É prêmio Nobel de Literatura. Escreve quinzenalmente.

Opinião|A hora zero catalã


Como uma das regiões mais cultas da Espanha adotou o nacionalismo?

Por Mario Vargas Llosa

Haverá hoje um plebiscito na Catalunha? Espero ardentemente que, em um ato de sensatez, o governo autônomo tenha cancelado a convocação. Ao mesmo tempo, conheço de sobra os elevados níveis de teimosia e irrealidade que acompanham todo nacionalismo. De forma que é impossível, apesar de tudo – e esse “tudo” é muitíssimo – o governo catalão se empenhar em incentivar seus partidários a desobedecer a lei e votar. 

A Estelada, a bandeira separatista da Catalunha Foto: REUTERS/Enrique Calvo

Se acontecer isso, o chamado plebiscito será uma caricatura de consulta. Inválida, sem o censo dos eleitores, nem urnas autorizadas, nem representantes, nem registros eleitorais, com uma porcentagem mínima de participantes, todos independentistas. Ou seja, o monólogo patético de uma minoria cega e surda à racionalidade, pois, segundo as pesquisas, pelo menos dois terços dos catalães admitem que o referendo carece de validade legal. 

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Servirá apenas para alimentar a vitimização, ingrediente essencial de toda ideologia nacionalista e para acusar o governo espanhol de ter violentado a democracia impedindo o povo catalão de exercer o direito de decidir seu destino mediante a mais pacífica e civilizada maneira democrática, que é votando.

Escrevo este artigo muito distante da Espanha, e desconheço os últimos episódios desse problema que manteve intranquilo o país nas últimas semanas. Mas talvez a distância seja boa para indagarmos com serenidade o que levou a Catalunha, uma das regiões mais cultas e cosmopolitas da Espanha, a adotar em seu seio, de forma tão disseminada, essa antiquada, provinciana e extravagante ideologia que é o nacionalismo. 

Como é possível que milhares de jovens universitários e estudantes de uma sociedade moderna, que faz parte do mais generoso e idealista projeto democrático de nosso tempo – a construção da Europa, concebida exatamente como uma cidadela contra os nacionalismos que banharam a história de sangue e de cadáveres – tenham agora como ilusão política querer encastelar-se em uma sociedade fechada e obsoleta, que retrocederia e empobreceria brutalmente a Catalunha, uma vez que a região sairia do euro e da União Europeia e teria um grande e difícil trâmite para retornar a ambos?

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A resposta não pode ser a defendida pelos nacionalistas de modo aguerrido – de que isso se deve ao fato de a “Espanha roubar da Catalunha” –, pois desde a queda da ditadura de Franco e a transição para a democracia essa região obteve progressivamente a maior atribuição de competências econômicas, culturais e políticas de toda sua história.

Poderia não ser suficiente, evidentemente, e talvez tenha havido da parte dos governos centrais negligência em atender às exigências da Catalunha; mas isso tem uma saída perfeitamente negociável dentro da legalidade e não pode justificar a pretensão de cortar de maneira unilateral 500 anos de história comum e romper com o restante de uma comunidade que está presente e atrelada de mil maneiras na sociedade e na história catalãs. 

Estudantes usam máscaras do Piu Piu durante manifestação pela realização de plebiscito Foto: Josep Lago / AFP
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Herança. Nada pode estar mais distante do provincianismo racista e anacrônico do nacionalismo que a grande tradição cultural bilíngue da Catalunha, com seus artistas, músicos, arquitetos, poetas, romancistas, cantores, que estiveram quase sempre na vanguarda, experimentando novas formas e técnicas, abrindo-se ao restante do mundo, assimilando o novo com fruição e propagando-o pelo restante da Europa.

Como se encaixam um Gaudí, um Dalí ou um Tàpies com um Puigdemont e um Junqueras? E um Pla ou Foix ou Marsé ou Serrat ou Cercas com Carme Forcadell ou Ada Colau? Há um abismo tal entre o que uns e outros representam, que é difícil de imaginar alguma linha de continuidade cultural ou ideológica que os una. 

A explicação está certamente em um trabalho de doutrinamento sistemático, que começou nas escolas e projetou-se para todo o conjunto da Catalunha, por meio dos grandes meios de comunicação. Orquestrado e financiado pelo governo catalão desde os anos de Jordi Pujol e seus seguidores, foi tocando fundo nas novas gerações até impregná-las com a ficção perniciosa que representa todo nacionalismo. 

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Catalães se preparam para plebiscito de independência

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Catalães se preparam para plebiscito de independência

Foto: AP Photo/Manu Fernandez
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Catalães se preparam para plebiscito de independência

Foto: AFP PHOTO / Josep LAGO
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Foto: AFP PHOTO / Josep LAGO
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Catalães se preparam para plebiscito de independência

Foto: REUTERS/Jon Nazca
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Catalães se preparam para plebiscito de independência

Foto: AFP PHOTO / Josep LAGO
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Catalães se preparam para plebiscito de independência

Foto: AFP PHOTO / Josep LAGO
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Foto: REUTERS/Jon Nazca
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Catalães se preparam para plebiscito de independência

Foto: REUTERS/Jon Nazca

Uma doutrinação que foi mal neutralizada pela inércia ou ingênua crença da parte do governo e da elite política e intelectual do restante da Espanha – de que aquela manipulação mentirosa não seria aceita, a sociedade catalã saberia resistir a ela e o problema se resolveria por si mesmo.

Não foi assim e essa negligência irresponsável está hoje por trás do monstro que cresceu e levou uma boa parte da Catalunha a uma deriva separatista que, mesmo que não triunfe – e eu creio firmemente que não triunfará – pode arrastar a Espanha a uma crise traumática. Entre outras consequências nefastas, ela poderia paralisar o processo de recuperação econômica que tantos sacrifícios já custou aos espanhóis. 

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Um setor minoritário da extrema esquerda adotou como causa comum a independência catalã e outro, mais numeroso e mais sensato, exige diálogo. Não há dúvida de que este último parece indispensável. O problema é que, para que um diálogo seja possível e frutífero, é preciso que haja algum denominador comum entre os participantes dele.

No passado, foi lamentável que as negociações não ocorreram. Mas agora, embora não impossível, é muito mais difícil dialogar com os que não aceitam “a secessão, sim ou sim” e têm em sua intransigência o apoio de um setor considerável da Catalunha.

Pontes. Antes é preciso estender pontes, reconstruir as que foram partidas. E esse é um trabalho essencialmente cultural. Convencer os menos fanatizados e obstinados de que o nacionalismo – todo nacionalismo – sempre foi uma epidemia catastrófica para os povos.

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Ele só produziu violência, falta de comunicação, exclusão e racismo e, sobretudo nessa época de globalização universal que está pouco a pouco desfazendo as fronteiras, é suicídio querer resistir a esse processo enormemente benéfico para a humanidade. É preciso explicar que a Espanha precisa da Catalunha tanto quanto a Catalunha precisa da Espanha para integrar-se melhor na grande aventura da Europa e perseverar – aperfeiçoando-a sem trégua – nesta democracia que trouxe para este país condições de vida que são as mais livres e prósperas de sua história.

A independência da Catalunha seria trágica para a Espanha e sobretudo para a Catalunha, que cairia nas mãos de uma ideologia retrógrada e bárbara e dos demagogos que a conduziriam à sua ruína. Tudo o que há de justo nas exigências de soberania pode-se alcançar dentro da unidade, mediante negociações, sem romper a legalidade que nesta última metade de século foi fazendo da Espanha um país livre e democrático. 

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A polícia isolou mais da metade dos 2.300 postos de votação na Catalunha, onde as autoridades separatistas pretendem realizar no domingo um referendo de independência desautorizado pela Justiça espanhola

Não nos esqueçamos de que, durante a transição, o mundo inteiro olhava a Espanha como um exemplo a ser seguido, por ter transitado tão rapidamente e de forma tão prudente e pacífica em direção à democracia, com a atitude tolerante e solidária de todos os partidos políticos e o beneplácito da imensa maioria do país.

Não é tarde para retomar aquele ponto de partida solidário pelo qual foram criados tantos bens para o conjunto dos espanhóis, começando pelo mais importante, que é a liberdade. Por todos os meios racionais possíveis, é preciso persuadir os catalães de que o nacionalismo é um dos piores inimigos da liberdade e este período nefasto deve ficar para trás, como um pesadelo que se desvanece ao despertar. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

* É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA © 2016 EDICIONES EL PAÍS, SL. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA

Haverá hoje um plebiscito na Catalunha? Espero ardentemente que, em um ato de sensatez, o governo autônomo tenha cancelado a convocação. Ao mesmo tempo, conheço de sobra os elevados níveis de teimosia e irrealidade que acompanham todo nacionalismo. De forma que é impossível, apesar de tudo – e esse “tudo” é muitíssimo – o governo catalão se empenhar em incentivar seus partidários a desobedecer a lei e votar. 

A Estelada, a bandeira separatista da Catalunha Foto: REUTERS/Enrique Calvo

Se acontecer isso, o chamado plebiscito será uma caricatura de consulta. Inválida, sem o censo dos eleitores, nem urnas autorizadas, nem representantes, nem registros eleitorais, com uma porcentagem mínima de participantes, todos independentistas. Ou seja, o monólogo patético de uma minoria cega e surda à racionalidade, pois, segundo as pesquisas, pelo menos dois terços dos catalães admitem que o referendo carece de validade legal. 

Servirá apenas para alimentar a vitimização, ingrediente essencial de toda ideologia nacionalista e para acusar o governo espanhol de ter violentado a democracia impedindo o povo catalão de exercer o direito de decidir seu destino mediante a mais pacífica e civilizada maneira democrática, que é votando.

Escrevo este artigo muito distante da Espanha, e desconheço os últimos episódios desse problema que manteve intranquilo o país nas últimas semanas. Mas talvez a distância seja boa para indagarmos com serenidade o que levou a Catalunha, uma das regiões mais cultas e cosmopolitas da Espanha, a adotar em seu seio, de forma tão disseminada, essa antiquada, provinciana e extravagante ideologia que é o nacionalismo. 

Como é possível que milhares de jovens universitários e estudantes de uma sociedade moderna, que faz parte do mais generoso e idealista projeto democrático de nosso tempo – a construção da Europa, concebida exatamente como uma cidadela contra os nacionalismos que banharam a história de sangue e de cadáveres – tenham agora como ilusão política querer encastelar-se em uma sociedade fechada e obsoleta, que retrocederia e empobreceria brutalmente a Catalunha, uma vez que a região sairia do euro e da União Europeia e teria um grande e difícil trâmite para retornar a ambos?

A resposta não pode ser a defendida pelos nacionalistas de modo aguerrido – de que isso se deve ao fato de a “Espanha roubar da Catalunha” –, pois desde a queda da ditadura de Franco e a transição para a democracia essa região obteve progressivamente a maior atribuição de competências econômicas, culturais e políticas de toda sua história.

Poderia não ser suficiente, evidentemente, e talvez tenha havido da parte dos governos centrais negligência em atender às exigências da Catalunha; mas isso tem uma saída perfeitamente negociável dentro da legalidade e não pode justificar a pretensão de cortar de maneira unilateral 500 anos de história comum e romper com o restante de uma comunidade que está presente e atrelada de mil maneiras na sociedade e na história catalãs. 

Estudantes usam máscaras do Piu Piu durante manifestação pela realização de plebiscito Foto: Josep Lago / AFP

Herança. Nada pode estar mais distante do provincianismo racista e anacrônico do nacionalismo que a grande tradição cultural bilíngue da Catalunha, com seus artistas, músicos, arquitetos, poetas, romancistas, cantores, que estiveram quase sempre na vanguarda, experimentando novas formas e técnicas, abrindo-se ao restante do mundo, assimilando o novo com fruição e propagando-o pelo restante da Europa.

Como se encaixam um Gaudí, um Dalí ou um Tàpies com um Puigdemont e um Junqueras? E um Pla ou Foix ou Marsé ou Serrat ou Cercas com Carme Forcadell ou Ada Colau? Há um abismo tal entre o que uns e outros representam, que é difícil de imaginar alguma linha de continuidade cultural ou ideológica que os una. 

A explicação está certamente em um trabalho de doutrinamento sistemático, que começou nas escolas e projetou-se para todo o conjunto da Catalunha, por meio dos grandes meios de comunicação. Orquestrado e financiado pelo governo catalão desde os anos de Jordi Pujol e seus seguidores, foi tocando fundo nas novas gerações até impregná-las com a ficção perniciosa que representa todo nacionalismo. 

Catalães se preparam para plebiscito de independência

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Catalães se preparam para plebiscito de independência

Foto: AP Photo/Manu Fernandez
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Uma doutrinação que foi mal neutralizada pela inércia ou ingênua crença da parte do governo e da elite política e intelectual do restante da Espanha – de que aquela manipulação mentirosa não seria aceita, a sociedade catalã saberia resistir a ela e o problema se resolveria por si mesmo.

Não foi assim e essa negligência irresponsável está hoje por trás do monstro que cresceu e levou uma boa parte da Catalunha a uma deriva separatista que, mesmo que não triunfe – e eu creio firmemente que não triunfará – pode arrastar a Espanha a uma crise traumática. Entre outras consequências nefastas, ela poderia paralisar o processo de recuperação econômica que tantos sacrifícios já custou aos espanhóis. 

Um setor minoritário da extrema esquerda adotou como causa comum a independência catalã e outro, mais numeroso e mais sensato, exige diálogo. Não há dúvida de que este último parece indispensável. O problema é que, para que um diálogo seja possível e frutífero, é preciso que haja algum denominador comum entre os participantes dele.

No passado, foi lamentável que as negociações não ocorreram. Mas agora, embora não impossível, é muito mais difícil dialogar com os que não aceitam “a secessão, sim ou sim” e têm em sua intransigência o apoio de um setor considerável da Catalunha.

Pontes. Antes é preciso estender pontes, reconstruir as que foram partidas. E esse é um trabalho essencialmente cultural. Convencer os menos fanatizados e obstinados de que o nacionalismo – todo nacionalismo – sempre foi uma epidemia catastrófica para os povos.

Ele só produziu violência, falta de comunicação, exclusão e racismo e, sobretudo nessa época de globalização universal que está pouco a pouco desfazendo as fronteiras, é suicídio querer resistir a esse processo enormemente benéfico para a humanidade. É preciso explicar que a Espanha precisa da Catalunha tanto quanto a Catalunha precisa da Espanha para integrar-se melhor na grande aventura da Europa e perseverar – aperfeiçoando-a sem trégua – nesta democracia que trouxe para este país condições de vida que são as mais livres e prósperas de sua história.

A independência da Catalunha seria trágica para a Espanha e sobretudo para a Catalunha, que cairia nas mãos de uma ideologia retrógrada e bárbara e dos demagogos que a conduziriam à sua ruína. Tudo o que há de justo nas exigências de soberania pode-se alcançar dentro da unidade, mediante negociações, sem romper a legalidade que nesta última metade de século foi fazendo da Espanha um país livre e democrático. 

Seu navegador não suporta esse video.

A polícia isolou mais da metade dos 2.300 postos de votação na Catalunha, onde as autoridades separatistas pretendem realizar no domingo um referendo de independência desautorizado pela Justiça espanhola

Não nos esqueçamos de que, durante a transição, o mundo inteiro olhava a Espanha como um exemplo a ser seguido, por ter transitado tão rapidamente e de forma tão prudente e pacífica em direção à democracia, com a atitude tolerante e solidária de todos os partidos políticos e o beneplácito da imensa maioria do país.

Não é tarde para retomar aquele ponto de partida solidário pelo qual foram criados tantos bens para o conjunto dos espanhóis, começando pelo mais importante, que é a liberdade. Por todos os meios racionais possíveis, é preciso persuadir os catalães de que o nacionalismo é um dos piores inimigos da liberdade e este período nefasto deve ficar para trás, como um pesadelo que se desvanece ao despertar. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

* É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA © 2016 EDICIONES EL PAÍS, SL. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA

Haverá hoje um plebiscito na Catalunha? Espero ardentemente que, em um ato de sensatez, o governo autônomo tenha cancelado a convocação. Ao mesmo tempo, conheço de sobra os elevados níveis de teimosia e irrealidade que acompanham todo nacionalismo. De forma que é impossível, apesar de tudo – e esse “tudo” é muitíssimo – o governo catalão se empenhar em incentivar seus partidários a desobedecer a lei e votar. 

A Estelada, a bandeira separatista da Catalunha Foto: REUTERS/Enrique Calvo

Se acontecer isso, o chamado plebiscito será uma caricatura de consulta. Inválida, sem o censo dos eleitores, nem urnas autorizadas, nem representantes, nem registros eleitorais, com uma porcentagem mínima de participantes, todos independentistas. Ou seja, o monólogo patético de uma minoria cega e surda à racionalidade, pois, segundo as pesquisas, pelo menos dois terços dos catalães admitem que o referendo carece de validade legal. 

Servirá apenas para alimentar a vitimização, ingrediente essencial de toda ideologia nacionalista e para acusar o governo espanhol de ter violentado a democracia impedindo o povo catalão de exercer o direito de decidir seu destino mediante a mais pacífica e civilizada maneira democrática, que é votando.

Escrevo este artigo muito distante da Espanha, e desconheço os últimos episódios desse problema que manteve intranquilo o país nas últimas semanas. Mas talvez a distância seja boa para indagarmos com serenidade o que levou a Catalunha, uma das regiões mais cultas e cosmopolitas da Espanha, a adotar em seu seio, de forma tão disseminada, essa antiquada, provinciana e extravagante ideologia que é o nacionalismo. 

Como é possível que milhares de jovens universitários e estudantes de uma sociedade moderna, que faz parte do mais generoso e idealista projeto democrático de nosso tempo – a construção da Europa, concebida exatamente como uma cidadela contra os nacionalismos que banharam a história de sangue e de cadáveres – tenham agora como ilusão política querer encastelar-se em uma sociedade fechada e obsoleta, que retrocederia e empobreceria brutalmente a Catalunha, uma vez que a região sairia do euro e da União Europeia e teria um grande e difícil trâmite para retornar a ambos?

A resposta não pode ser a defendida pelos nacionalistas de modo aguerrido – de que isso se deve ao fato de a “Espanha roubar da Catalunha” –, pois desde a queda da ditadura de Franco e a transição para a democracia essa região obteve progressivamente a maior atribuição de competências econômicas, culturais e políticas de toda sua história.

Poderia não ser suficiente, evidentemente, e talvez tenha havido da parte dos governos centrais negligência em atender às exigências da Catalunha; mas isso tem uma saída perfeitamente negociável dentro da legalidade e não pode justificar a pretensão de cortar de maneira unilateral 500 anos de história comum e romper com o restante de uma comunidade que está presente e atrelada de mil maneiras na sociedade e na história catalãs. 

Estudantes usam máscaras do Piu Piu durante manifestação pela realização de plebiscito Foto: Josep Lago / AFP

Herança. Nada pode estar mais distante do provincianismo racista e anacrônico do nacionalismo que a grande tradição cultural bilíngue da Catalunha, com seus artistas, músicos, arquitetos, poetas, romancistas, cantores, que estiveram quase sempre na vanguarda, experimentando novas formas e técnicas, abrindo-se ao restante do mundo, assimilando o novo com fruição e propagando-o pelo restante da Europa.

Como se encaixam um Gaudí, um Dalí ou um Tàpies com um Puigdemont e um Junqueras? E um Pla ou Foix ou Marsé ou Serrat ou Cercas com Carme Forcadell ou Ada Colau? Há um abismo tal entre o que uns e outros representam, que é difícil de imaginar alguma linha de continuidade cultural ou ideológica que os una. 

A explicação está certamente em um trabalho de doutrinamento sistemático, que começou nas escolas e projetou-se para todo o conjunto da Catalunha, por meio dos grandes meios de comunicação. Orquestrado e financiado pelo governo catalão desde os anos de Jordi Pujol e seus seguidores, foi tocando fundo nas novas gerações até impregná-las com a ficção perniciosa que representa todo nacionalismo. 

Catalães se preparam para plebiscito de independência

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Catalães se preparam para plebiscito de independência

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Uma doutrinação que foi mal neutralizada pela inércia ou ingênua crença da parte do governo e da elite política e intelectual do restante da Espanha – de que aquela manipulação mentirosa não seria aceita, a sociedade catalã saberia resistir a ela e o problema se resolveria por si mesmo.

Não foi assim e essa negligência irresponsável está hoje por trás do monstro que cresceu e levou uma boa parte da Catalunha a uma deriva separatista que, mesmo que não triunfe – e eu creio firmemente que não triunfará – pode arrastar a Espanha a uma crise traumática. Entre outras consequências nefastas, ela poderia paralisar o processo de recuperação econômica que tantos sacrifícios já custou aos espanhóis. 

Um setor minoritário da extrema esquerda adotou como causa comum a independência catalã e outro, mais numeroso e mais sensato, exige diálogo. Não há dúvida de que este último parece indispensável. O problema é que, para que um diálogo seja possível e frutífero, é preciso que haja algum denominador comum entre os participantes dele.

No passado, foi lamentável que as negociações não ocorreram. Mas agora, embora não impossível, é muito mais difícil dialogar com os que não aceitam “a secessão, sim ou sim” e têm em sua intransigência o apoio de um setor considerável da Catalunha.

Pontes. Antes é preciso estender pontes, reconstruir as que foram partidas. E esse é um trabalho essencialmente cultural. Convencer os menos fanatizados e obstinados de que o nacionalismo – todo nacionalismo – sempre foi uma epidemia catastrófica para os povos.

Ele só produziu violência, falta de comunicação, exclusão e racismo e, sobretudo nessa época de globalização universal que está pouco a pouco desfazendo as fronteiras, é suicídio querer resistir a esse processo enormemente benéfico para a humanidade. É preciso explicar que a Espanha precisa da Catalunha tanto quanto a Catalunha precisa da Espanha para integrar-se melhor na grande aventura da Europa e perseverar – aperfeiçoando-a sem trégua – nesta democracia que trouxe para este país condições de vida que são as mais livres e prósperas de sua história.

A independência da Catalunha seria trágica para a Espanha e sobretudo para a Catalunha, que cairia nas mãos de uma ideologia retrógrada e bárbara e dos demagogos que a conduziriam à sua ruína. Tudo o que há de justo nas exigências de soberania pode-se alcançar dentro da unidade, mediante negociações, sem romper a legalidade que nesta última metade de século foi fazendo da Espanha um país livre e democrático. 

Seu navegador não suporta esse video.

A polícia isolou mais da metade dos 2.300 postos de votação na Catalunha, onde as autoridades separatistas pretendem realizar no domingo um referendo de independência desautorizado pela Justiça espanhola

Não nos esqueçamos de que, durante a transição, o mundo inteiro olhava a Espanha como um exemplo a ser seguido, por ter transitado tão rapidamente e de forma tão prudente e pacífica em direção à democracia, com a atitude tolerante e solidária de todos os partidos políticos e o beneplácito da imensa maioria do país.

Não é tarde para retomar aquele ponto de partida solidário pelo qual foram criados tantos bens para o conjunto dos espanhóis, começando pelo mais importante, que é a liberdade. Por todos os meios racionais possíveis, é preciso persuadir os catalães de que o nacionalismo é um dos piores inimigos da liberdade e este período nefasto deve ficar para trás, como um pesadelo que se desvanece ao despertar. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

* É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA © 2016 EDICIONES EL PAÍS, SL. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA

Haverá hoje um plebiscito na Catalunha? Espero ardentemente que, em um ato de sensatez, o governo autônomo tenha cancelado a convocação. Ao mesmo tempo, conheço de sobra os elevados níveis de teimosia e irrealidade que acompanham todo nacionalismo. De forma que é impossível, apesar de tudo – e esse “tudo” é muitíssimo – o governo catalão se empenhar em incentivar seus partidários a desobedecer a lei e votar. 

A Estelada, a bandeira separatista da Catalunha Foto: REUTERS/Enrique Calvo

Se acontecer isso, o chamado plebiscito será uma caricatura de consulta. Inválida, sem o censo dos eleitores, nem urnas autorizadas, nem representantes, nem registros eleitorais, com uma porcentagem mínima de participantes, todos independentistas. Ou seja, o monólogo patético de uma minoria cega e surda à racionalidade, pois, segundo as pesquisas, pelo menos dois terços dos catalães admitem que o referendo carece de validade legal. 

Servirá apenas para alimentar a vitimização, ingrediente essencial de toda ideologia nacionalista e para acusar o governo espanhol de ter violentado a democracia impedindo o povo catalão de exercer o direito de decidir seu destino mediante a mais pacífica e civilizada maneira democrática, que é votando.

Escrevo este artigo muito distante da Espanha, e desconheço os últimos episódios desse problema que manteve intranquilo o país nas últimas semanas. Mas talvez a distância seja boa para indagarmos com serenidade o que levou a Catalunha, uma das regiões mais cultas e cosmopolitas da Espanha, a adotar em seu seio, de forma tão disseminada, essa antiquada, provinciana e extravagante ideologia que é o nacionalismo. 

Como é possível que milhares de jovens universitários e estudantes de uma sociedade moderna, que faz parte do mais generoso e idealista projeto democrático de nosso tempo – a construção da Europa, concebida exatamente como uma cidadela contra os nacionalismos que banharam a história de sangue e de cadáveres – tenham agora como ilusão política querer encastelar-se em uma sociedade fechada e obsoleta, que retrocederia e empobreceria brutalmente a Catalunha, uma vez que a região sairia do euro e da União Europeia e teria um grande e difícil trâmite para retornar a ambos?

A resposta não pode ser a defendida pelos nacionalistas de modo aguerrido – de que isso se deve ao fato de a “Espanha roubar da Catalunha” –, pois desde a queda da ditadura de Franco e a transição para a democracia essa região obteve progressivamente a maior atribuição de competências econômicas, culturais e políticas de toda sua história.

Poderia não ser suficiente, evidentemente, e talvez tenha havido da parte dos governos centrais negligência em atender às exigências da Catalunha; mas isso tem uma saída perfeitamente negociável dentro da legalidade e não pode justificar a pretensão de cortar de maneira unilateral 500 anos de história comum e romper com o restante de uma comunidade que está presente e atrelada de mil maneiras na sociedade e na história catalãs. 

Estudantes usam máscaras do Piu Piu durante manifestação pela realização de plebiscito Foto: Josep Lago / AFP

Herança. Nada pode estar mais distante do provincianismo racista e anacrônico do nacionalismo que a grande tradição cultural bilíngue da Catalunha, com seus artistas, músicos, arquitetos, poetas, romancistas, cantores, que estiveram quase sempre na vanguarda, experimentando novas formas e técnicas, abrindo-se ao restante do mundo, assimilando o novo com fruição e propagando-o pelo restante da Europa.

Como se encaixam um Gaudí, um Dalí ou um Tàpies com um Puigdemont e um Junqueras? E um Pla ou Foix ou Marsé ou Serrat ou Cercas com Carme Forcadell ou Ada Colau? Há um abismo tal entre o que uns e outros representam, que é difícil de imaginar alguma linha de continuidade cultural ou ideológica que os una. 

A explicação está certamente em um trabalho de doutrinamento sistemático, que começou nas escolas e projetou-se para todo o conjunto da Catalunha, por meio dos grandes meios de comunicação. Orquestrado e financiado pelo governo catalão desde os anos de Jordi Pujol e seus seguidores, foi tocando fundo nas novas gerações até impregná-las com a ficção perniciosa que representa todo nacionalismo. 

Catalães se preparam para plebiscito de independência

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Uma doutrinação que foi mal neutralizada pela inércia ou ingênua crença da parte do governo e da elite política e intelectual do restante da Espanha – de que aquela manipulação mentirosa não seria aceita, a sociedade catalã saberia resistir a ela e o problema se resolveria por si mesmo.

Não foi assim e essa negligência irresponsável está hoje por trás do monstro que cresceu e levou uma boa parte da Catalunha a uma deriva separatista que, mesmo que não triunfe – e eu creio firmemente que não triunfará – pode arrastar a Espanha a uma crise traumática. Entre outras consequências nefastas, ela poderia paralisar o processo de recuperação econômica que tantos sacrifícios já custou aos espanhóis. 

Um setor minoritário da extrema esquerda adotou como causa comum a independência catalã e outro, mais numeroso e mais sensato, exige diálogo. Não há dúvida de que este último parece indispensável. O problema é que, para que um diálogo seja possível e frutífero, é preciso que haja algum denominador comum entre os participantes dele.

No passado, foi lamentável que as negociações não ocorreram. Mas agora, embora não impossível, é muito mais difícil dialogar com os que não aceitam “a secessão, sim ou sim” e têm em sua intransigência o apoio de um setor considerável da Catalunha.

Pontes. Antes é preciso estender pontes, reconstruir as que foram partidas. E esse é um trabalho essencialmente cultural. Convencer os menos fanatizados e obstinados de que o nacionalismo – todo nacionalismo – sempre foi uma epidemia catastrófica para os povos.

Ele só produziu violência, falta de comunicação, exclusão e racismo e, sobretudo nessa época de globalização universal que está pouco a pouco desfazendo as fronteiras, é suicídio querer resistir a esse processo enormemente benéfico para a humanidade. É preciso explicar que a Espanha precisa da Catalunha tanto quanto a Catalunha precisa da Espanha para integrar-se melhor na grande aventura da Europa e perseverar – aperfeiçoando-a sem trégua – nesta democracia que trouxe para este país condições de vida que são as mais livres e prósperas de sua história.

A independência da Catalunha seria trágica para a Espanha e sobretudo para a Catalunha, que cairia nas mãos de uma ideologia retrógrada e bárbara e dos demagogos que a conduziriam à sua ruína. Tudo o que há de justo nas exigências de soberania pode-se alcançar dentro da unidade, mediante negociações, sem romper a legalidade que nesta última metade de século foi fazendo da Espanha um país livre e democrático. 

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A polícia isolou mais da metade dos 2.300 postos de votação na Catalunha, onde as autoridades separatistas pretendem realizar no domingo um referendo de independência desautorizado pela Justiça espanhola

Não nos esqueçamos de que, durante a transição, o mundo inteiro olhava a Espanha como um exemplo a ser seguido, por ter transitado tão rapidamente e de forma tão prudente e pacífica em direção à democracia, com a atitude tolerante e solidária de todos os partidos políticos e o beneplácito da imensa maioria do país.

Não é tarde para retomar aquele ponto de partida solidário pelo qual foram criados tantos bens para o conjunto dos espanhóis, começando pelo mais importante, que é a liberdade. Por todos os meios racionais possíveis, é preciso persuadir os catalães de que o nacionalismo é um dos piores inimigos da liberdade e este período nefasto deve ficar para trás, como um pesadelo que se desvanece ao despertar. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

* É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA © 2016 EDICIONES EL PAÍS, SL. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA

Opinião por Mario Vargas Llosa

É prêmio Nobel de Literatura

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