Um exemplo para o México


A falta de autoridade do Estado, que abriu espaço para que tiranos ganhassem poder na Colômbia há 25 anos, pode se repetir no vizinho do norte

Por Héctor Abad

Quase todo mundo concorda: a única coisa pior do que matar é ser morto. Se nossa vida é ameaçada, temos o direito de nos defender com a força se necessária. Numa sociedade civilizada, essa defesa é delegada ao Estado. Mas nem todos, aparentemente, vivem numa sociedade civilizada. Nos anos 90, a Colômbia registrou um aumento dos grupos de autodefesa formados por justiceiros. Em sua impotência e desespero por não conseguir vencer a guerra contra o exército guerrilheiro (que era essencialmente um cartel de drogas) e contra o exército particular do chefão da droga, Pablo Escobar, o Estado permitiu a formação desses grupos - chamados Convivir. Constituídos por trabalhadores agrícolas, eram treinados por soldados e financiados por proprietários de terras e pelo agronegócio. Quando começaram a extorquir dinheiro dos próprios empresários que os financiavam, foram declarados ilegais. Mas já era tarde demais. Tornaram-se grupos paramilitares clandestinos e usavam as mesmas armas daqueles que combatiam: o sequestro, o assassinato de inocentes e o narcotráfico. O que vem acontecendo nos últimos meses no México, no Estado de Michoacán, me leva a temer que a mesma coisa esteja acontecendo lá atualmente. Os grupos de autodefesa organizaram-se para expulsar o cartel de drogas, conhecido como Cavaleiros Templários. Depois de exigir inicialmente que os justiceiros debandassem, o governo do presidente Enrique Peña Nieto agora os sancionou como parte dos corpos de Defesa Rural - pelo menos nominalmente sob o controle dos militares. O que acontece é o seguinte: o Exército, com o consentimento das autoridades centrais, busca um aliado, um mal menor entre os poderes locais. Comparados aos cruéis e sanguinários Cavaleiros Templários, os grupos de autodefesa desfrutam do apoio popular e têm permissão para operar. Ao mesmo tempo, o governo ignora o fato de que alguns destes justiceiros podem ser financiados pelos inimigos dos Cavaleiros Templários - por exemplo, gangues de traficantes rivais ou outro cartel do Estado vizinho de Jalisco. O governo permite que os justiceiros atuem por algum tempo, mas quando tentar voltar atrás, os grupos de autodefesa já terão se tornado um poder armado de fato, com o qual o governo terá de selar um pacto, pois, sem eles, o Estado não conseguirá afirmar sua autoridade na região. O México, como vários países latino-americanos, consegue garantir a segurança e o respeito à lei somente em algumas zonas. A seiva da lei e da ordem consegue fluir até as proximidades do coração do poder, ao redor das grandes cidades, mas, quanto mais nos afastamos, mais fraco fica o pulso, e em alguns lugares, desaparece. Os policiais são poucos e corruptos, os juízes vivem ameaçados pelos déspotas e pelos homens fortes locais, e as autoridades legítimas são pagas pelas autoridades ilegais. É como o Velho Oeste americano, mas com armamentos do século 21 e exércitos particulares financiados pelo fluxo torrencial de dinheiro do narcotráfico. Não há nenhuma perspectiva de que uma autoridade justa apareça para restaurar a calma. Às vezes, os EUA - que entendem tão bem seus próprios problemas, mas são extremamente equivocados a respeito das realidades latino-americanas - pedem aos governos dos países amigos do sul que travem batalhas heroicas. Os americanos pedem a eliminação das culturas ilícitas, a guerra total às drogas ou o extermínio das forças guerrilheiras. Os governos mais obedientes ignoram as possíveis soluções reais - como a eliminação da fonte dos lucros gigantescos dos cartéis legalizando as drogas - e, em vez disso, tentam atender a estas solicitações, enviando seus Exércitos para empreender a tarefa ingrata de lutar contra os próprios compatriotas. Foi o que Felipe Calderón, o ex-presidente do México, tentou fazer. Mas essas guerras mortíferas sempre fracassam. O que elas geram são poderes locais que se defendem armando-se até os dentes e transformando territórios em campos de batalha onde a vida é impossível para civis indefesos. A economia e o turismo desapareceram, o número de mortos aumentou vertiginosamente (para 80 mil no México) e o vitorioso não é o Estado, mas inevitavelmente alguns narcoditadores com seu próprio Exército de mercenários. Foi o que aprendemos na Colômbia: quando o Estado não está presente são os tiranos locais que assumem o poder e brutalmente impõem as suas regras, que não são nada mais do que a defesa dos seus privilégios. O antigo conceito Hobbesiano, que no estado natural da humanidade o homem é lobo do homem, parece se confirmar nestes experimentos involuntários na América Latina. O lobo mais forte e mais rico (com o tráfico de drogas e a mineração ilegal) domina os outros lobos. Naturalmente cada país é diferente. Mas temo que hoje o México esteja repetindo o mesmo erro que a Colômbia cometeu há 25 anos. Os justiceiros parecem ser uma solução - são considerados salvadores -, mas na realidade fazem parte da doença, criando mais um Exército ilegal, agindo sem restrições e financiados pelo dinheiro sujo. Na Colômbia os grupos de autodefesa eram perseguidos até que, em 2003, 25 mil integrantes foram forçados a se desmobilizar. Como eram também traficantes de droga, alguns chefões paramilitares acabaram extraditados para os EUA. Mas seu legado persiste. Seus descendentes vivem na Colômbia e ainda têm poder: hoje pertencem a gangues criminosas e ainda praticam extorsão e assassinatos financiados pelo dinheiro da droga e da mineração ilegal. No início, os justiceiros assassinavam sequestradores, traficantes de droga e chantagistas, mas logo começaram a eliminar seus parentes e depois seus amigos ou aqueles que pensavam ser seus amigos. Na sequência, mataram as famílias dos amigos, até todos se tornarem suspeitos e baterem na sua própria porta, como ocorreu na Colômbia com meu próprio pai, quando foi morto a tiros nas ruas de Medellín. Permitir que esses Exército privados, mesmo que, aparentemente, atuem em autodefesa, é criar um monstro como a Hidra: se cortar uma cabeça, duas outras crescerão.*Héctor Abad é autor do livro "El ovido que saremos".TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Quase todo mundo concorda: a única coisa pior do que matar é ser morto. Se nossa vida é ameaçada, temos o direito de nos defender com a força se necessária. Numa sociedade civilizada, essa defesa é delegada ao Estado. Mas nem todos, aparentemente, vivem numa sociedade civilizada. Nos anos 90, a Colômbia registrou um aumento dos grupos de autodefesa formados por justiceiros. Em sua impotência e desespero por não conseguir vencer a guerra contra o exército guerrilheiro (que era essencialmente um cartel de drogas) e contra o exército particular do chefão da droga, Pablo Escobar, o Estado permitiu a formação desses grupos - chamados Convivir. Constituídos por trabalhadores agrícolas, eram treinados por soldados e financiados por proprietários de terras e pelo agronegócio. Quando começaram a extorquir dinheiro dos próprios empresários que os financiavam, foram declarados ilegais. Mas já era tarde demais. Tornaram-se grupos paramilitares clandestinos e usavam as mesmas armas daqueles que combatiam: o sequestro, o assassinato de inocentes e o narcotráfico. O que vem acontecendo nos últimos meses no México, no Estado de Michoacán, me leva a temer que a mesma coisa esteja acontecendo lá atualmente. Os grupos de autodefesa organizaram-se para expulsar o cartel de drogas, conhecido como Cavaleiros Templários. Depois de exigir inicialmente que os justiceiros debandassem, o governo do presidente Enrique Peña Nieto agora os sancionou como parte dos corpos de Defesa Rural - pelo menos nominalmente sob o controle dos militares. O que acontece é o seguinte: o Exército, com o consentimento das autoridades centrais, busca um aliado, um mal menor entre os poderes locais. Comparados aos cruéis e sanguinários Cavaleiros Templários, os grupos de autodefesa desfrutam do apoio popular e têm permissão para operar. Ao mesmo tempo, o governo ignora o fato de que alguns destes justiceiros podem ser financiados pelos inimigos dos Cavaleiros Templários - por exemplo, gangues de traficantes rivais ou outro cartel do Estado vizinho de Jalisco. O governo permite que os justiceiros atuem por algum tempo, mas quando tentar voltar atrás, os grupos de autodefesa já terão se tornado um poder armado de fato, com o qual o governo terá de selar um pacto, pois, sem eles, o Estado não conseguirá afirmar sua autoridade na região. O México, como vários países latino-americanos, consegue garantir a segurança e o respeito à lei somente em algumas zonas. A seiva da lei e da ordem consegue fluir até as proximidades do coração do poder, ao redor das grandes cidades, mas, quanto mais nos afastamos, mais fraco fica o pulso, e em alguns lugares, desaparece. Os policiais são poucos e corruptos, os juízes vivem ameaçados pelos déspotas e pelos homens fortes locais, e as autoridades legítimas são pagas pelas autoridades ilegais. É como o Velho Oeste americano, mas com armamentos do século 21 e exércitos particulares financiados pelo fluxo torrencial de dinheiro do narcotráfico. Não há nenhuma perspectiva de que uma autoridade justa apareça para restaurar a calma. Às vezes, os EUA - que entendem tão bem seus próprios problemas, mas são extremamente equivocados a respeito das realidades latino-americanas - pedem aos governos dos países amigos do sul que travem batalhas heroicas. Os americanos pedem a eliminação das culturas ilícitas, a guerra total às drogas ou o extermínio das forças guerrilheiras. Os governos mais obedientes ignoram as possíveis soluções reais - como a eliminação da fonte dos lucros gigantescos dos cartéis legalizando as drogas - e, em vez disso, tentam atender a estas solicitações, enviando seus Exércitos para empreender a tarefa ingrata de lutar contra os próprios compatriotas. Foi o que Felipe Calderón, o ex-presidente do México, tentou fazer. Mas essas guerras mortíferas sempre fracassam. O que elas geram são poderes locais que se defendem armando-se até os dentes e transformando territórios em campos de batalha onde a vida é impossível para civis indefesos. A economia e o turismo desapareceram, o número de mortos aumentou vertiginosamente (para 80 mil no México) e o vitorioso não é o Estado, mas inevitavelmente alguns narcoditadores com seu próprio Exército de mercenários. Foi o que aprendemos na Colômbia: quando o Estado não está presente são os tiranos locais que assumem o poder e brutalmente impõem as suas regras, que não são nada mais do que a defesa dos seus privilégios. O antigo conceito Hobbesiano, que no estado natural da humanidade o homem é lobo do homem, parece se confirmar nestes experimentos involuntários na América Latina. O lobo mais forte e mais rico (com o tráfico de drogas e a mineração ilegal) domina os outros lobos. Naturalmente cada país é diferente. Mas temo que hoje o México esteja repetindo o mesmo erro que a Colômbia cometeu há 25 anos. Os justiceiros parecem ser uma solução - são considerados salvadores -, mas na realidade fazem parte da doença, criando mais um Exército ilegal, agindo sem restrições e financiados pelo dinheiro sujo. Na Colômbia os grupos de autodefesa eram perseguidos até que, em 2003, 25 mil integrantes foram forçados a se desmobilizar. Como eram também traficantes de droga, alguns chefões paramilitares acabaram extraditados para os EUA. Mas seu legado persiste. Seus descendentes vivem na Colômbia e ainda têm poder: hoje pertencem a gangues criminosas e ainda praticam extorsão e assassinatos financiados pelo dinheiro da droga e da mineração ilegal. No início, os justiceiros assassinavam sequestradores, traficantes de droga e chantagistas, mas logo começaram a eliminar seus parentes e depois seus amigos ou aqueles que pensavam ser seus amigos. Na sequência, mataram as famílias dos amigos, até todos se tornarem suspeitos e baterem na sua própria porta, como ocorreu na Colômbia com meu próprio pai, quando foi morto a tiros nas ruas de Medellín. Permitir que esses Exército privados, mesmo que, aparentemente, atuem em autodefesa, é criar um monstro como a Hidra: se cortar uma cabeça, duas outras crescerão.*Héctor Abad é autor do livro "El ovido que saremos".TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Quase todo mundo concorda: a única coisa pior do que matar é ser morto. Se nossa vida é ameaçada, temos o direito de nos defender com a força se necessária. Numa sociedade civilizada, essa defesa é delegada ao Estado. Mas nem todos, aparentemente, vivem numa sociedade civilizada. Nos anos 90, a Colômbia registrou um aumento dos grupos de autodefesa formados por justiceiros. Em sua impotência e desespero por não conseguir vencer a guerra contra o exército guerrilheiro (que era essencialmente um cartel de drogas) e contra o exército particular do chefão da droga, Pablo Escobar, o Estado permitiu a formação desses grupos - chamados Convivir. Constituídos por trabalhadores agrícolas, eram treinados por soldados e financiados por proprietários de terras e pelo agronegócio. Quando começaram a extorquir dinheiro dos próprios empresários que os financiavam, foram declarados ilegais. Mas já era tarde demais. Tornaram-se grupos paramilitares clandestinos e usavam as mesmas armas daqueles que combatiam: o sequestro, o assassinato de inocentes e o narcotráfico. O que vem acontecendo nos últimos meses no México, no Estado de Michoacán, me leva a temer que a mesma coisa esteja acontecendo lá atualmente. Os grupos de autodefesa organizaram-se para expulsar o cartel de drogas, conhecido como Cavaleiros Templários. Depois de exigir inicialmente que os justiceiros debandassem, o governo do presidente Enrique Peña Nieto agora os sancionou como parte dos corpos de Defesa Rural - pelo menos nominalmente sob o controle dos militares. O que acontece é o seguinte: o Exército, com o consentimento das autoridades centrais, busca um aliado, um mal menor entre os poderes locais. Comparados aos cruéis e sanguinários Cavaleiros Templários, os grupos de autodefesa desfrutam do apoio popular e têm permissão para operar. Ao mesmo tempo, o governo ignora o fato de que alguns destes justiceiros podem ser financiados pelos inimigos dos Cavaleiros Templários - por exemplo, gangues de traficantes rivais ou outro cartel do Estado vizinho de Jalisco. O governo permite que os justiceiros atuem por algum tempo, mas quando tentar voltar atrás, os grupos de autodefesa já terão se tornado um poder armado de fato, com o qual o governo terá de selar um pacto, pois, sem eles, o Estado não conseguirá afirmar sua autoridade na região. O México, como vários países latino-americanos, consegue garantir a segurança e o respeito à lei somente em algumas zonas. A seiva da lei e da ordem consegue fluir até as proximidades do coração do poder, ao redor das grandes cidades, mas, quanto mais nos afastamos, mais fraco fica o pulso, e em alguns lugares, desaparece. Os policiais são poucos e corruptos, os juízes vivem ameaçados pelos déspotas e pelos homens fortes locais, e as autoridades legítimas são pagas pelas autoridades ilegais. É como o Velho Oeste americano, mas com armamentos do século 21 e exércitos particulares financiados pelo fluxo torrencial de dinheiro do narcotráfico. Não há nenhuma perspectiva de que uma autoridade justa apareça para restaurar a calma. Às vezes, os EUA - que entendem tão bem seus próprios problemas, mas são extremamente equivocados a respeito das realidades latino-americanas - pedem aos governos dos países amigos do sul que travem batalhas heroicas. Os americanos pedem a eliminação das culturas ilícitas, a guerra total às drogas ou o extermínio das forças guerrilheiras. Os governos mais obedientes ignoram as possíveis soluções reais - como a eliminação da fonte dos lucros gigantescos dos cartéis legalizando as drogas - e, em vez disso, tentam atender a estas solicitações, enviando seus Exércitos para empreender a tarefa ingrata de lutar contra os próprios compatriotas. Foi o que Felipe Calderón, o ex-presidente do México, tentou fazer. Mas essas guerras mortíferas sempre fracassam. O que elas geram são poderes locais que se defendem armando-se até os dentes e transformando territórios em campos de batalha onde a vida é impossível para civis indefesos. A economia e o turismo desapareceram, o número de mortos aumentou vertiginosamente (para 80 mil no México) e o vitorioso não é o Estado, mas inevitavelmente alguns narcoditadores com seu próprio Exército de mercenários. Foi o que aprendemos na Colômbia: quando o Estado não está presente são os tiranos locais que assumem o poder e brutalmente impõem as suas regras, que não são nada mais do que a defesa dos seus privilégios. O antigo conceito Hobbesiano, que no estado natural da humanidade o homem é lobo do homem, parece se confirmar nestes experimentos involuntários na América Latina. O lobo mais forte e mais rico (com o tráfico de drogas e a mineração ilegal) domina os outros lobos. Naturalmente cada país é diferente. Mas temo que hoje o México esteja repetindo o mesmo erro que a Colômbia cometeu há 25 anos. Os justiceiros parecem ser uma solução - são considerados salvadores -, mas na realidade fazem parte da doença, criando mais um Exército ilegal, agindo sem restrições e financiados pelo dinheiro sujo. Na Colômbia os grupos de autodefesa eram perseguidos até que, em 2003, 25 mil integrantes foram forçados a se desmobilizar. Como eram também traficantes de droga, alguns chefões paramilitares acabaram extraditados para os EUA. Mas seu legado persiste. Seus descendentes vivem na Colômbia e ainda têm poder: hoje pertencem a gangues criminosas e ainda praticam extorsão e assassinatos financiados pelo dinheiro da droga e da mineração ilegal. No início, os justiceiros assassinavam sequestradores, traficantes de droga e chantagistas, mas logo começaram a eliminar seus parentes e depois seus amigos ou aqueles que pensavam ser seus amigos. Na sequência, mataram as famílias dos amigos, até todos se tornarem suspeitos e baterem na sua própria porta, como ocorreu na Colômbia com meu próprio pai, quando foi morto a tiros nas ruas de Medellín. Permitir que esses Exército privados, mesmo que, aparentemente, atuem em autodefesa, é criar um monstro como a Hidra: se cortar uma cabeça, duas outras crescerão.*Héctor Abad é autor do livro "El ovido que saremos".TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Quase todo mundo concorda: a única coisa pior do que matar é ser morto. Se nossa vida é ameaçada, temos o direito de nos defender com a força se necessária. Numa sociedade civilizada, essa defesa é delegada ao Estado. Mas nem todos, aparentemente, vivem numa sociedade civilizada. Nos anos 90, a Colômbia registrou um aumento dos grupos de autodefesa formados por justiceiros. Em sua impotência e desespero por não conseguir vencer a guerra contra o exército guerrilheiro (que era essencialmente um cartel de drogas) e contra o exército particular do chefão da droga, Pablo Escobar, o Estado permitiu a formação desses grupos - chamados Convivir. Constituídos por trabalhadores agrícolas, eram treinados por soldados e financiados por proprietários de terras e pelo agronegócio. Quando começaram a extorquir dinheiro dos próprios empresários que os financiavam, foram declarados ilegais. Mas já era tarde demais. Tornaram-se grupos paramilitares clandestinos e usavam as mesmas armas daqueles que combatiam: o sequestro, o assassinato de inocentes e o narcotráfico. O que vem acontecendo nos últimos meses no México, no Estado de Michoacán, me leva a temer que a mesma coisa esteja acontecendo lá atualmente. Os grupos de autodefesa organizaram-se para expulsar o cartel de drogas, conhecido como Cavaleiros Templários. Depois de exigir inicialmente que os justiceiros debandassem, o governo do presidente Enrique Peña Nieto agora os sancionou como parte dos corpos de Defesa Rural - pelo menos nominalmente sob o controle dos militares. O que acontece é o seguinte: o Exército, com o consentimento das autoridades centrais, busca um aliado, um mal menor entre os poderes locais. Comparados aos cruéis e sanguinários Cavaleiros Templários, os grupos de autodefesa desfrutam do apoio popular e têm permissão para operar. Ao mesmo tempo, o governo ignora o fato de que alguns destes justiceiros podem ser financiados pelos inimigos dos Cavaleiros Templários - por exemplo, gangues de traficantes rivais ou outro cartel do Estado vizinho de Jalisco. O governo permite que os justiceiros atuem por algum tempo, mas quando tentar voltar atrás, os grupos de autodefesa já terão se tornado um poder armado de fato, com o qual o governo terá de selar um pacto, pois, sem eles, o Estado não conseguirá afirmar sua autoridade na região. O México, como vários países latino-americanos, consegue garantir a segurança e o respeito à lei somente em algumas zonas. A seiva da lei e da ordem consegue fluir até as proximidades do coração do poder, ao redor das grandes cidades, mas, quanto mais nos afastamos, mais fraco fica o pulso, e em alguns lugares, desaparece. Os policiais são poucos e corruptos, os juízes vivem ameaçados pelos déspotas e pelos homens fortes locais, e as autoridades legítimas são pagas pelas autoridades ilegais. É como o Velho Oeste americano, mas com armamentos do século 21 e exércitos particulares financiados pelo fluxo torrencial de dinheiro do narcotráfico. Não há nenhuma perspectiva de que uma autoridade justa apareça para restaurar a calma. Às vezes, os EUA - que entendem tão bem seus próprios problemas, mas são extremamente equivocados a respeito das realidades latino-americanas - pedem aos governos dos países amigos do sul que travem batalhas heroicas. Os americanos pedem a eliminação das culturas ilícitas, a guerra total às drogas ou o extermínio das forças guerrilheiras. Os governos mais obedientes ignoram as possíveis soluções reais - como a eliminação da fonte dos lucros gigantescos dos cartéis legalizando as drogas - e, em vez disso, tentam atender a estas solicitações, enviando seus Exércitos para empreender a tarefa ingrata de lutar contra os próprios compatriotas. Foi o que Felipe Calderón, o ex-presidente do México, tentou fazer. Mas essas guerras mortíferas sempre fracassam. O que elas geram são poderes locais que se defendem armando-se até os dentes e transformando territórios em campos de batalha onde a vida é impossível para civis indefesos. A economia e o turismo desapareceram, o número de mortos aumentou vertiginosamente (para 80 mil no México) e o vitorioso não é o Estado, mas inevitavelmente alguns narcoditadores com seu próprio Exército de mercenários. Foi o que aprendemos na Colômbia: quando o Estado não está presente são os tiranos locais que assumem o poder e brutalmente impõem as suas regras, que não são nada mais do que a defesa dos seus privilégios. O antigo conceito Hobbesiano, que no estado natural da humanidade o homem é lobo do homem, parece se confirmar nestes experimentos involuntários na América Latina. O lobo mais forte e mais rico (com o tráfico de drogas e a mineração ilegal) domina os outros lobos. Naturalmente cada país é diferente. Mas temo que hoje o México esteja repetindo o mesmo erro que a Colômbia cometeu há 25 anos. Os justiceiros parecem ser uma solução - são considerados salvadores -, mas na realidade fazem parte da doença, criando mais um Exército ilegal, agindo sem restrições e financiados pelo dinheiro sujo. Na Colômbia os grupos de autodefesa eram perseguidos até que, em 2003, 25 mil integrantes foram forçados a se desmobilizar. Como eram também traficantes de droga, alguns chefões paramilitares acabaram extraditados para os EUA. Mas seu legado persiste. Seus descendentes vivem na Colômbia e ainda têm poder: hoje pertencem a gangues criminosas e ainda praticam extorsão e assassinatos financiados pelo dinheiro da droga e da mineração ilegal. No início, os justiceiros assassinavam sequestradores, traficantes de droga e chantagistas, mas logo começaram a eliminar seus parentes e depois seus amigos ou aqueles que pensavam ser seus amigos. Na sequência, mataram as famílias dos amigos, até todos se tornarem suspeitos e baterem na sua própria porta, como ocorreu na Colômbia com meu próprio pai, quando foi morto a tiros nas ruas de Medellín. Permitir que esses Exército privados, mesmo que, aparentemente, atuem em autodefesa, é criar um monstro como a Hidra: se cortar uma cabeça, duas outras crescerão.*Héctor Abad é autor do livro "El ovido que saremos".TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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