Poder ou onipotência?


Trump não foi uma escolha racional, mas, em grande medida, cultural

Por Lourival Sant'Anna

Eu viajava com um motorista local pelas estradas do Mali, em janeiro de 2013, cobrindo a ofensiva dos Exércitos francês e malinês contra a Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI). O motorista me contava que seu pai tinha dez irmãos, todos muçulmanos sunitas, com exceção de um, que era pai de santo. 

De acordo com o comandante do exército de Mali, Modibo Nama Traore, dez homens entraram no hotel gritando "Allahu Akbar" (Deus é grande) antes de atirar nos seguranças. Eles teriam entrado no hotel em um carro com credencial diplomática. Foto: AFP PHOTO / HABIBOU KOUYATE

“Quando meu pai e meus tios muçulmanos têm um problema, recorrem ao irmão pai de santo”, explicou. Eu disse a ele que não entendia como muçulmanos sunitas podiam recorrer a outros deuses, já que, pelo menos no mundo árabe, eles têm uma relação muito rígida com o monoteísmo. “Na África, tudo é bagunçado”, explicou ele, sorrindo. “Até Deus?”, perguntei. “Até Deus”, concordou.

continua após a publicidade

Foi uma de tantas vezes em que deparei com a força dominante da cultura. A rigidez do monoteísmo era provavelmente uma demanda, ou uma reação, da cultura na Península Arábica no século 7. 

O profeta Maomé pode ter expressado essa reação, iniciando a ofensiva contra o politeísmo. As campanhas da AQMI na África, assim como da Al-Qaeda e do Estado Islâmico (EI) em toda parte, são motivadas pelo ímpeto de impor a regra monoteísta, e sua leitura árabe e wahabita (do pregador Mohamed al-Wahhab, do século 18), sobre outras culturas. O que eu cobria naquele momento, como em tantos outros, era, no fundo, um choque entre duas culturas.

Raízes. Assim como a religião, também a economia, a política e a lei – afinal, a religião é uma narrativa que institui leis – são dominadas pela cultura. A estagnação econômica do Japão está relacionada com um aspecto da cultura de seu povo, que considera mais legítimo poupar do que consumir.

continua após a publicidade

A dificuldade extrema de instaurar democracias seculares nos países árabes está relacionada com a cultura árabe acerca do exercício do poder: a falta de limites, a capacidade de humilhar, a intransigência e a truculência são demonstrações de força, e o seu contrário, o diálogo, a tolerância, o respeito, a aceitação da alternância, são provas de fraqueza. Conflito. Nas vésperas da guerra do Iraque, um escritor iraquiano exilado em Amã – que teve de deixar seu país por se recusar a escrever elogios a Saddam Hussein e, portanto, não tinha nenhum apreço pelo ditador – justificava assim as atitudes dele: “No Iraque, se um governante não é brutal, isso é percebido como fraqueza e o povo o atropela”. Quase 14 anos depois, essa leitura ainda é incrivelmente atual. A capacidade de humilhar e a falta de limites são características inerentes a todas as ditaduras árabes.

Com a força do hábito, do afeto e da transmissão dos pais para os filhos, a cultura se sobrepõe muitas vezes à racionalidade. A eleição de Donald Trump é mais uma prova disso. Com suas incoerências, idas e vindas, autodesmentidos e mesmo agressões contra mulheres e minorias, Trump não foi uma escolha racional, mas, em grande medida, cultural. Suas palavras, atitudes e posições têm uma tremenda ressonância em traços da cultura americana, como o individualismo, o empreendedorismo, o patriotismo, o messianismo e uma crença na superioridade e no excepcionalismo dos Estados Unidos. 

Proximidade. A angústia da semana que passou por causa do embate entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Senado é, também, acima de tudo, resultado de um choque cultural no Brasil. Há a cultura que permitiu a reeleição do senador Renan Calheiros em Alagoas, depois do escândalo que o levou a renunciar à presidência do Senado, em 2007. 

continua após a publicidade

Há a cultura dos senadores, que, em voto secreto, naquele ano, rejeitaram a cassação dele; em 2013 e em 2015, voltaram a elegê-lo presidente da Casa e, nesta semana, uniram-se para protegê-lo contra a decisão liminar do ministro Marco Aurélio Mello. 

Há a cultura do pragmatismo, segundo a qual as acusações que pesam sobre o presidente do Senado são menos importantes do que sua capacidade de aprovar a PEC do teto de gastos públicos. 

E há a própria resistência cultural contra o preceito da responsabilidade fiscal, embutido nesse projeto. Aqui, uma confluência importante: a mesma cultura que considera legítimo exercício de autoridade humilhar parte da opinião pública mantendo-se na presidência do Senado depois de ser acusado de pagar a pensão do filho da amante com dinheiro de uma empreiteira considera ilegítimo impor um limite aos gastos do Estado. 

continua após a publicidade

O sistema de valores tem a mesma base: a onipotência do poder. O presidente do Senado pode responder pelo desvio de dinheiro público porque isso é uma prova de seu poder ilimitado que só o fortalece em vez de enfraquecer. 

O Estado, sendo o espaço do poder, também não pode ter limites, seja de gastos ou de força. É assim que se entende o poder na cultura brasileira. A ideia de accountability – imprecisamente traduzida por prestação de contas – é tão exótica que não tem nem sequer um vocábulo em português. 

O caso de Renan foi interpretado como choque entre instituições, mas isso é apenas consequência de outro choque, mais profundo, entre duas culturas de poder presentes no Brasil: uma que o vê como intrinsecamente ilimitado e outra que só o considera legítimo quando respeita limites.

Eu viajava com um motorista local pelas estradas do Mali, em janeiro de 2013, cobrindo a ofensiva dos Exércitos francês e malinês contra a Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI). O motorista me contava que seu pai tinha dez irmãos, todos muçulmanos sunitas, com exceção de um, que era pai de santo. 

De acordo com o comandante do exército de Mali, Modibo Nama Traore, dez homens entraram no hotel gritando "Allahu Akbar" (Deus é grande) antes de atirar nos seguranças. Eles teriam entrado no hotel em um carro com credencial diplomática. Foto: AFP PHOTO / HABIBOU KOUYATE

“Quando meu pai e meus tios muçulmanos têm um problema, recorrem ao irmão pai de santo”, explicou. Eu disse a ele que não entendia como muçulmanos sunitas podiam recorrer a outros deuses, já que, pelo menos no mundo árabe, eles têm uma relação muito rígida com o monoteísmo. “Na África, tudo é bagunçado”, explicou ele, sorrindo. “Até Deus?”, perguntei. “Até Deus”, concordou.

Foi uma de tantas vezes em que deparei com a força dominante da cultura. A rigidez do monoteísmo era provavelmente uma demanda, ou uma reação, da cultura na Península Arábica no século 7. 

O profeta Maomé pode ter expressado essa reação, iniciando a ofensiva contra o politeísmo. As campanhas da AQMI na África, assim como da Al-Qaeda e do Estado Islâmico (EI) em toda parte, são motivadas pelo ímpeto de impor a regra monoteísta, e sua leitura árabe e wahabita (do pregador Mohamed al-Wahhab, do século 18), sobre outras culturas. O que eu cobria naquele momento, como em tantos outros, era, no fundo, um choque entre duas culturas.

Raízes. Assim como a religião, também a economia, a política e a lei – afinal, a religião é uma narrativa que institui leis – são dominadas pela cultura. A estagnação econômica do Japão está relacionada com um aspecto da cultura de seu povo, que considera mais legítimo poupar do que consumir.

A dificuldade extrema de instaurar democracias seculares nos países árabes está relacionada com a cultura árabe acerca do exercício do poder: a falta de limites, a capacidade de humilhar, a intransigência e a truculência são demonstrações de força, e o seu contrário, o diálogo, a tolerância, o respeito, a aceitação da alternância, são provas de fraqueza. Conflito. Nas vésperas da guerra do Iraque, um escritor iraquiano exilado em Amã – que teve de deixar seu país por se recusar a escrever elogios a Saddam Hussein e, portanto, não tinha nenhum apreço pelo ditador – justificava assim as atitudes dele: “No Iraque, se um governante não é brutal, isso é percebido como fraqueza e o povo o atropela”. Quase 14 anos depois, essa leitura ainda é incrivelmente atual. A capacidade de humilhar e a falta de limites são características inerentes a todas as ditaduras árabes.

Com a força do hábito, do afeto e da transmissão dos pais para os filhos, a cultura se sobrepõe muitas vezes à racionalidade. A eleição de Donald Trump é mais uma prova disso. Com suas incoerências, idas e vindas, autodesmentidos e mesmo agressões contra mulheres e minorias, Trump não foi uma escolha racional, mas, em grande medida, cultural. Suas palavras, atitudes e posições têm uma tremenda ressonância em traços da cultura americana, como o individualismo, o empreendedorismo, o patriotismo, o messianismo e uma crença na superioridade e no excepcionalismo dos Estados Unidos. 

Proximidade. A angústia da semana que passou por causa do embate entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Senado é, também, acima de tudo, resultado de um choque cultural no Brasil. Há a cultura que permitiu a reeleição do senador Renan Calheiros em Alagoas, depois do escândalo que o levou a renunciar à presidência do Senado, em 2007. 

Há a cultura dos senadores, que, em voto secreto, naquele ano, rejeitaram a cassação dele; em 2013 e em 2015, voltaram a elegê-lo presidente da Casa e, nesta semana, uniram-se para protegê-lo contra a decisão liminar do ministro Marco Aurélio Mello. 

Há a cultura do pragmatismo, segundo a qual as acusações que pesam sobre o presidente do Senado são menos importantes do que sua capacidade de aprovar a PEC do teto de gastos públicos. 

E há a própria resistência cultural contra o preceito da responsabilidade fiscal, embutido nesse projeto. Aqui, uma confluência importante: a mesma cultura que considera legítimo exercício de autoridade humilhar parte da opinião pública mantendo-se na presidência do Senado depois de ser acusado de pagar a pensão do filho da amante com dinheiro de uma empreiteira considera ilegítimo impor um limite aos gastos do Estado. 

O sistema de valores tem a mesma base: a onipotência do poder. O presidente do Senado pode responder pelo desvio de dinheiro público porque isso é uma prova de seu poder ilimitado que só o fortalece em vez de enfraquecer. 

O Estado, sendo o espaço do poder, também não pode ter limites, seja de gastos ou de força. É assim que se entende o poder na cultura brasileira. A ideia de accountability – imprecisamente traduzida por prestação de contas – é tão exótica que não tem nem sequer um vocábulo em português. 

O caso de Renan foi interpretado como choque entre instituições, mas isso é apenas consequência de outro choque, mais profundo, entre duas culturas de poder presentes no Brasil: uma que o vê como intrinsecamente ilimitado e outra que só o considera legítimo quando respeita limites.

Eu viajava com um motorista local pelas estradas do Mali, em janeiro de 2013, cobrindo a ofensiva dos Exércitos francês e malinês contra a Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI). O motorista me contava que seu pai tinha dez irmãos, todos muçulmanos sunitas, com exceção de um, que era pai de santo. 

De acordo com o comandante do exército de Mali, Modibo Nama Traore, dez homens entraram no hotel gritando "Allahu Akbar" (Deus é grande) antes de atirar nos seguranças. Eles teriam entrado no hotel em um carro com credencial diplomática. Foto: AFP PHOTO / HABIBOU KOUYATE

“Quando meu pai e meus tios muçulmanos têm um problema, recorrem ao irmão pai de santo”, explicou. Eu disse a ele que não entendia como muçulmanos sunitas podiam recorrer a outros deuses, já que, pelo menos no mundo árabe, eles têm uma relação muito rígida com o monoteísmo. “Na África, tudo é bagunçado”, explicou ele, sorrindo. “Até Deus?”, perguntei. “Até Deus”, concordou.

Foi uma de tantas vezes em que deparei com a força dominante da cultura. A rigidez do monoteísmo era provavelmente uma demanda, ou uma reação, da cultura na Península Arábica no século 7. 

O profeta Maomé pode ter expressado essa reação, iniciando a ofensiva contra o politeísmo. As campanhas da AQMI na África, assim como da Al-Qaeda e do Estado Islâmico (EI) em toda parte, são motivadas pelo ímpeto de impor a regra monoteísta, e sua leitura árabe e wahabita (do pregador Mohamed al-Wahhab, do século 18), sobre outras culturas. O que eu cobria naquele momento, como em tantos outros, era, no fundo, um choque entre duas culturas.

Raízes. Assim como a religião, também a economia, a política e a lei – afinal, a religião é uma narrativa que institui leis – são dominadas pela cultura. A estagnação econômica do Japão está relacionada com um aspecto da cultura de seu povo, que considera mais legítimo poupar do que consumir.

A dificuldade extrema de instaurar democracias seculares nos países árabes está relacionada com a cultura árabe acerca do exercício do poder: a falta de limites, a capacidade de humilhar, a intransigência e a truculência são demonstrações de força, e o seu contrário, o diálogo, a tolerância, o respeito, a aceitação da alternância, são provas de fraqueza. Conflito. Nas vésperas da guerra do Iraque, um escritor iraquiano exilado em Amã – que teve de deixar seu país por se recusar a escrever elogios a Saddam Hussein e, portanto, não tinha nenhum apreço pelo ditador – justificava assim as atitudes dele: “No Iraque, se um governante não é brutal, isso é percebido como fraqueza e o povo o atropela”. Quase 14 anos depois, essa leitura ainda é incrivelmente atual. A capacidade de humilhar e a falta de limites são características inerentes a todas as ditaduras árabes.

Com a força do hábito, do afeto e da transmissão dos pais para os filhos, a cultura se sobrepõe muitas vezes à racionalidade. A eleição de Donald Trump é mais uma prova disso. Com suas incoerências, idas e vindas, autodesmentidos e mesmo agressões contra mulheres e minorias, Trump não foi uma escolha racional, mas, em grande medida, cultural. Suas palavras, atitudes e posições têm uma tremenda ressonância em traços da cultura americana, como o individualismo, o empreendedorismo, o patriotismo, o messianismo e uma crença na superioridade e no excepcionalismo dos Estados Unidos. 

Proximidade. A angústia da semana que passou por causa do embate entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Senado é, também, acima de tudo, resultado de um choque cultural no Brasil. Há a cultura que permitiu a reeleição do senador Renan Calheiros em Alagoas, depois do escândalo que o levou a renunciar à presidência do Senado, em 2007. 

Há a cultura dos senadores, que, em voto secreto, naquele ano, rejeitaram a cassação dele; em 2013 e em 2015, voltaram a elegê-lo presidente da Casa e, nesta semana, uniram-se para protegê-lo contra a decisão liminar do ministro Marco Aurélio Mello. 

Há a cultura do pragmatismo, segundo a qual as acusações que pesam sobre o presidente do Senado são menos importantes do que sua capacidade de aprovar a PEC do teto de gastos públicos. 

E há a própria resistência cultural contra o preceito da responsabilidade fiscal, embutido nesse projeto. Aqui, uma confluência importante: a mesma cultura que considera legítimo exercício de autoridade humilhar parte da opinião pública mantendo-se na presidência do Senado depois de ser acusado de pagar a pensão do filho da amante com dinheiro de uma empreiteira considera ilegítimo impor um limite aos gastos do Estado. 

O sistema de valores tem a mesma base: a onipotência do poder. O presidente do Senado pode responder pelo desvio de dinheiro público porque isso é uma prova de seu poder ilimitado que só o fortalece em vez de enfraquecer. 

O Estado, sendo o espaço do poder, também não pode ter limites, seja de gastos ou de força. É assim que se entende o poder na cultura brasileira. A ideia de accountability – imprecisamente traduzida por prestação de contas – é tão exótica que não tem nem sequer um vocábulo em português. 

O caso de Renan foi interpretado como choque entre instituições, mas isso é apenas consequência de outro choque, mais profundo, entre duas culturas de poder presentes no Brasil: uma que o vê como intrinsecamente ilimitado e outra que só o considera legítimo quando respeita limites.

Eu viajava com um motorista local pelas estradas do Mali, em janeiro de 2013, cobrindo a ofensiva dos Exércitos francês e malinês contra a Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQMI). O motorista me contava que seu pai tinha dez irmãos, todos muçulmanos sunitas, com exceção de um, que era pai de santo. 

De acordo com o comandante do exército de Mali, Modibo Nama Traore, dez homens entraram no hotel gritando "Allahu Akbar" (Deus é grande) antes de atirar nos seguranças. Eles teriam entrado no hotel em um carro com credencial diplomática. Foto: AFP PHOTO / HABIBOU KOUYATE

“Quando meu pai e meus tios muçulmanos têm um problema, recorrem ao irmão pai de santo”, explicou. Eu disse a ele que não entendia como muçulmanos sunitas podiam recorrer a outros deuses, já que, pelo menos no mundo árabe, eles têm uma relação muito rígida com o monoteísmo. “Na África, tudo é bagunçado”, explicou ele, sorrindo. “Até Deus?”, perguntei. “Até Deus”, concordou.

Foi uma de tantas vezes em que deparei com a força dominante da cultura. A rigidez do monoteísmo era provavelmente uma demanda, ou uma reação, da cultura na Península Arábica no século 7. 

O profeta Maomé pode ter expressado essa reação, iniciando a ofensiva contra o politeísmo. As campanhas da AQMI na África, assim como da Al-Qaeda e do Estado Islâmico (EI) em toda parte, são motivadas pelo ímpeto de impor a regra monoteísta, e sua leitura árabe e wahabita (do pregador Mohamed al-Wahhab, do século 18), sobre outras culturas. O que eu cobria naquele momento, como em tantos outros, era, no fundo, um choque entre duas culturas.

Raízes. Assim como a religião, também a economia, a política e a lei – afinal, a religião é uma narrativa que institui leis – são dominadas pela cultura. A estagnação econômica do Japão está relacionada com um aspecto da cultura de seu povo, que considera mais legítimo poupar do que consumir.

A dificuldade extrema de instaurar democracias seculares nos países árabes está relacionada com a cultura árabe acerca do exercício do poder: a falta de limites, a capacidade de humilhar, a intransigência e a truculência são demonstrações de força, e o seu contrário, o diálogo, a tolerância, o respeito, a aceitação da alternância, são provas de fraqueza. Conflito. Nas vésperas da guerra do Iraque, um escritor iraquiano exilado em Amã – que teve de deixar seu país por se recusar a escrever elogios a Saddam Hussein e, portanto, não tinha nenhum apreço pelo ditador – justificava assim as atitudes dele: “No Iraque, se um governante não é brutal, isso é percebido como fraqueza e o povo o atropela”. Quase 14 anos depois, essa leitura ainda é incrivelmente atual. A capacidade de humilhar e a falta de limites são características inerentes a todas as ditaduras árabes.

Com a força do hábito, do afeto e da transmissão dos pais para os filhos, a cultura se sobrepõe muitas vezes à racionalidade. A eleição de Donald Trump é mais uma prova disso. Com suas incoerências, idas e vindas, autodesmentidos e mesmo agressões contra mulheres e minorias, Trump não foi uma escolha racional, mas, em grande medida, cultural. Suas palavras, atitudes e posições têm uma tremenda ressonância em traços da cultura americana, como o individualismo, o empreendedorismo, o patriotismo, o messianismo e uma crença na superioridade e no excepcionalismo dos Estados Unidos. 

Proximidade. A angústia da semana que passou por causa do embate entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Senado é, também, acima de tudo, resultado de um choque cultural no Brasil. Há a cultura que permitiu a reeleição do senador Renan Calheiros em Alagoas, depois do escândalo que o levou a renunciar à presidência do Senado, em 2007. 

Há a cultura dos senadores, que, em voto secreto, naquele ano, rejeitaram a cassação dele; em 2013 e em 2015, voltaram a elegê-lo presidente da Casa e, nesta semana, uniram-se para protegê-lo contra a decisão liminar do ministro Marco Aurélio Mello. 

Há a cultura do pragmatismo, segundo a qual as acusações que pesam sobre o presidente do Senado são menos importantes do que sua capacidade de aprovar a PEC do teto de gastos públicos. 

E há a própria resistência cultural contra o preceito da responsabilidade fiscal, embutido nesse projeto. Aqui, uma confluência importante: a mesma cultura que considera legítimo exercício de autoridade humilhar parte da opinião pública mantendo-se na presidência do Senado depois de ser acusado de pagar a pensão do filho da amante com dinheiro de uma empreiteira considera ilegítimo impor um limite aos gastos do Estado. 

O sistema de valores tem a mesma base: a onipotência do poder. O presidente do Senado pode responder pelo desvio de dinheiro público porque isso é uma prova de seu poder ilimitado que só o fortalece em vez de enfraquecer. 

O Estado, sendo o espaço do poder, também não pode ter limites, seja de gastos ou de força. É assim que se entende o poder na cultura brasileira. A ideia de accountability – imprecisamente traduzida por prestação de contas – é tão exótica que não tem nem sequer um vocábulo em português. 

O caso de Renan foi interpretado como choque entre instituições, mas isso é apenas consequência de outro choque, mais profundo, entre duas culturas de poder presentes no Brasil: uma que o vê como intrinsecamente ilimitado e outra que só o considera legítimo quando respeita limites.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.