Não precisa nem ser advogado para já ter ouvido falar dele. Em vigor desde 23 de junho de 2014, o Marco Civil da Internet é um ponto focal das discussões sobre regulação de Internet no Brasil. Esta lei estabeleceu direitos para os usuários de Internet - como a privacidade, a liberdade de expressão e a neutralidade da rede - e criou obrigações para donos de sites e aplicativos (como Google, Facebook e o blog do seu vizinho) e para as empresas de telecomunicação, como a NET e a VIVO.
Mas o Marco Civil não resolveu todas as questões. Sua grande virtude é ser uma lei com princípios bastante gerais, o que a torna flexível para resolver problemas que surjam com o passar do tempo e a mudança da tecnologia. Além disso, por ser uma lei aberta, algumas questões ficaram para ser resolvidas durante a sua regulamentação, um processo que serve para detalhar a implementação da lei nos casos concretos. É como se fosse preciso criar um manual de instruções para a aplicação da lei. Elaborar essas regras de aplicação é uma atribuição da Presidência da República, que é a quem cabe definir esses parâmetros, de acordo com a Constituição Federal (artigo 84, inciso IV). Para manter o espírito participativo sob o qual o Marco Civil foi concebido, o Ministério da Justiça abriu uma consulta pública para receber contribuições a respeito de como esses parâmetros devem ser estabelecidos. A consulta pública foi aberta no dia 28 de janeiro e se encerra no próximo dia 31.
Enquanto o regulamento não fica pronto, o Marco Civil já está valendo. Mas parece que nem todos os juízes concordam com isso. Na semana passada, uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo isentou o Facebook de cumprir uma obrigação prevista na lei justamente porque o regulamento não ficou pronto.
O caso envolvia uma empresa de energia, que teria tido informações sigilosas veiculadas indevidamente em um perfil no Facebook. Para descobrir quem foi o autor das postagens, a empresa precisava de dados de acesso à rede social. De acordo com o artigo 15 do Marco Civil, as empresas de Internet têm a obrigação de manter esses dados (chamados de "logs") guardados por seis meses e devem fornecê-los a partir de uma ordem judicial. Isso aumenta as chances de se conseguir identificar a conexão de Internet que foi utilizada para fazer as postagens.
O Facebook alegou ser impossível fornecer dados a respeito do perfil pois ele fora deletado e, junto com ele, a rede social teria apagado todos os dados de acesso referentes a ele. Para o Tribunal, como o artigo 15 faz menção a um regulamento que ainda não foi elaborado, seu cumprimento ainda não pode ser exigido.
Por um lado, é verdade que o texto do artigo 15 do Marco Civil usa a expressão "nos termos do regulamento", construção típica de uma regra geral que depende de regulamentação para ser aplicada. Por outro, a obrigação de guardar dados de acesso por um período de seis meses parece já estar clara o suficiente para ser cumprida, sem a necessidade de maiores detalhes.
Sem fazer referência a que tipo de lacuna estaria impossibilitando a aplicação da lei tal como ela está escrita, a decisão do Tribunal gera incertezas que podem enfraquecer o Marco Civil. Se a lei já deixa claro quais dados devem ser armazenados e por quanto tempo, quais outras instruções seriam necessárias? Afastar a aplicação da lei sem responder a essa pergunta pode abrir caminho para decisões que usem o mesmo argumento da ausência de regulamentação como um pretexto para deixar de fazer valer garantias e direitos dos usuários de Internet no Brasil.
Na hora de aplicar o Marco Civil, os juízes têm razão de fazê-lo com rigor, prestando atenção aos possíveis entraves para a aplicação da lei. Contudo, isso deve vir acompanhado de uma preocupação com os avanços que já foram conquistados, sob pena de os colocar em xeque.