O tapeceiro do passado


Na História de Jacques Le Goff, os contornos dos tempos perdidos ganham sutileza, cor, verdade

Por Gilles Lapouge

Jacques Le Goff morreu em Paris aos 90 anos. Era o maior historiador francês e um dos últimos representantes da escola dos Annales, que desde os anos 1930 vem subvertendo na França e no mundo a leitura do passado dos homens. A primeira geração dos Annales foi a de Marc Bloch e Lucien Febvre; foi seguida por aquela do grande Fernand Braudel, que em1936 lecionou na recém-fundada Universidade de São Paulo; depois da guerra, sucedeu-lhe a terceira geração, com Georges Duby, Leroy-Ladurie e, principalmente, Jacques Le Goff.

Esses grandes intelectuais dotaram a pesquisa histórica de um novo suporte lógico. Em vez de se debruçarem apenas sobre as batalhas, as coroações ou as tragédias, dedicaram igual interesse à vida cotidiana, ao que chamavam de non-événementiel (não factual): a metamorfose das mentalidades, a transformação dos hábitos, as lentas evoluções da maneira de amar, de alimentar-se, de morrer; as descobertas das paisagens, os jogos da paixão, as relações dos homens com o próprio corpo, as festas, as flexões das palavras e da linguagem.

Eles urdiram uma nova tapeçaria do passado. As imagens dos tempos perdidos ganharam em sutileza, verdade e cor. Além dos períodos convulsionados da história tradicional, estudaram os períodos pesados, lentos, quase viscosos que moldam o caráter das sociedades de maneira bem mais profunda que as guerras e o cerimonial da política.

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Nessa ressurreição do passado, Jacques Le Goff ocupa uma posição eminente. Não apenas presta atenção a cores jamais percebidas como faz surgir do abismo da morte, do fundo do tempo, todo um continente, uma Idade Média desconhecida que a nossos olhos maravilhados se revela como os emergentes destroços de um navio magnífico, carcomido por moluscos e ferrugem e ainda resplandecente dos matizes das profundezas.

Ele busca e apreende essa Idade Média na consciência dos homens. Estuda seus sonhos e terrores, palavras e quimeras, corpos e alimentação. Ouve o gargalhar das bruxas, o sussurrar das monjas em oração no branco manto das igrejas e mosteiros que na Idade Média cobriam a cristandade.

A história de Le Goff nos seduz de outras maneiras. Seus escritos revelam o prazer, a fruição que ele experimenta ao devorar velhos manuscritos, antigos vestígios semiapagados, sacudindo a poeira que cobria, até sufocá-las, antigas representações que tínhamos daqueles tempos. "O pó se levanta ao poderoso vento do mar aberto", diz ele.

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Em suas retortas de alquimista, Le Goff descobre paisagens jamais suspeitadas. A Idade Média não é mais a "noite negra" que separava, na história tradicional, o fim do Império Romano da Renascença. Uma nova Idade Média se descortina, feita de sombras, evidentemente, mas também de uma luz sublime. Essa Idade Média inédita é a verdadeira matriz de nossa modernidade.

"É na Idade Média’, afirma Le Goff, "que se constitui o elemento fundamental de nosso cristianismo. É nela que vemos a formação do Estado e da ideia de soberania. E também o surgimento da língua francesa, o desenvolvimento urbano e a fundação da cidade moderna. É sempre na Idade Média que vemos crescer as universidades, fenômeno novo e europeu. Porque a Europa também nasce na Idade Média."

Quais de seus livros podemos citar? O mais célebre é A Invenção do Purgatório, que se situa no século 12. Le Goff não só acompanha as etapas do surgimento como explica o motivo pelo qual, nessa época, os homens repudiam a terrível divisão entre bem-aventurados e amaldiçoados, inferno e paraíso, e acham mais compassivo acrescentar a um maniqueísmo atroz os estágios intermediários do purgatório para se ter em conta a infinita variedade do Mal e do Bem.

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Jacques Le Goff tinha outra virtude. Homem da palavra, apresentava sua bela Idade Média no rádio. Seus programas fascinaram a França. Ele "representava" a história no rádio como a representava em seus cursos. Quando trabalhava numa grande biografia do rei São Luís, fascinou seus alunos descrevendo como o corpo (sagrado) do rei, que morreu de peste durante a oitava Cruzada, foi fervido pelos companheiros para que seus ossos pudessem ser levados de volta à França.

Era um apreciador dos bons vinhos e da boa cozinha, um brilhante interlocutor. Compartilhar um jantar com esse grande amante da vida era uma festa. Lembro-me de um deles. Ao ser servido um queijo de cabra na sobremesa, Le Goff começou a comparar a crosta do queijo, de cor cinzenta, bronze, azulada e ferrugem, recoberta de pequenas borbulhas, ao grão da pintura dos quadros de Giotto e Fra Angelico. Dali, divagou como num sonho e nos transportamos, como por um passe de mágica, da crosta do queijo de cabra para a cidadezinha de San Gimignano, depois para Florença e a dinastia dos Médicis, terminando com não sei que papa dos albores da Renascença. Tudo isso, todo esse teatro, estava como que escondido no humilde queijo de cabra. Le Goff terminou a representação dando uma dentada decisiva no queijo que, de repente, tornara-se algo sublime aos nossos olhos.

É emocionante e eloquente ver, neste momento em que o grande explorador e viajante do tempo já não está entre nós, o jornal Le Monde pedir ao grande escritor italiano Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa, seu testemunho sobre esse que foi seu amigo. Como se o historiador rigoroso que foi Le Goff só pudesse ser celebrado por um dos maiores romancistas europeus. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Jacques Le Goff morreu em Paris aos 90 anos. Era o maior historiador francês e um dos últimos representantes da escola dos Annales, que desde os anos 1930 vem subvertendo na França e no mundo a leitura do passado dos homens. A primeira geração dos Annales foi a de Marc Bloch e Lucien Febvre; foi seguida por aquela do grande Fernand Braudel, que em1936 lecionou na recém-fundada Universidade de São Paulo; depois da guerra, sucedeu-lhe a terceira geração, com Georges Duby, Leroy-Ladurie e, principalmente, Jacques Le Goff.

Esses grandes intelectuais dotaram a pesquisa histórica de um novo suporte lógico. Em vez de se debruçarem apenas sobre as batalhas, as coroações ou as tragédias, dedicaram igual interesse à vida cotidiana, ao que chamavam de non-événementiel (não factual): a metamorfose das mentalidades, a transformação dos hábitos, as lentas evoluções da maneira de amar, de alimentar-se, de morrer; as descobertas das paisagens, os jogos da paixão, as relações dos homens com o próprio corpo, as festas, as flexões das palavras e da linguagem.

Eles urdiram uma nova tapeçaria do passado. As imagens dos tempos perdidos ganharam em sutileza, verdade e cor. Além dos períodos convulsionados da história tradicional, estudaram os períodos pesados, lentos, quase viscosos que moldam o caráter das sociedades de maneira bem mais profunda que as guerras e o cerimonial da política.

Nessa ressurreição do passado, Jacques Le Goff ocupa uma posição eminente. Não apenas presta atenção a cores jamais percebidas como faz surgir do abismo da morte, do fundo do tempo, todo um continente, uma Idade Média desconhecida que a nossos olhos maravilhados se revela como os emergentes destroços de um navio magnífico, carcomido por moluscos e ferrugem e ainda resplandecente dos matizes das profundezas.

Ele busca e apreende essa Idade Média na consciência dos homens. Estuda seus sonhos e terrores, palavras e quimeras, corpos e alimentação. Ouve o gargalhar das bruxas, o sussurrar das monjas em oração no branco manto das igrejas e mosteiros que na Idade Média cobriam a cristandade.

A história de Le Goff nos seduz de outras maneiras. Seus escritos revelam o prazer, a fruição que ele experimenta ao devorar velhos manuscritos, antigos vestígios semiapagados, sacudindo a poeira que cobria, até sufocá-las, antigas representações que tínhamos daqueles tempos. "O pó se levanta ao poderoso vento do mar aberto", diz ele.

Em suas retortas de alquimista, Le Goff descobre paisagens jamais suspeitadas. A Idade Média não é mais a "noite negra" que separava, na história tradicional, o fim do Império Romano da Renascença. Uma nova Idade Média se descortina, feita de sombras, evidentemente, mas também de uma luz sublime. Essa Idade Média inédita é a verdadeira matriz de nossa modernidade.

"É na Idade Média’, afirma Le Goff, "que se constitui o elemento fundamental de nosso cristianismo. É nela que vemos a formação do Estado e da ideia de soberania. E também o surgimento da língua francesa, o desenvolvimento urbano e a fundação da cidade moderna. É sempre na Idade Média que vemos crescer as universidades, fenômeno novo e europeu. Porque a Europa também nasce na Idade Média."

Quais de seus livros podemos citar? O mais célebre é A Invenção do Purgatório, que se situa no século 12. Le Goff não só acompanha as etapas do surgimento como explica o motivo pelo qual, nessa época, os homens repudiam a terrível divisão entre bem-aventurados e amaldiçoados, inferno e paraíso, e acham mais compassivo acrescentar a um maniqueísmo atroz os estágios intermediários do purgatório para se ter em conta a infinita variedade do Mal e do Bem.

Jacques Le Goff tinha outra virtude. Homem da palavra, apresentava sua bela Idade Média no rádio. Seus programas fascinaram a França. Ele "representava" a história no rádio como a representava em seus cursos. Quando trabalhava numa grande biografia do rei São Luís, fascinou seus alunos descrevendo como o corpo (sagrado) do rei, que morreu de peste durante a oitava Cruzada, foi fervido pelos companheiros para que seus ossos pudessem ser levados de volta à França.

Era um apreciador dos bons vinhos e da boa cozinha, um brilhante interlocutor. Compartilhar um jantar com esse grande amante da vida era uma festa. Lembro-me de um deles. Ao ser servido um queijo de cabra na sobremesa, Le Goff começou a comparar a crosta do queijo, de cor cinzenta, bronze, azulada e ferrugem, recoberta de pequenas borbulhas, ao grão da pintura dos quadros de Giotto e Fra Angelico. Dali, divagou como num sonho e nos transportamos, como por um passe de mágica, da crosta do queijo de cabra para a cidadezinha de San Gimignano, depois para Florença e a dinastia dos Médicis, terminando com não sei que papa dos albores da Renascença. Tudo isso, todo esse teatro, estava como que escondido no humilde queijo de cabra. Le Goff terminou a representação dando uma dentada decisiva no queijo que, de repente, tornara-se algo sublime aos nossos olhos.

É emocionante e eloquente ver, neste momento em que o grande explorador e viajante do tempo já não está entre nós, o jornal Le Monde pedir ao grande escritor italiano Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa, seu testemunho sobre esse que foi seu amigo. Como se o historiador rigoroso que foi Le Goff só pudesse ser celebrado por um dos maiores romancistas europeus. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Jacques Le Goff morreu em Paris aos 90 anos. Era o maior historiador francês e um dos últimos representantes da escola dos Annales, que desde os anos 1930 vem subvertendo na França e no mundo a leitura do passado dos homens. A primeira geração dos Annales foi a de Marc Bloch e Lucien Febvre; foi seguida por aquela do grande Fernand Braudel, que em1936 lecionou na recém-fundada Universidade de São Paulo; depois da guerra, sucedeu-lhe a terceira geração, com Georges Duby, Leroy-Ladurie e, principalmente, Jacques Le Goff.

Esses grandes intelectuais dotaram a pesquisa histórica de um novo suporte lógico. Em vez de se debruçarem apenas sobre as batalhas, as coroações ou as tragédias, dedicaram igual interesse à vida cotidiana, ao que chamavam de non-événementiel (não factual): a metamorfose das mentalidades, a transformação dos hábitos, as lentas evoluções da maneira de amar, de alimentar-se, de morrer; as descobertas das paisagens, os jogos da paixão, as relações dos homens com o próprio corpo, as festas, as flexões das palavras e da linguagem.

Eles urdiram uma nova tapeçaria do passado. As imagens dos tempos perdidos ganharam em sutileza, verdade e cor. Além dos períodos convulsionados da história tradicional, estudaram os períodos pesados, lentos, quase viscosos que moldam o caráter das sociedades de maneira bem mais profunda que as guerras e o cerimonial da política.

Nessa ressurreição do passado, Jacques Le Goff ocupa uma posição eminente. Não apenas presta atenção a cores jamais percebidas como faz surgir do abismo da morte, do fundo do tempo, todo um continente, uma Idade Média desconhecida que a nossos olhos maravilhados se revela como os emergentes destroços de um navio magnífico, carcomido por moluscos e ferrugem e ainda resplandecente dos matizes das profundezas.

Ele busca e apreende essa Idade Média na consciência dos homens. Estuda seus sonhos e terrores, palavras e quimeras, corpos e alimentação. Ouve o gargalhar das bruxas, o sussurrar das monjas em oração no branco manto das igrejas e mosteiros que na Idade Média cobriam a cristandade.

A história de Le Goff nos seduz de outras maneiras. Seus escritos revelam o prazer, a fruição que ele experimenta ao devorar velhos manuscritos, antigos vestígios semiapagados, sacudindo a poeira que cobria, até sufocá-las, antigas representações que tínhamos daqueles tempos. "O pó se levanta ao poderoso vento do mar aberto", diz ele.

Em suas retortas de alquimista, Le Goff descobre paisagens jamais suspeitadas. A Idade Média não é mais a "noite negra" que separava, na história tradicional, o fim do Império Romano da Renascença. Uma nova Idade Média se descortina, feita de sombras, evidentemente, mas também de uma luz sublime. Essa Idade Média inédita é a verdadeira matriz de nossa modernidade.

"É na Idade Média’, afirma Le Goff, "que se constitui o elemento fundamental de nosso cristianismo. É nela que vemos a formação do Estado e da ideia de soberania. E também o surgimento da língua francesa, o desenvolvimento urbano e a fundação da cidade moderna. É sempre na Idade Média que vemos crescer as universidades, fenômeno novo e europeu. Porque a Europa também nasce na Idade Média."

Quais de seus livros podemos citar? O mais célebre é A Invenção do Purgatório, que se situa no século 12. Le Goff não só acompanha as etapas do surgimento como explica o motivo pelo qual, nessa época, os homens repudiam a terrível divisão entre bem-aventurados e amaldiçoados, inferno e paraíso, e acham mais compassivo acrescentar a um maniqueísmo atroz os estágios intermediários do purgatório para se ter em conta a infinita variedade do Mal e do Bem.

Jacques Le Goff tinha outra virtude. Homem da palavra, apresentava sua bela Idade Média no rádio. Seus programas fascinaram a França. Ele "representava" a história no rádio como a representava em seus cursos. Quando trabalhava numa grande biografia do rei São Luís, fascinou seus alunos descrevendo como o corpo (sagrado) do rei, que morreu de peste durante a oitava Cruzada, foi fervido pelos companheiros para que seus ossos pudessem ser levados de volta à França.

Era um apreciador dos bons vinhos e da boa cozinha, um brilhante interlocutor. Compartilhar um jantar com esse grande amante da vida era uma festa. Lembro-me de um deles. Ao ser servido um queijo de cabra na sobremesa, Le Goff começou a comparar a crosta do queijo, de cor cinzenta, bronze, azulada e ferrugem, recoberta de pequenas borbulhas, ao grão da pintura dos quadros de Giotto e Fra Angelico. Dali, divagou como num sonho e nos transportamos, como por um passe de mágica, da crosta do queijo de cabra para a cidadezinha de San Gimignano, depois para Florença e a dinastia dos Médicis, terminando com não sei que papa dos albores da Renascença. Tudo isso, todo esse teatro, estava como que escondido no humilde queijo de cabra. Le Goff terminou a representação dando uma dentada decisiva no queijo que, de repente, tornara-se algo sublime aos nossos olhos.

É emocionante e eloquente ver, neste momento em que o grande explorador e viajante do tempo já não está entre nós, o jornal Le Monde pedir ao grande escritor italiano Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa, seu testemunho sobre esse que foi seu amigo. Como se o historiador rigoroso que foi Le Goff só pudesse ser celebrado por um dos maiores romancistas europeus. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Jacques Le Goff morreu em Paris aos 90 anos. Era o maior historiador francês e um dos últimos representantes da escola dos Annales, que desde os anos 1930 vem subvertendo na França e no mundo a leitura do passado dos homens. A primeira geração dos Annales foi a de Marc Bloch e Lucien Febvre; foi seguida por aquela do grande Fernand Braudel, que em1936 lecionou na recém-fundada Universidade de São Paulo; depois da guerra, sucedeu-lhe a terceira geração, com Georges Duby, Leroy-Ladurie e, principalmente, Jacques Le Goff.

Esses grandes intelectuais dotaram a pesquisa histórica de um novo suporte lógico. Em vez de se debruçarem apenas sobre as batalhas, as coroações ou as tragédias, dedicaram igual interesse à vida cotidiana, ao que chamavam de non-événementiel (não factual): a metamorfose das mentalidades, a transformação dos hábitos, as lentas evoluções da maneira de amar, de alimentar-se, de morrer; as descobertas das paisagens, os jogos da paixão, as relações dos homens com o próprio corpo, as festas, as flexões das palavras e da linguagem.

Eles urdiram uma nova tapeçaria do passado. As imagens dos tempos perdidos ganharam em sutileza, verdade e cor. Além dos períodos convulsionados da história tradicional, estudaram os períodos pesados, lentos, quase viscosos que moldam o caráter das sociedades de maneira bem mais profunda que as guerras e o cerimonial da política.

Nessa ressurreição do passado, Jacques Le Goff ocupa uma posição eminente. Não apenas presta atenção a cores jamais percebidas como faz surgir do abismo da morte, do fundo do tempo, todo um continente, uma Idade Média desconhecida que a nossos olhos maravilhados se revela como os emergentes destroços de um navio magnífico, carcomido por moluscos e ferrugem e ainda resplandecente dos matizes das profundezas.

Ele busca e apreende essa Idade Média na consciência dos homens. Estuda seus sonhos e terrores, palavras e quimeras, corpos e alimentação. Ouve o gargalhar das bruxas, o sussurrar das monjas em oração no branco manto das igrejas e mosteiros que na Idade Média cobriam a cristandade.

A história de Le Goff nos seduz de outras maneiras. Seus escritos revelam o prazer, a fruição que ele experimenta ao devorar velhos manuscritos, antigos vestígios semiapagados, sacudindo a poeira que cobria, até sufocá-las, antigas representações que tínhamos daqueles tempos. "O pó se levanta ao poderoso vento do mar aberto", diz ele.

Em suas retortas de alquimista, Le Goff descobre paisagens jamais suspeitadas. A Idade Média não é mais a "noite negra" que separava, na história tradicional, o fim do Império Romano da Renascença. Uma nova Idade Média se descortina, feita de sombras, evidentemente, mas também de uma luz sublime. Essa Idade Média inédita é a verdadeira matriz de nossa modernidade.

"É na Idade Média’, afirma Le Goff, "que se constitui o elemento fundamental de nosso cristianismo. É nela que vemos a formação do Estado e da ideia de soberania. E também o surgimento da língua francesa, o desenvolvimento urbano e a fundação da cidade moderna. É sempre na Idade Média que vemos crescer as universidades, fenômeno novo e europeu. Porque a Europa também nasce na Idade Média."

Quais de seus livros podemos citar? O mais célebre é A Invenção do Purgatório, que se situa no século 12. Le Goff não só acompanha as etapas do surgimento como explica o motivo pelo qual, nessa época, os homens repudiam a terrível divisão entre bem-aventurados e amaldiçoados, inferno e paraíso, e acham mais compassivo acrescentar a um maniqueísmo atroz os estágios intermediários do purgatório para se ter em conta a infinita variedade do Mal e do Bem.

Jacques Le Goff tinha outra virtude. Homem da palavra, apresentava sua bela Idade Média no rádio. Seus programas fascinaram a França. Ele "representava" a história no rádio como a representava em seus cursos. Quando trabalhava numa grande biografia do rei São Luís, fascinou seus alunos descrevendo como o corpo (sagrado) do rei, que morreu de peste durante a oitava Cruzada, foi fervido pelos companheiros para que seus ossos pudessem ser levados de volta à França.

Era um apreciador dos bons vinhos e da boa cozinha, um brilhante interlocutor. Compartilhar um jantar com esse grande amante da vida era uma festa. Lembro-me de um deles. Ao ser servido um queijo de cabra na sobremesa, Le Goff começou a comparar a crosta do queijo, de cor cinzenta, bronze, azulada e ferrugem, recoberta de pequenas borbulhas, ao grão da pintura dos quadros de Giotto e Fra Angelico. Dali, divagou como num sonho e nos transportamos, como por um passe de mágica, da crosta do queijo de cabra para a cidadezinha de San Gimignano, depois para Florença e a dinastia dos Médicis, terminando com não sei que papa dos albores da Renascença. Tudo isso, todo esse teatro, estava como que escondido no humilde queijo de cabra. Le Goff terminou a representação dando uma dentada decisiva no queijo que, de repente, tornara-se algo sublime aos nossos olhos.

É emocionante e eloquente ver, neste momento em que o grande explorador e viajante do tempo já não está entre nós, o jornal Le Monde pedir ao grande escritor italiano Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa, seu testemunho sobre esse que foi seu amigo. Como se o historiador rigoroso que foi Le Goff só pudesse ser celebrado por um dos maiores romancistas europeus. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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