Nas últimas semanas, o cenário no TikTok mudou. Entre dancinhas, piadas, bichinhos fofinhos, lances esportivos, dicas de moda e receitas improváveis, estão tiros, tanques e bombas. Com forte apelo visual, aura de consumo instantâneo e algoritmo de recomendações afiado, o app chinês de vídeos curtos virou uma das mais importantes fontes de imagens da guerra na Ucrânia. Em uma batalha travada também no meio digital, a plataforma passou a moldar e a influenciar o conflito de maneira tão veloz quanto zapear pelo aplicativo.
Em 24 de fevereiro, quando a Rússia invadiu o país vizinho, perfis de cidadãos ucranianos (alguns deles bem jovens) transmitiram ao vivo o ataque militar. Fileiras de tanques, colunas de fumaça e explosões se infiltraram na plataforma — e as visualizações pularam dos milhares para os milhões com o crescimento da apreensão global. Inevitavelmente, as imagens se espalharam por outras redes sociais, com ângulos exclusivos que nenhum veículo de mídia do mundo pode oferecer.
De diferentes formas, outras redes sociais, como Facebook e Twitter, tiveram papéis importantes em momentos políticos de diversos países ao longo da última década. O Twitter deu voz a dissidentes no Irã (2009) e durante a Primavera Árabe (2011), além de capturar a invasão do Taleban ao Afeganistão, em agosto do ano passado. Já o Facebook foi instrumento de repressão militar em Mianmar (2020-2021) e permitiu a mobilização e registro da invasão ao Capitólio, nos EUA, em janeiro de 2021. Nada, porém, se assemelha à primeira guerra testemunhada pelo TikTok.
“A novidade do conflito ucraniano é que essas novas mídias se encontram mais disseminadas do que nunca, o que facilita a transmissão de informações. Esforços de propaganda em uma guerra não são novos, mas o ambiente no qual eles ocorrem e as ferramentas utilizadas, sim”, explica Laerte Apolinário Júnior, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).
Com a ascensão do TikTok, recursos como texto curto e fotos, vistos principalmente em outras redes sociais, perdem protagonismo para vídeos rápidos e viciantes no celular.“É um formato vencedor porque é ótimo para contar histórias. As pessoas se acostumaram com isso”, explica Edney Souza, professor da Digital House. “Você não só tem uma rede de informações com maior velocidade, mas também um app com bastante alcance mundial”.
É como se o TikTok fosse a pólvora que alimenta o fogo da curiosidade humana pelo conflito.
Gente como a gente
O poder da imagem durante uma guerra sempre foi decisivo para a mobilização popular, de corpos de soldados americanos no Vietnã a até as explosões captadas pelo canal americano CNN na Guerra do Golfo. No TikTok, a comoção acontece também porque os vídeos revelam a rotina de ucranianos tentando viver em meio ao conflito. É uma janela para lembrar que, por trás da decisão de líderes políticos, existem pessoas normais — a identificação entre quem assiste e quem produz é imediata.
Em seu perfil, a usuária @valerisssh mostra o que é possível preparar para comer em um abrigo antibombas. Ela mora na cidade de Chernihiv, uma das regiões atacadas pelas tropas russas, a cerca de 150 km de Kiev. Entre as imagens da destruição de um cinema antigo e de prédios históricos, a jovem recomenda uma receita de varenike, uma espécie de ravioli de batata comum no leste europeu.
“Perfeito para comer depois da guerra com creme azedo ou com o sangue de Putin”, diz ela. No perfil, o vídeo em que caminha pela cidade e mostra as ruínas já passou de 1,5 milhão de visualizações.
Com a natureza do algoritmo de exibir vídeos baseados nos gostos dos usuários, qualquer pessoa documentando o conflito, mesmo que tenha poucos seguidores, pode ser sugada e ter seus vídeos compartilhados com milhões de desconhecidos em todo o mundo. Isso tem revelado algumas situações impensáveis.
@valerisssh Come to Ukraine after the war and eat vareniki with potato! My mom best in it! #stopwar #ukraine #bombshelter ♬ Hava Nagila - The Jewish Starlight Orchestra
Por exemplo: a estética típica das redes sociais juvenis vai para a zona de combate. Alexandre, dono do perfil @alexhook2303, postou um vídeo enquanto dança fardado ao som de Nirvana com colegas — eles usam os fuzis para simular guitarras enquanto a música “Smells Like Teen Spirit” tora nas caixas de som.
@alexhook2303 # # #Топ #Рек #украинатикток #славаукраїні #Армия #ООС ♬ Smells Like Teen Spirit - Nirvana
Há também influenciadores digitais mostrando o conflito com a mesma naturalidade de quem fala de uma viagem de férias. Com mais de 2 milhões de seguidores no TikTok, Julia Zaluznik (@zaluznik), de 24 anos, tem documentado como ela e a família têm passado os dias de guerra na Ucrânia. Em um de seus vídeos mais vistos, Julia corre com uma criança nos braços no momento em que uma sirene toca.
Em outra publicação, a jovem pergunta na legenda: “Rússia, você realmente acha que todos os outros países estão mentindo e só você diz a verdade?”. Ao fundo, as imagens de um tanque de guerra no meio da rua ilustram o pedido.
@zaluznik 6 день войны. я не осазнаю что это сейчас наша реальность… #войнавукраине #русскийкорабльпошелнахуй ♬ Обійми (Ремікс) - Океан Ельзи
A força do Algoritmo
Parte do segredo do sucesso do app, que ajudou a tirar fôlego do Facebook, Instagram e Twitter, é o seu algoritmo de recomendação de conteúdo. É uma ferramenta de aprendizagem: quanto mais vídeos de maquiagem o perfil vê, por exemplo, mais conteúdos do mesmo tema irão aparecer na tela. Agora, essa lógica tem funcionado com as imagens da guerra.
“Conteúdos envolvendo a guerra geram engajamento, então os algoritmos passam a considerar essas postagens como relevantes e levam isso para pessoas que talvez estivessem mais interessadas em ver coreografias ou os gols da rodada”, explica Carlos Affonso Souza, professor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-RIO).
Isso se desenrola com certo ar distópico, como nas séries de ficção científica. Na timeline dos usuários, explosões de bombas são entregues após vídeos de filhotes de cachorros — para o algoritmo, ambos recebem o mesmo tratamento. Ao sair testando diferentes “lentes” para milhões de usuários, o TikTok tenta adivinhar qual é o gosto do freguês. Se o “cliente” para e assiste, significa que gostou.
Depois de se infiltrar nos gostos do usuário, que recebe o material de maneira passiva, o aplicativo consegue romper fronteiras e atrair para o assunto pessoas que, até então, ignoravam o conflito, presas em suas “bolhas”. “A possibilidade de os algoritmos levarem conteúdo sobre a guerra a mais pessoas não deixa de ser uma oportunidade de sensibilização”, explica Carlos Affonso.
Pressão
Para especialistas, essa “viralidade” do TikTok traz consequências reais, para além do mundo digital.
“Existem dois impactos importantes. O primeiro e mais relevante é sobre a opinião pública global”, explica Eduardo Mello, coordenador da graduação em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. “A Ucrânia não tem nenhuma esperança de resistir militarmente à invasão. A principal maneira pela qual o país pode pressionar a Rússia é por sanções que partem da Otan”. Como resultado da comoção das pessoas ao redor do mundo, os líderes mundiais ficariam mais pressionados para agir com mais velocidade e rigor.
“O segundo efeito é aumentar o moral dos próprios ucranianos. Os líderes do país se comunicam com sua opinião pública doméstica pelas redes sociais. Os militares divulgam suas vitórias em redes sociais. Isso gera apoio maciço da população na resistência”, acrescenta Mello.
Dessa maneira, Volodmir Zelenski, o ex-comediante eleito em 2019 para governar a Ucrânia, se mostrou um grande perito no uso das mídias sociais como arma de defesa. Nas mãos dele, não existe apenas uma poderosa ferramenta de comunicação: há uma enorme vontade de mostrar aquilo que acontece no país.
“Há uma característica diferente nesta guerra. Quando o Twitter foi utilizado durante a Primavera Árabe, a plataforma sofria resistência dos países que passavam pela revolução. A internet era bloqueada”, explica Edney.“Agora, a Ucrânia quer que o mundo saiba o que está acontecendo e o TikTok é a testemunha oficial do país.”
Sentiu
Ao mesmo tempo em que mostra o lado civil do combate, as publicações sobre o conflito estragam a propaganda estatal da Rússia, nação com um dos maiores aparatos digitais do mundo.
Acusando desconforto com a liberdade das plataformas digitais, Vladimir Putin e seus aliados no Kremlin proibiram o uso de redes como Twitter e Facebook. Para acessar notícias vindas do Ocidente, com quem a Ucrânia mantém alinhamento, cidadãos russos fazem uma gambiarra digital para navegar nesses sites bloqueados: recorrem a VPNs, espécie de provedor de rede privada que esconde a localização por onde o usuário acessa a internet.
Embora o governo russo tenha pedido ao TikTok que deixe de exibir conteúdo militar para menores de idade, ainda não há confirmação de que o app tenha sido bloqueado como os rivais - a origem chinesa da plataforma certamente torna essa equação mais complexa, visto que Pequim, ainda que de maneira dúbia, permanece como um dos poucos parceiros de Putin.
Por outro lado, o TikTok, assim como seus concorrentes americanos, bloqueou na Europa e nos EUA os perfis de veículos russos de comunicação, como a rede estatal RT e o Sputnik News, o que reduz ainda mais a presença do país na mais importante plataforma digital desta guerra.
Procurado pela reportagem, o app disse que vai aplicar nos próximos dias uma nova política de rótulos aos conteúdos de algumas contas de mídia controladas por Estados. Disse também que está usando uma combinação de tecnologia e análise humana para proteger a plataforma contra desinformação, outra “arma” nesta guerra e velha companheira de conflitos armados, muito antes das plataformas digitais.
Para o TikTok, esses problemas podem ser novos. Mas, para as outras plataformas rivais, mentiras direcionadas para alterar o mundo real já são conhecidas e antigas. A guerra apenas exacerba os desafios que o app chinês terá pela frente.
“A mentira durante períodos de guerra vai acontecer pelas plataformas do seu tempo. Na Guerra do Iraque, foi pela televisão com o ministro da propaganda, por exemplo”, observa Mello, da FGV. “Agora é pelas redes sociais.”