A crise na Síria não pode ser resumida a um regime massacrando manifestantes que lutam pela liberdade após quatro décadas de reinado da família Assad. Apesar de centenas de defensores da democracia terem sido vítimas da repressão - milhares enfurecidos exigiram ontem o fim do governo no funeral de um líder curdo pró-democracia morto na sexta-feira -, o cenário que mais se encaixa ao que acontece nessa nação árabe é o do embrião de uma guerra civil.
Em cidades como Duma, no subúrbio de Damasco, e Homs, a terceira maior do país, Exército e milícias pró-governo enfrentam diariamente grupos armados com apoio do exterior. Na vanguarda dos levantes que eclodiram em março, Hama e Deraa estão sob rígido controle militar do governo desde as operações contra facções armadas e manifestantes civis da oposição em agosto.
Na sexta-feira, a repressão matou pelo menos 16 manifestantes após as orações. Um deles era Mashaal Tammo, dirigente curdo cujo funeral mobilizou ontem 50 mil pessoas em Qamishli e Amuda, nordeste do país. Houve novo confronto com a polícia e pelo menos cinco manifestantes morreram durante o cortejo.
O temor é de que o número crescente de mortos aumente a adesão popular à oposição e transforme o território sírio em um novo Iraque ou no Líbano dos anos 1980, com disputas sectárias. "As pessoas estão com medo do que poderá acontecer. Poucos têm coragem de dizer isso para você, que é estrangeiro. Mas todos os sírios sentem medo do que está por vir", disse um sunita de uma família tradicional de Damasco, dono de uma loja de antiguidades na parte antiga da cidade.
"O regime ainda está intacto e Assad não corre risco nos próximos seis meses. Mas um conflito civil de baixa intensidade prosseguirá de forma crônica", diz Ayham Kamel, especialista em Síria da consultoria de risco político Eurasia.
Os opositores armados, antes do fracasso de uma resolução condenando o regime sírio no Conselho de Segurança, mantinham a esperança de uma ação internacional nos moldes da Líbia para derrubar o regime. Segundo a ONU, 2,9 mil civis foram mortos pelo governo, que rejeita esse número e argumenta que grupos armados mataram 700 membros das forças de segurança.
Os mais radicais a favor de Assad são cristãos, muçulmanos alauitas e drusos. Seculares da maioria muçulmana sunita defendem o governo, com reticências. Os opositores dividem-se em diversas facções, incluindo sunitas mais conservadores do interior, uma elite intelectual nas maiores cidades e jovens inspirados pelos protestos pró-democracia da Praça Tahrir, no Cairo, além da minoria curda.
Em áreas cristãs, como o bairro de Bab Touma, na capital síria, os cartazes de Assad estão pendurados em todas paredes e falar mal do líder sírio é tabu. Nos meios intelectuais, ocorre o inverso. Não se pode defender o governante da Síria. No mercado Hamidiyeh, uma área comercial da era otomana com os tradicionais comerciantes sunitas de Damasco, o gigantesco outdoor com Assad na entrada foi retirado. O líder tampouco aparece em fotos nas lojas e mercados.