos dessa mudança. Se Barack Obama negociou com o Irã, Trump quis sair do acordo. Se outros presidentes não negociaram com a Coreia do Norte, ele tratou de fazer isso. Sua política externa foi uma forma de se comunicar com sua base e dizer que ele era autêntico, diferente, e quebraria todos os padrões. Joe Biden foi presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado e vice-presidente. Seu desafio é ter uma agenda doméstica carregada: ele terá de lidar com a pandemia, recuperar a economia, lidar com questões raciais e de imigração e terá de dar prioridade às mudanças climáticas. Sua equipe deve se lembrar que Jimmy Carter, Bill Clinton e Barack Obama foram eleitos com maiorias democratas e grandes expectativas. Mas, depois de dois anos, tiveram derrotas políticas. Lembro do conselho que meu antigo chefe, James Baker, que foi chefe de gabinete de Ronald Reagan, deu a ele em 1981. “Presidente, o senhor tem três prioridades: recuperação econômica, recuperação econômica e recuperação econômica.”

Biden deve adotar uma abordagem mais multilateral nas relações internacionais. Qual o significado disso? Isso ainda é muito vago. A equipe de Biden deveria alavancar sua agenda doméstica para o plano internacional. Por exemplo, se no próximo ano você tiver uma vacina e melhores tratamentos para a covid, os EUA deveriam não apenas voltar à OMS, mas tentar uma melhor cooperação entre Banco Mundial, bancos regionais de desenvolvimento e OMS para distribuição dessa vacina. Na questão das mudanças climáticas, além de voltar ao Acordo de Paris, ele deveria obter apoio de países em desenvolvimento. Ele pode dar ênfase a esforços contra o desflorestamento. Algumas iniciativas poderiam levar financiamento para países em desenvolvimento, como o Brasil. Em cada um dos temas domésticos, Biden pode achar um componente internacional, até mesmo para reconstruir laços com nossos aliados e criar uma base para lidar com grandes questões, como o futuro das sociedades livres e a ascensão da China. 

É possível prever antagonismos entre Biden e Bolsonaro na questão ambiental? Vai depender das ações de Bolsonaro e do Congresso brasileiro. Um governo Biden não vai procurar briga com o Brasil. Ele tem outras demandas. Parte do desafio na América Latina será evitar uma década de estagnação por causa da pandemia. A crise da Venezuela também não atende ao interesse de ninguém. É uma tragédia que tem múltiplos efeitos, até mesmo para o Brasil. Biden deve conversar com outros governos na América Latina sobre como lidar com esse problema. Minha aposta é que o Brasil pode ser um parceiro-chave. Suspeito que Biden tentará encontrar uma política comum com o Brasil para lidar com a Venezuela. E Bolsonaro pode ser mais receptivo que outros governos brasileiros foram a uma ação conjunta, já que Lula parecia querer acomodar e aceitar os ataques à democracia na Venezuela. 

Como fica a competição entre EUA e China? As relações estão em queda livre. Não sabemos qual é o fundo do poço e isso é perigoso. Trump começou focando no déficit comercial. Entre 2017 e 2019, o déficit não mudou. As exportações americanas, este ano, caíram em relação a 2017. À medida que a covid-19 passou a ameaçar sua reeleição, Trump passou a culpar a China pelo vírus, como desculpa para justificar sua resposta à pandemia. Isso provocou reação da China em quase todos os campos: ideológico, político, tecnológico, segurança. Biden tem de reconhecer que a atitude geral nos EUA se tornou mais negativa em relação à China. Os empresários americanos se queixam de transferência de tecnologia, de respeito a direitos de propriedade intelectual e da falta de acesso a mercados. O tratamento a Hong Kong e à minoria uigur é um entrave. A ansiedade cresceu com a maior assertividade dos militares chineses no Mar do Sul da China. As tensões estão em alta em relação ao Tibete. Há uma preocupação com o fato de os chineses quererem dominar tecnologias do futuro e isso pode colocar em risco as sociedades livres. Há dificuldades, mas a questão é saber se os EUA ainda podem trabalhar com a China. Se alguém quiser conter pandemia, mudanças climáticas e proliferação nuclear tem de trabalhar com a China. Reconheço que Xi Jinping está reforçando o papel do Partido Comunista e do setor estatal com políticas mais agressivas. A questão é achar uma base para competir com a China e, ao mesmo tempo, encontrar áreas para cooperar. Biden deve trabalhar de forma mais próxima aos aliados, incluindo Japão, Coreia do Sul e Austrália, além dos europeus. E isso pode propiciar uma oportunidade para o Brasil, não para cortar relações com a China, mas para pressionar os chineses em questões de interesse comum, como comércio, tecnologia e direitos humanos.

É possível concorrer e cooperar com a China? O esforço para achar interesses comuns foi bem-sucedido no passado, em uma série de tópicos, como proliferação nuclear, taxas de câmbio para reduzir o superávit chinês nas transações correntes, cooperação com Banco Mundial e com FMI. É possível conter a China economicamente? Não. Outros países não aceitariam essa ideia. Você pode lidar com pandemia, questões climáticas e economia internacional isolando a China? Não. Então, do ponto de vista prático, você tem de encontrar áreas onde deter a China, como segurança; onde se desvincular da China, como 5G e tecnologia; e outras em que pode haver cooperação. Não é uma questão de preto ou branco. 

A pandemia aumentará o protecionismo no mundo? A pandemia levou algumas economias a adotar políticas autárquicas para proibir a exportação de equipamentos de saúde ou alimentos. Também levou algumas empresas a adaptar suas cadeias de suprimento para ter maior diversidade de fontes. Vai haver uma tensão entre a adaptação ao novo mundo da covid e a autarquia. A autarquia não será bem-sucedida, mas as forças protecionistas vão procurar tirar vantagem para levantar barreiras. Teremos também políticas mais cautelosas. Há medidas que serão desenhadas para proteger a saúde das sociedades, mas que podem facilmente se transformar em políticas protecionistas. Se os EUA dão um passo atrás na globalização, como fez Trump, outros países se sentem incentivados a tomar a mesma atitude – e isso mina a capacidade de recuperação da economia internacional. A equipe de Biden não gosta da política comercial de Trump, mas ele sofre alguns constrangimentos por causa das forças protecionistas em feudos eleitorais do Partido Democrata. Minha aposta é que ele não dará ênfase ao comércio, mas seus assessores vão procurar oportunidades para promover a liberalização em algumas áreas, como comércio digital, bens ambientais e suprimentos de saúde.

O sr. trabalhou com James Baker, um dos pilares do que era o establishment republicano. Como vê o futuro do partido? Trump sequestrou o partido. Em várias partes do mundo, as pessoas se sentem ameaçadas. Não é uma ameaça econômica. É mais uma ameaça à identidade e ao lugar que ocupam nas sociedades. Trump usou os ressentimentos das pessoas para construir uma coalizão política, que tirou o Partido Republicano do caminho para o qual estava indo, que era o de alcançar mais eleitores hispânicos, mulheres e moradores dos subúrbios. Ele foi bem-sucedido em construir uma base política forte, mas a demografia dessa coalizão não é boa no longo prazo. O eleitorado de homens brancos sem instrução superior deve encolher. Mas Trump foi eficaz em mobilizar a base e deixou outros republicanos com receio de enfrentá-lo. Eles encontraram, então, uma forma de se acomodar com Trump. Concentraram seus interesses em cortes de impostos e indicação de juízes conservadores para os tribunais. Após a derrota, é difícil dizer o que Trump fará. Muitos apostam que ele não vai se aposentar e ainda será uma força política. Acredito que haverá um debate entre os republicanos sobre o que significa ser um partido político de centro-direita conservadora. O Partido Republicano pode se transformar num partido populista nacionalista ou pode tentar recuperar políticas mais inclusivas. 

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