Opinião|Por um novo Mercosul


Proponho que integração forneça um horizonte de legitimidade para ações da diplomacia brasileira

Por Alberto do Amaral Júnior

Após quase três décadas de existência, é tempo de refletir sobre o Mercosul, preservar as conquistas acumuladas e definir o caminho da integração brasileira na América Latina, espaço prioritário para os interesses nacionais. O Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, em 1991, é o produto de circunstâncias políticas, econômicas e sociais típicas das duas últimas décadas do século 20. O Mercosul assinalou a superação das disputas pela hegemonia regional entre o Brasil e a Argentina, intensificadas na década de 1970, que poderiam ter conduzido a um conflito armado entre as duas nações.

O Tratado sobre o Uso Pacífico da Energia Nuclear, de 1980, e o Acordo sobre a Utilização dos Recursos Hídricos do Rio Paraná, firmado em 1979, para finalizar a controvérsia iniciada com a construção da Usina de Itaipu, propiciaram uma promissora fase de cooperação, robustecida pela Ata do Iguaçu e complementada pelos acordos de 1986 e 1988, cruciais para consolidar relações associativas duradouras. Normalizadas as relações entre Brasília e Buenos Aires, o Uruguai e o Paraguai atenderam ao convite para comporem o Mercosul, que, apesar da denominação, aspirava a ser uma união aduaneira estruturada em torno de uma tarifa externa comum, fato muito diferente do que aconteceu com a experiência da União Europeia.

A transição para os regimes democráticos no Cone Sul, depois de anos sucessivos de autoritarismo político, propiciou condições para a comunicação e o diálogo, requisitos para que a integração viesse a prosperar. Concorreu para isso o substrato cultural comum a todos os países, elemento necessário para a formação de um repertório de significados compartilháveis.

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No plano econômico, o Mercosul buscou, gradativamente, eliminar as barreiras alfandegárias e não alfandegárias, criar eficiência e encorajar as associações empresariais para competirem com maior êxito no mundo globalizado. O processo decisório organizou-se com base no consenso, na solução simplificada das controvérsias por meio da arbitragem, que ganhou densidade com o Protocolo de Olivos, de 2002. Não obstante, as principais controvérsias, como as que envolveram os setores automotivo e de eletrodomésticos, solucionaram-se em negociações diretas, mediante a diplomacia presidencial.

Efeito imediato da criação do Mercosul foi o crescimento substantivo do comércio entre Brasil e Argentina na década de 1990, somente interrompido pela desvalorização do real em 1999 e pela crise que assolou o país vizinho em 2001. No período seguinte não se logrou completar a integração macroeconômica, permaneceram as listas de produtos sensíveis não sujeitos à liberalização comercial, o governo argentino na administração Kirchner, em várias oportunidades, recorreu a medidas protecionistas e a união aduaneira não foi ainda concluída.

A celebração de acordos preferenciais em matéria tarifária, multiplicada nas últimas décadas com a crise do sistema multilateral de comércio, aliada ao imperativo de que as empresas brasileiras participem das cadeias globais de valor, criou problemas novos, com a possibilidade de afetarem o desenvolvimento do País. O Brasil não pode, unilateralmente, decidir pela participação em acordos preferenciais de comércio, hoje prerrogativa inerente do Mercosul, conforme a Decisão n.° 32, de junho de 2000. É adequado, por isso, desistir da intenção de criar uma zona aduaneira com política tarifária idêntica para outros mercados e manter, simplesmente, uma área de livre-comércio com a probabilidade de estendê-la a outros Estados do continente, sem obstáculos aos acordos preferenciais. Justificam esse ponto de vista o insignificante número de acordos comerciais até agora concluídos pelo Mercosul, em nítido contraste com outras nações latino-americanas, as notórias dificuldades de avanço das negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) e a necessidade de atender às peculiaridades do interesse brasileiro. A referida decisão, entretanto, deve ser consensual, para evitar fricções diplomáticas, e requer seja mantido o legado do Mercosul, que não se limita aos aspectos comerciais.

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O Protocolo de Ushuaia, de junho de 1998, determinou que o ingresso e a permanência no Mercosul obedecerão ao pleno respeito à democracia. Esse é um vetor axiológico, que permitiu a suspensão da Venezuela, a ser conservado na hipótese de mudança para uma área de livre-comércio. Atenção especial deve merecer o parágrafo único do artigo 4.º da Constituição, segundo o qual o governo atuará para criar uma comunidade latino-americana de nações. Conferir efetividade a esse objetivo demanda atitudes concretas, muito além das proclamações altissonantes de certas lideranças regionais.

Há na América Latina um verdadeiro abismo entre a retórica de união e a prática de fragmentação entre os Estados. Autoridades nacionais assumem comportamentos que frequentemente se afastam, da realização de interesses comuns. O formalismo marcou o aparecimento de instituições que não demonstraram suficiente eficácia para tratar de problemas gerais, como evidenciou a Unasul. Proponho, nessa linha, que a integração forneça um horizonte de legitimidade para as ações da diplomacia brasileira ao apontar, no curto e no médio prazos, o caminho a ser percorrido. Nas circunstâncias atuais, todavia, ela começaria a partir de passos menores, porém seguros, que privilegiem a infraestrutura física e energética da América do Sul, a celebração de acordos para lidar com problemas concretos, como a proteção ambiental da Amazônia e o combate aos crimes internacionais, notadamente o tráfico de drogas. Essa é uma perspectiva viável, fiel à Constituição, com clareza sobre o futuro e não desconhece as “pedras” que o caminho oferece.

*ALBERTO DO AMARAL JÚNIOR É PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

Após quase três décadas de existência, é tempo de refletir sobre o Mercosul, preservar as conquistas acumuladas e definir o caminho da integração brasileira na América Latina, espaço prioritário para os interesses nacionais. O Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, em 1991, é o produto de circunstâncias políticas, econômicas e sociais típicas das duas últimas décadas do século 20. O Mercosul assinalou a superação das disputas pela hegemonia regional entre o Brasil e a Argentina, intensificadas na década de 1970, que poderiam ter conduzido a um conflito armado entre as duas nações.

O Tratado sobre o Uso Pacífico da Energia Nuclear, de 1980, e o Acordo sobre a Utilização dos Recursos Hídricos do Rio Paraná, firmado em 1979, para finalizar a controvérsia iniciada com a construção da Usina de Itaipu, propiciaram uma promissora fase de cooperação, robustecida pela Ata do Iguaçu e complementada pelos acordos de 1986 e 1988, cruciais para consolidar relações associativas duradouras. Normalizadas as relações entre Brasília e Buenos Aires, o Uruguai e o Paraguai atenderam ao convite para comporem o Mercosul, que, apesar da denominação, aspirava a ser uma união aduaneira estruturada em torno de uma tarifa externa comum, fato muito diferente do que aconteceu com a experiência da União Europeia.

A transição para os regimes democráticos no Cone Sul, depois de anos sucessivos de autoritarismo político, propiciou condições para a comunicação e o diálogo, requisitos para que a integração viesse a prosperar. Concorreu para isso o substrato cultural comum a todos os países, elemento necessário para a formação de um repertório de significados compartilháveis.

No plano econômico, o Mercosul buscou, gradativamente, eliminar as barreiras alfandegárias e não alfandegárias, criar eficiência e encorajar as associações empresariais para competirem com maior êxito no mundo globalizado. O processo decisório organizou-se com base no consenso, na solução simplificada das controvérsias por meio da arbitragem, que ganhou densidade com o Protocolo de Olivos, de 2002. Não obstante, as principais controvérsias, como as que envolveram os setores automotivo e de eletrodomésticos, solucionaram-se em negociações diretas, mediante a diplomacia presidencial.

Efeito imediato da criação do Mercosul foi o crescimento substantivo do comércio entre Brasil e Argentina na década de 1990, somente interrompido pela desvalorização do real em 1999 e pela crise que assolou o país vizinho em 2001. No período seguinte não se logrou completar a integração macroeconômica, permaneceram as listas de produtos sensíveis não sujeitos à liberalização comercial, o governo argentino na administração Kirchner, em várias oportunidades, recorreu a medidas protecionistas e a união aduaneira não foi ainda concluída.

A celebração de acordos preferenciais em matéria tarifária, multiplicada nas últimas décadas com a crise do sistema multilateral de comércio, aliada ao imperativo de que as empresas brasileiras participem das cadeias globais de valor, criou problemas novos, com a possibilidade de afetarem o desenvolvimento do País. O Brasil não pode, unilateralmente, decidir pela participação em acordos preferenciais de comércio, hoje prerrogativa inerente do Mercosul, conforme a Decisão n.° 32, de junho de 2000. É adequado, por isso, desistir da intenção de criar uma zona aduaneira com política tarifária idêntica para outros mercados e manter, simplesmente, uma área de livre-comércio com a probabilidade de estendê-la a outros Estados do continente, sem obstáculos aos acordos preferenciais. Justificam esse ponto de vista o insignificante número de acordos comerciais até agora concluídos pelo Mercosul, em nítido contraste com outras nações latino-americanas, as notórias dificuldades de avanço das negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) e a necessidade de atender às peculiaridades do interesse brasileiro. A referida decisão, entretanto, deve ser consensual, para evitar fricções diplomáticas, e requer seja mantido o legado do Mercosul, que não se limita aos aspectos comerciais.

O Protocolo de Ushuaia, de junho de 1998, determinou que o ingresso e a permanência no Mercosul obedecerão ao pleno respeito à democracia. Esse é um vetor axiológico, que permitiu a suspensão da Venezuela, a ser conservado na hipótese de mudança para uma área de livre-comércio. Atenção especial deve merecer o parágrafo único do artigo 4.º da Constituição, segundo o qual o governo atuará para criar uma comunidade latino-americana de nações. Conferir efetividade a esse objetivo demanda atitudes concretas, muito além das proclamações altissonantes de certas lideranças regionais.

Há na América Latina um verdadeiro abismo entre a retórica de união e a prática de fragmentação entre os Estados. Autoridades nacionais assumem comportamentos que frequentemente se afastam, da realização de interesses comuns. O formalismo marcou o aparecimento de instituições que não demonstraram suficiente eficácia para tratar de problemas gerais, como evidenciou a Unasul. Proponho, nessa linha, que a integração forneça um horizonte de legitimidade para as ações da diplomacia brasileira ao apontar, no curto e no médio prazos, o caminho a ser percorrido. Nas circunstâncias atuais, todavia, ela começaria a partir de passos menores, porém seguros, que privilegiem a infraestrutura física e energética da América do Sul, a celebração de acordos para lidar com problemas concretos, como a proteção ambiental da Amazônia e o combate aos crimes internacionais, notadamente o tráfico de drogas. Essa é uma perspectiva viável, fiel à Constituição, com clareza sobre o futuro e não desconhece as “pedras” que o caminho oferece.

*ALBERTO DO AMARAL JÚNIOR É PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

Após quase três décadas de existência, é tempo de refletir sobre o Mercosul, preservar as conquistas acumuladas e definir o caminho da integração brasileira na América Latina, espaço prioritário para os interesses nacionais. O Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, em 1991, é o produto de circunstâncias políticas, econômicas e sociais típicas das duas últimas décadas do século 20. O Mercosul assinalou a superação das disputas pela hegemonia regional entre o Brasil e a Argentina, intensificadas na década de 1970, que poderiam ter conduzido a um conflito armado entre as duas nações.

O Tratado sobre o Uso Pacífico da Energia Nuclear, de 1980, e o Acordo sobre a Utilização dos Recursos Hídricos do Rio Paraná, firmado em 1979, para finalizar a controvérsia iniciada com a construção da Usina de Itaipu, propiciaram uma promissora fase de cooperação, robustecida pela Ata do Iguaçu e complementada pelos acordos de 1986 e 1988, cruciais para consolidar relações associativas duradouras. Normalizadas as relações entre Brasília e Buenos Aires, o Uruguai e o Paraguai atenderam ao convite para comporem o Mercosul, que, apesar da denominação, aspirava a ser uma união aduaneira estruturada em torno de uma tarifa externa comum, fato muito diferente do que aconteceu com a experiência da União Europeia.

A transição para os regimes democráticos no Cone Sul, depois de anos sucessivos de autoritarismo político, propiciou condições para a comunicação e o diálogo, requisitos para que a integração viesse a prosperar. Concorreu para isso o substrato cultural comum a todos os países, elemento necessário para a formação de um repertório de significados compartilháveis.

No plano econômico, o Mercosul buscou, gradativamente, eliminar as barreiras alfandegárias e não alfandegárias, criar eficiência e encorajar as associações empresariais para competirem com maior êxito no mundo globalizado. O processo decisório organizou-se com base no consenso, na solução simplificada das controvérsias por meio da arbitragem, que ganhou densidade com o Protocolo de Olivos, de 2002. Não obstante, as principais controvérsias, como as que envolveram os setores automotivo e de eletrodomésticos, solucionaram-se em negociações diretas, mediante a diplomacia presidencial.

Efeito imediato da criação do Mercosul foi o crescimento substantivo do comércio entre Brasil e Argentina na década de 1990, somente interrompido pela desvalorização do real em 1999 e pela crise que assolou o país vizinho em 2001. No período seguinte não se logrou completar a integração macroeconômica, permaneceram as listas de produtos sensíveis não sujeitos à liberalização comercial, o governo argentino na administração Kirchner, em várias oportunidades, recorreu a medidas protecionistas e a união aduaneira não foi ainda concluída.

A celebração de acordos preferenciais em matéria tarifária, multiplicada nas últimas décadas com a crise do sistema multilateral de comércio, aliada ao imperativo de que as empresas brasileiras participem das cadeias globais de valor, criou problemas novos, com a possibilidade de afetarem o desenvolvimento do País. O Brasil não pode, unilateralmente, decidir pela participação em acordos preferenciais de comércio, hoje prerrogativa inerente do Mercosul, conforme a Decisão n.° 32, de junho de 2000. É adequado, por isso, desistir da intenção de criar uma zona aduaneira com política tarifária idêntica para outros mercados e manter, simplesmente, uma área de livre-comércio com a probabilidade de estendê-la a outros Estados do continente, sem obstáculos aos acordos preferenciais. Justificam esse ponto de vista o insignificante número de acordos comerciais até agora concluídos pelo Mercosul, em nítido contraste com outras nações latino-americanas, as notórias dificuldades de avanço das negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) e a necessidade de atender às peculiaridades do interesse brasileiro. A referida decisão, entretanto, deve ser consensual, para evitar fricções diplomáticas, e requer seja mantido o legado do Mercosul, que não se limita aos aspectos comerciais.

O Protocolo de Ushuaia, de junho de 1998, determinou que o ingresso e a permanência no Mercosul obedecerão ao pleno respeito à democracia. Esse é um vetor axiológico, que permitiu a suspensão da Venezuela, a ser conservado na hipótese de mudança para uma área de livre-comércio. Atenção especial deve merecer o parágrafo único do artigo 4.º da Constituição, segundo o qual o governo atuará para criar uma comunidade latino-americana de nações. Conferir efetividade a esse objetivo demanda atitudes concretas, muito além das proclamações altissonantes de certas lideranças regionais.

Há na América Latina um verdadeiro abismo entre a retórica de união e a prática de fragmentação entre os Estados. Autoridades nacionais assumem comportamentos que frequentemente se afastam, da realização de interesses comuns. O formalismo marcou o aparecimento de instituições que não demonstraram suficiente eficácia para tratar de problemas gerais, como evidenciou a Unasul. Proponho, nessa linha, que a integração forneça um horizonte de legitimidade para as ações da diplomacia brasileira ao apontar, no curto e no médio prazos, o caminho a ser percorrido. Nas circunstâncias atuais, todavia, ela começaria a partir de passos menores, porém seguros, que privilegiem a infraestrutura física e energética da América do Sul, a celebração de acordos para lidar com problemas concretos, como a proteção ambiental da Amazônia e o combate aos crimes internacionais, notadamente o tráfico de drogas. Essa é uma perspectiva viável, fiel à Constituição, com clareza sobre o futuro e não desconhece as “pedras” que o caminho oferece.

*ALBERTO DO AMARAL JÚNIOR É PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

Após quase três décadas de existência, é tempo de refletir sobre o Mercosul, preservar as conquistas acumuladas e definir o caminho da integração brasileira na América Latina, espaço prioritário para os interesses nacionais. O Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, em 1991, é o produto de circunstâncias políticas, econômicas e sociais típicas das duas últimas décadas do século 20. O Mercosul assinalou a superação das disputas pela hegemonia regional entre o Brasil e a Argentina, intensificadas na década de 1970, que poderiam ter conduzido a um conflito armado entre as duas nações.

O Tratado sobre o Uso Pacífico da Energia Nuclear, de 1980, e o Acordo sobre a Utilização dos Recursos Hídricos do Rio Paraná, firmado em 1979, para finalizar a controvérsia iniciada com a construção da Usina de Itaipu, propiciaram uma promissora fase de cooperação, robustecida pela Ata do Iguaçu e complementada pelos acordos de 1986 e 1988, cruciais para consolidar relações associativas duradouras. Normalizadas as relações entre Brasília e Buenos Aires, o Uruguai e o Paraguai atenderam ao convite para comporem o Mercosul, que, apesar da denominação, aspirava a ser uma união aduaneira estruturada em torno de uma tarifa externa comum, fato muito diferente do que aconteceu com a experiência da União Europeia.

A transição para os regimes democráticos no Cone Sul, depois de anos sucessivos de autoritarismo político, propiciou condições para a comunicação e o diálogo, requisitos para que a integração viesse a prosperar. Concorreu para isso o substrato cultural comum a todos os países, elemento necessário para a formação de um repertório de significados compartilháveis.

No plano econômico, o Mercosul buscou, gradativamente, eliminar as barreiras alfandegárias e não alfandegárias, criar eficiência e encorajar as associações empresariais para competirem com maior êxito no mundo globalizado. O processo decisório organizou-se com base no consenso, na solução simplificada das controvérsias por meio da arbitragem, que ganhou densidade com o Protocolo de Olivos, de 2002. Não obstante, as principais controvérsias, como as que envolveram os setores automotivo e de eletrodomésticos, solucionaram-se em negociações diretas, mediante a diplomacia presidencial.

Efeito imediato da criação do Mercosul foi o crescimento substantivo do comércio entre Brasil e Argentina na década de 1990, somente interrompido pela desvalorização do real em 1999 e pela crise que assolou o país vizinho em 2001. No período seguinte não se logrou completar a integração macroeconômica, permaneceram as listas de produtos sensíveis não sujeitos à liberalização comercial, o governo argentino na administração Kirchner, em várias oportunidades, recorreu a medidas protecionistas e a união aduaneira não foi ainda concluída.

A celebração de acordos preferenciais em matéria tarifária, multiplicada nas últimas décadas com a crise do sistema multilateral de comércio, aliada ao imperativo de que as empresas brasileiras participem das cadeias globais de valor, criou problemas novos, com a possibilidade de afetarem o desenvolvimento do País. O Brasil não pode, unilateralmente, decidir pela participação em acordos preferenciais de comércio, hoje prerrogativa inerente do Mercosul, conforme a Decisão n.° 32, de junho de 2000. É adequado, por isso, desistir da intenção de criar uma zona aduaneira com política tarifária idêntica para outros mercados e manter, simplesmente, uma área de livre-comércio com a probabilidade de estendê-la a outros Estados do continente, sem obstáculos aos acordos preferenciais. Justificam esse ponto de vista o insignificante número de acordos comerciais até agora concluídos pelo Mercosul, em nítido contraste com outras nações latino-americanas, as notórias dificuldades de avanço das negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) e a necessidade de atender às peculiaridades do interesse brasileiro. A referida decisão, entretanto, deve ser consensual, para evitar fricções diplomáticas, e requer seja mantido o legado do Mercosul, que não se limita aos aspectos comerciais.

O Protocolo de Ushuaia, de junho de 1998, determinou que o ingresso e a permanência no Mercosul obedecerão ao pleno respeito à democracia. Esse é um vetor axiológico, que permitiu a suspensão da Venezuela, a ser conservado na hipótese de mudança para uma área de livre-comércio. Atenção especial deve merecer o parágrafo único do artigo 4.º da Constituição, segundo o qual o governo atuará para criar uma comunidade latino-americana de nações. Conferir efetividade a esse objetivo demanda atitudes concretas, muito além das proclamações altissonantes de certas lideranças regionais.

Há na América Latina um verdadeiro abismo entre a retórica de união e a prática de fragmentação entre os Estados. Autoridades nacionais assumem comportamentos que frequentemente se afastam, da realização de interesses comuns. O formalismo marcou o aparecimento de instituições que não demonstraram suficiente eficácia para tratar de problemas gerais, como evidenciou a Unasul. Proponho, nessa linha, que a integração forneça um horizonte de legitimidade para as ações da diplomacia brasileira ao apontar, no curto e no médio prazos, o caminho a ser percorrido. Nas circunstâncias atuais, todavia, ela começaria a partir de passos menores, porém seguros, que privilegiem a infraestrutura física e energética da América do Sul, a celebração de acordos para lidar com problemas concretos, como a proteção ambiental da Amazônia e o combate aos crimes internacionais, notadamente o tráfico de drogas. Essa é uma perspectiva viável, fiel à Constituição, com clareza sobre o futuro e não desconhece as “pedras” que o caminho oferece.

*ALBERTO DO AMARAL JÚNIOR É PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

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