Da fruta fresca à pilha de mortadela


Sanduíches exagerados e pastelões ganham terreno, mas azeites nobres, frutas raras e outras preciosidades resistem entrincheirados nas velhas bancas, que ainda levam chefs de cozinha a visitar o octogenário Mercadão

Por danielmarques
Atualização:

No vai e vem diário de 15 mil pessoas, as vocações do lugar se confundem. “Sanduíche de mortadela, pastel e bolinho de bacalhau”, convida um garçom; “fruta hoje?”, oferece o feirante. De centro de distribuição de alimentos a point dos colossais sanduíches de mortadela, o Mercadão comemora 80 anos no dia em que São Paulo faz 459 verões – nesta sexta-feira, 25. Nessas oito décadas, o prédio projetado pelo escritório de arquitetura de Ramos de Azevedo para abrigar feirantes e comerciantes enfrentou enchentes, concorrência, ameaças de demolição e anos de crise econômica.

Os problemas agora são isolados. Vendedores reclamam da queda nas compras, garçons caminham apressados para atender pedidos. Quase a metade dos visitantes do Mercadão é de turistas, e boa parte passa por lá para comer (o setor é o favorito de 63% dos consumidores, segundo dados da São Paulo Turismo), cada vez menos pessoas compram. Basta olhar os corredores. Muita comida na mão e poucas sacolas no braço. “Depois da construção do mezanino em 2004, num primeiro momento, houve um aumento no volume de vendas que se estabilizou. Quem continuou avançando eram os comerciantes que vendiam produtos prontos”, explica Leandro Chiappetta, proprietário do Empório Chiappetta, que pertenceu a seu pai desde a inauguração do Mercadão.

De principal centro de abastecimento da cidade a um dos mais importante pontos turísticos de São Paulo, ao longo da vida, o Mercadão precisou se reinventar. Ainda mantém a aura e a nostalgia dos tempos em que imperava no fornecimento de produtos importados (de outros países e de outros Estados), enquanto convive com o crescimento das lanchonetes e a fama de “lugar pra comer”. Se no passado era quase que totalmente formado por distribuidores e comerciantes (o Bar do Mané era um dos poucos comércios de comidas prontas e atendia basicamente aos feirantes), atualmente, abriga nos seus 12.600 metros quadrados mais de 46 lanchonetes e pontos de venda de comida pronta, num total de 272 estabelecimentos.

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Hegemonia em risco. Até os anos 60 o Mercadão reinou sem concorrência à altura, enfrentando problemas que iam de enchentes ou dificuldade de importação de produtos europeus, devido à Segunda Guerra Mundial. Ainda assim era o lugar certo a visitar quando o jantar precisava fugir do feijão e do arroz, o primeiro espaço de globalização da gastronomia da cidade. Comerciantes portugueses, espanhóis e italianos vendiam produtos de seus países de origem e feirantes montavam barracas ao redor do prédio com produtos frescos. Era ali que os chefs de São Paulo projetavam desejos e receitas, e visitavam constantemente seus corredores em busca de novidades. Vendedores de gravata, de balcões de mármore de Carrara para tratar peixes, de carroças circulando nas ruas principais do prédio, dos sacos e tonéis com produtos trazidos de fora do país. “O Mercado era famoso pelo bom manuseio de comida e pela variedade e qualidade de produtos”, disse Chiappetta.

“A gente tinha o Mercadão como referência”, contou José Alencar de Souza, chef do Santo Colomba, frequentador assíduo nos anos 70. Cozinheiros se encontravam nas bancas em busca de produtos especiais. “Pinoli, açafrão italiano e funghi porcini até se encontrava em outros lugares, mas lá estava tudo junto”. Alencar, atualmente vai ao Mercadão “só em caso de emergência por causa do preço, mas é um ponto de apoio excelente para chefs”, completou.

A fuga de chefs aconteceu em parte pela inauguração da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), em 1969, junto de mudanças dos hábitos de compra dos restaurantes, que passaram a receber mercadorias diretamente nas suas cozinhas, de fornecedores específicos. “A Ceagesp se mostrou um instrumento mais moderno para os novos tempos de consumo dos restaurantes e preencheu uma lacuna no crescimento da cidade”, explica o cozinheiro. “Mas nunca compensou o gostoso que o Mercadão tem. Lá você ia com uma lista de compras e voltava com outra”.

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Além da migração de chefs, o comércio assistiu também a saída do público do dia a dia. Antônio Amaro, filho de feirantes do Mercadão e diretor do Instituto de Economia Agrícola nos anos 90, acredita em pelo menos três fatores para o esvaziamento do espaço, até a construção do mezanino e dos restaurantes. O desenvolvimento da agroindústria melhorou a qualidade dos produtos e reduziu a importância do feirante que selecionava as frutas e verduras, tornando possível fazer boas compras em outros locais; carência de facilidades como estacionamento e o novo perfil do Mercadão, conhecido como lugar para turista.

“Para entender o que é o Mercadão, é preciso compreender seu contexto socioeconômico”, analisa. “Por exemplo, muita barraca fechou aqui porque os filhos dos feirantes não quiseram seguir com a profissão dos pais e, como tiveram condições econômicas de estudar, preferiram seguir outras carreiras”.

A pressão econômica estimulou mudanças, e como a grama do vizinho é quase sempre mais verde, o sucesso das lanchonetes fez crescer a intenção de comerciantes de mudar para o ramo de comida. Gabriela Vianna, administradora do Mercadão há cinco anos, disse que atualmente há permissões negadas para quem pretende vender sanduíches ou pastéis. “A gente está estudando casos de quem apresentou cardápios diferentes”, disse. “O Mercadão preza pela diversidade”.

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Entre mirtilos e pirarucus Heloisa Bacellar, do Lá da Venda, gosta de visitar mercados pelo mundo em suas viagens. “O Mercadão retrata bem o que é São Paulo. Tem a cozinha do Brasil e dos imigrantes”, diz. De pirarucu a mirtilo, a variedade dos produtos no Mercadão é imensa (não há dados sobre o número de produtos comercializados por lá, segundo a administração). “Quando penso nos outros mercados que conheço, vejo quanto o nosso é espetacular.” Pimentas para suas receitas, saem do Quiosque das Pimentas. Rua H, boxes 28 e 30.

Pergunte ao espanhol  Para indicar uma de suas bancas favoritas, Leo Botto, da Casa Nero, diz que é “perto da padaria, uma banca das antigas que vende embutidos espanhóis”. A tal banca das antigas é a Jamoneria, pequeno empório com vinhos, chorizo, presunto pata negra, morcilla e temperos para paella. “Quando comecei a cozinhar ou me entender como cozinheiro o Mercadão foi uma vitrine importantíssima na minha vida. Acho que ele tem essa função social de colocar as pessoas em contato com ingredientes de qualidade”, disse. Rua F, box 19

Frios fininhos Se falta um ingrediente no Bar da Dona Onça, Janaína Rueda dá um pulo no Mercadão. “Eu tenho meus fornecedores que não são necessariamente de lá, mas todas as vezes que não tem um peixe ou alguma outra coisa, corro lá e às vezes, encontro produtos melhores que os nossos.” Frios, ela compra os fatiados pela Dona Janete, cortados numa máquina de mais de 40 anos. “Os pedaços de presunto de parma saem inteiros e fininhos”. Rua D, box 13

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Ela “ouve” os ingredientes Era nas madrugadas que a chef Bel Coelho visitava o Mercadão, comprando ingredientes no atacado. Apesar da nostalgia, é do varejo que ela gosta atualmente. “Quem passa por lá consegue saber um pouco sobre novidades de ingredientes, um pouco das frutas que vêm do Norte, dos peixes”, explica. “Fora que ele é inspirador e dá a dimensão do que as pessoas estão comendo em casa.” A banca do Ramon é um de seus lugares preferidos no mercado. “Ele tem bons fornecedores e preços razoáveis.” Rua H, boxes 21 e 23

Fama chega a Ilhabela Primeiro, Renata Vanzetto conheceu o mercadão pelos correios. Em encomendas enviadas por uma tia, a jovem chef conheceu frutas, embutidos e queijos comprados no Mercadão. Em visita a São Paulo, foi conhecer a fonte daquilo que chegava em caixas a Ilhabela, gostou o bastante para levar todos os estrangeiros que ela acompanha pela cidade. E foi para amigos também que ela comprou um leitão inteiro no Porco Feliz para um jantar de final de ano. “Lá é ótimo para carnes, tem muita variedade de caças.” Rua E, box 26

>> Veja todos os textos publicados na edição de 1724/1/13 do ‘Paladar’

No vai e vem diário de 15 mil pessoas, as vocações do lugar se confundem. “Sanduíche de mortadela, pastel e bolinho de bacalhau”, convida um garçom; “fruta hoje?”, oferece o feirante. De centro de distribuição de alimentos a point dos colossais sanduíches de mortadela, o Mercadão comemora 80 anos no dia em que São Paulo faz 459 verões – nesta sexta-feira, 25. Nessas oito décadas, o prédio projetado pelo escritório de arquitetura de Ramos de Azevedo para abrigar feirantes e comerciantes enfrentou enchentes, concorrência, ameaças de demolição e anos de crise econômica.

Os problemas agora são isolados. Vendedores reclamam da queda nas compras, garçons caminham apressados para atender pedidos. Quase a metade dos visitantes do Mercadão é de turistas, e boa parte passa por lá para comer (o setor é o favorito de 63% dos consumidores, segundo dados da São Paulo Turismo), cada vez menos pessoas compram. Basta olhar os corredores. Muita comida na mão e poucas sacolas no braço. “Depois da construção do mezanino em 2004, num primeiro momento, houve um aumento no volume de vendas que se estabilizou. Quem continuou avançando eram os comerciantes que vendiam produtos prontos”, explica Leandro Chiappetta, proprietário do Empório Chiappetta, que pertenceu a seu pai desde a inauguração do Mercadão.

De principal centro de abastecimento da cidade a um dos mais importante pontos turísticos de São Paulo, ao longo da vida, o Mercadão precisou se reinventar. Ainda mantém a aura e a nostalgia dos tempos em que imperava no fornecimento de produtos importados (de outros países e de outros Estados), enquanto convive com o crescimento das lanchonetes e a fama de “lugar pra comer”. Se no passado era quase que totalmente formado por distribuidores e comerciantes (o Bar do Mané era um dos poucos comércios de comidas prontas e atendia basicamente aos feirantes), atualmente, abriga nos seus 12.600 metros quadrados mais de 46 lanchonetes e pontos de venda de comida pronta, num total de 272 estabelecimentos.

Hegemonia em risco. Até os anos 60 o Mercadão reinou sem concorrência à altura, enfrentando problemas que iam de enchentes ou dificuldade de importação de produtos europeus, devido à Segunda Guerra Mundial. Ainda assim era o lugar certo a visitar quando o jantar precisava fugir do feijão e do arroz, o primeiro espaço de globalização da gastronomia da cidade. Comerciantes portugueses, espanhóis e italianos vendiam produtos de seus países de origem e feirantes montavam barracas ao redor do prédio com produtos frescos. Era ali que os chefs de São Paulo projetavam desejos e receitas, e visitavam constantemente seus corredores em busca de novidades. Vendedores de gravata, de balcões de mármore de Carrara para tratar peixes, de carroças circulando nas ruas principais do prédio, dos sacos e tonéis com produtos trazidos de fora do país. “O Mercado era famoso pelo bom manuseio de comida e pela variedade e qualidade de produtos”, disse Chiappetta.

“A gente tinha o Mercadão como referência”, contou José Alencar de Souza, chef do Santo Colomba, frequentador assíduo nos anos 70. Cozinheiros se encontravam nas bancas em busca de produtos especiais. “Pinoli, açafrão italiano e funghi porcini até se encontrava em outros lugares, mas lá estava tudo junto”. Alencar, atualmente vai ao Mercadão “só em caso de emergência por causa do preço, mas é um ponto de apoio excelente para chefs”, completou.

A fuga de chefs aconteceu em parte pela inauguração da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), em 1969, junto de mudanças dos hábitos de compra dos restaurantes, que passaram a receber mercadorias diretamente nas suas cozinhas, de fornecedores específicos. “A Ceagesp se mostrou um instrumento mais moderno para os novos tempos de consumo dos restaurantes e preencheu uma lacuna no crescimento da cidade”, explica o cozinheiro. “Mas nunca compensou o gostoso que o Mercadão tem. Lá você ia com uma lista de compras e voltava com outra”.

Além da migração de chefs, o comércio assistiu também a saída do público do dia a dia. Antônio Amaro, filho de feirantes do Mercadão e diretor do Instituto de Economia Agrícola nos anos 90, acredita em pelo menos três fatores para o esvaziamento do espaço, até a construção do mezanino e dos restaurantes. O desenvolvimento da agroindústria melhorou a qualidade dos produtos e reduziu a importância do feirante que selecionava as frutas e verduras, tornando possível fazer boas compras em outros locais; carência de facilidades como estacionamento e o novo perfil do Mercadão, conhecido como lugar para turista.

“Para entender o que é o Mercadão, é preciso compreender seu contexto socioeconômico”, analisa. “Por exemplo, muita barraca fechou aqui porque os filhos dos feirantes não quiseram seguir com a profissão dos pais e, como tiveram condições econômicas de estudar, preferiram seguir outras carreiras”.

A pressão econômica estimulou mudanças, e como a grama do vizinho é quase sempre mais verde, o sucesso das lanchonetes fez crescer a intenção de comerciantes de mudar para o ramo de comida. Gabriela Vianna, administradora do Mercadão há cinco anos, disse que atualmente há permissões negadas para quem pretende vender sanduíches ou pastéis. “A gente está estudando casos de quem apresentou cardápios diferentes”, disse. “O Mercadão preza pela diversidade”.

Entre mirtilos e pirarucus Heloisa Bacellar, do Lá da Venda, gosta de visitar mercados pelo mundo em suas viagens. “O Mercadão retrata bem o que é São Paulo. Tem a cozinha do Brasil e dos imigrantes”, diz. De pirarucu a mirtilo, a variedade dos produtos no Mercadão é imensa (não há dados sobre o número de produtos comercializados por lá, segundo a administração). “Quando penso nos outros mercados que conheço, vejo quanto o nosso é espetacular.” Pimentas para suas receitas, saem do Quiosque das Pimentas. Rua H, boxes 28 e 30.

Pergunte ao espanhol  Para indicar uma de suas bancas favoritas, Leo Botto, da Casa Nero, diz que é “perto da padaria, uma banca das antigas que vende embutidos espanhóis”. A tal banca das antigas é a Jamoneria, pequeno empório com vinhos, chorizo, presunto pata negra, morcilla e temperos para paella. “Quando comecei a cozinhar ou me entender como cozinheiro o Mercadão foi uma vitrine importantíssima na minha vida. Acho que ele tem essa função social de colocar as pessoas em contato com ingredientes de qualidade”, disse. Rua F, box 19

Frios fininhos Se falta um ingrediente no Bar da Dona Onça, Janaína Rueda dá um pulo no Mercadão. “Eu tenho meus fornecedores que não são necessariamente de lá, mas todas as vezes que não tem um peixe ou alguma outra coisa, corro lá e às vezes, encontro produtos melhores que os nossos.” Frios, ela compra os fatiados pela Dona Janete, cortados numa máquina de mais de 40 anos. “Os pedaços de presunto de parma saem inteiros e fininhos”. Rua D, box 13

Ela “ouve” os ingredientes Era nas madrugadas que a chef Bel Coelho visitava o Mercadão, comprando ingredientes no atacado. Apesar da nostalgia, é do varejo que ela gosta atualmente. “Quem passa por lá consegue saber um pouco sobre novidades de ingredientes, um pouco das frutas que vêm do Norte, dos peixes”, explica. “Fora que ele é inspirador e dá a dimensão do que as pessoas estão comendo em casa.” A banca do Ramon é um de seus lugares preferidos no mercado. “Ele tem bons fornecedores e preços razoáveis.” Rua H, boxes 21 e 23

Fama chega a Ilhabela Primeiro, Renata Vanzetto conheceu o mercadão pelos correios. Em encomendas enviadas por uma tia, a jovem chef conheceu frutas, embutidos e queijos comprados no Mercadão. Em visita a São Paulo, foi conhecer a fonte daquilo que chegava em caixas a Ilhabela, gostou o bastante para levar todos os estrangeiros que ela acompanha pela cidade. E foi para amigos também que ela comprou um leitão inteiro no Porco Feliz para um jantar de final de ano. “Lá é ótimo para carnes, tem muita variedade de caças.” Rua E, box 26

>> Veja todos os textos publicados na edição de 1724/1/13 do ‘Paladar’

No vai e vem diário de 15 mil pessoas, as vocações do lugar se confundem. “Sanduíche de mortadela, pastel e bolinho de bacalhau”, convida um garçom; “fruta hoje?”, oferece o feirante. De centro de distribuição de alimentos a point dos colossais sanduíches de mortadela, o Mercadão comemora 80 anos no dia em que São Paulo faz 459 verões – nesta sexta-feira, 25. Nessas oito décadas, o prédio projetado pelo escritório de arquitetura de Ramos de Azevedo para abrigar feirantes e comerciantes enfrentou enchentes, concorrência, ameaças de demolição e anos de crise econômica.

Os problemas agora são isolados. Vendedores reclamam da queda nas compras, garçons caminham apressados para atender pedidos. Quase a metade dos visitantes do Mercadão é de turistas, e boa parte passa por lá para comer (o setor é o favorito de 63% dos consumidores, segundo dados da São Paulo Turismo), cada vez menos pessoas compram. Basta olhar os corredores. Muita comida na mão e poucas sacolas no braço. “Depois da construção do mezanino em 2004, num primeiro momento, houve um aumento no volume de vendas que se estabilizou. Quem continuou avançando eram os comerciantes que vendiam produtos prontos”, explica Leandro Chiappetta, proprietário do Empório Chiappetta, que pertenceu a seu pai desde a inauguração do Mercadão.

De principal centro de abastecimento da cidade a um dos mais importante pontos turísticos de São Paulo, ao longo da vida, o Mercadão precisou se reinventar. Ainda mantém a aura e a nostalgia dos tempos em que imperava no fornecimento de produtos importados (de outros países e de outros Estados), enquanto convive com o crescimento das lanchonetes e a fama de “lugar pra comer”. Se no passado era quase que totalmente formado por distribuidores e comerciantes (o Bar do Mané era um dos poucos comércios de comidas prontas e atendia basicamente aos feirantes), atualmente, abriga nos seus 12.600 metros quadrados mais de 46 lanchonetes e pontos de venda de comida pronta, num total de 272 estabelecimentos.

Hegemonia em risco. Até os anos 60 o Mercadão reinou sem concorrência à altura, enfrentando problemas que iam de enchentes ou dificuldade de importação de produtos europeus, devido à Segunda Guerra Mundial. Ainda assim era o lugar certo a visitar quando o jantar precisava fugir do feijão e do arroz, o primeiro espaço de globalização da gastronomia da cidade. Comerciantes portugueses, espanhóis e italianos vendiam produtos de seus países de origem e feirantes montavam barracas ao redor do prédio com produtos frescos. Era ali que os chefs de São Paulo projetavam desejos e receitas, e visitavam constantemente seus corredores em busca de novidades. Vendedores de gravata, de balcões de mármore de Carrara para tratar peixes, de carroças circulando nas ruas principais do prédio, dos sacos e tonéis com produtos trazidos de fora do país. “O Mercado era famoso pelo bom manuseio de comida e pela variedade e qualidade de produtos”, disse Chiappetta.

“A gente tinha o Mercadão como referência”, contou José Alencar de Souza, chef do Santo Colomba, frequentador assíduo nos anos 70. Cozinheiros se encontravam nas bancas em busca de produtos especiais. “Pinoli, açafrão italiano e funghi porcini até se encontrava em outros lugares, mas lá estava tudo junto”. Alencar, atualmente vai ao Mercadão “só em caso de emergência por causa do preço, mas é um ponto de apoio excelente para chefs”, completou.

A fuga de chefs aconteceu em parte pela inauguração da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), em 1969, junto de mudanças dos hábitos de compra dos restaurantes, que passaram a receber mercadorias diretamente nas suas cozinhas, de fornecedores específicos. “A Ceagesp se mostrou um instrumento mais moderno para os novos tempos de consumo dos restaurantes e preencheu uma lacuna no crescimento da cidade”, explica o cozinheiro. “Mas nunca compensou o gostoso que o Mercadão tem. Lá você ia com uma lista de compras e voltava com outra”.

Além da migração de chefs, o comércio assistiu também a saída do público do dia a dia. Antônio Amaro, filho de feirantes do Mercadão e diretor do Instituto de Economia Agrícola nos anos 90, acredita em pelo menos três fatores para o esvaziamento do espaço, até a construção do mezanino e dos restaurantes. O desenvolvimento da agroindústria melhorou a qualidade dos produtos e reduziu a importância do feirante que selecionava as frutas e verduras, tornando possível fazer boas compras em outros locais; carência de facilidades como estacionamento e o novo perfil do Mercadão, conhecido como lugar para turista.

“Para entender o que é o Mercadão, é preciso compreender seu contexto socioeconômico”, analisa. “Por exemplo, muita barraca fechou aqui porque os filhos dos feirantes não quiseram seguir com a profissão dos pais e, como tiveram condições econômicas de estudar, preferiram seguir outras carreiras”.

A pressão econômica estimulou mudanças, e como a grama do vizinho é quase sempre mais verde, o sucesso das lanchonetes fez crescer a intenção de comerciantes de mudar para o ramo de comida. Gabriela Vianna, administradora do Mercadão há cinco anos, disse que atualmente há permissões negadas para quem pretende vender sanduíches ou pastéis. “A gente está estudando casos de quem apresentou cardápios diferentes”, disse. “O Mercadão preza pela diversidade”.

Entre mirtilos e pirarucus Heloisa Bacellar, do Lá da Venda, gosta de visitar mercados pelo mundo em suas viagens. “O Mercadão retrata bem o que é São Paulo. Tem a cozinha do Brasil e dos imigrantes”, diz. De pirarucu a mirtilo, a variedade dos produtos no Mercadão é imensa (não há dados sobre o número de produtos comercializados por lá, segundo a administração). “Quando penso nos outros mercados que conheço, vejo quanto o nosso é espetacular.” Pimentas para suas receitas, saem do Quiosque das Pimentas. Rua H, boxes 28 e 30.

Pergunte ao espanhol  Para indicar uma de suas bancas favoritas, Leo Botto, da Casa Nero, diz que é “perto da padaria, uma banca das antigas que vende embutidos espanhóis”. A tal banca das antigas é a Jamoneria, pequeno empório com vinhos, chorizo, presunto pata negra, morcilla e temperos para paella. “Quando comecei a cozinhar ou me entender como cozinheiro o Mercadão foi uma vitrine importantíssima na minha vida. Acho que ele tem essa função social de colocar as pessoas em contato com ingredientes de qualidade”, disse. Rua F, box 19

Frios fininhos Se falta um ingrediente no Bar da Dona Onça, Janaína Rueda dá um pulo no Mercadão. “Eu tenho meus fornecedores que não são necessariamente de lá, mas todas as vezes que não tem um peixe ou alguma outra coisa, corro lá e às vezes, encontro produtos melhores que os nossos.” Frios, ela compra os fatiados pela Dona Janete, cortados numa máquina de mais de 40 anos. “Os pedaços de presunto de parma saem inteiros e fininhos”. Rua D, box 13

Ela “ouve” os ingredientes Era nas madrugadas que a chef Bel Coelho visitava o Mercadão, comprando ingredientes no atacado. Apesar da nostalgia, é do varejo que ela gosta atualmente. “Quem passa por lá consegue saber um pouco sobre novidades de ingredientes, um pouco das frutas que vêm do Norte, dos peixes”, explica. “Fora que ele é inspirador e dá a dimensão do que as pessoas estão comendo em casa.” A banca do Ramon é um de seus lugares preferidos no mercado. “Ele tem bons fornecedores e preços razoáveis.” Rua H, boxes 21 e 23

Fama chega a Ilhabela Primeiro, Renata Vanzetto conheceu o mercadão pelos correios. Em encomendas enviadas por uma tia, a jovem chef conheceu frutas, embutidos e queijos comprados no Mercadão. Em visita a São Paulo, foi conhecer a fonte daquilo que chegava em caixas a Ilhabela, gostou o bastante para levar todos os estrangeiros que ela acompanha pela cidade. E foi para amigos também que ela comprou um leitão inteiro no Porco Feliz para um jantar de final de ano. “Lá é ótimo para carnes, tem muita variedade de caças.” Rua E, box 26

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No vai e vem diário de 15 mil pessoas, as vocações do lugar se confundem. “Sanduíche de mortadela, pastel e bolinho de bacalhau”, convida um garçom; “fruta hoje?”, oferece o feirante. De centro de distribuição de alimentos a point dos colossais sanduíches de mortadela, o Mercadão comemora 80 anos no dia em que São Paulo faz 459 verões – nesta sexta-feira, 25. Nessas oito décadas, o prédio projetado pelo escritório de arquitetura de Ramos de Azevedo para abrigar feirantes e comerciantes enfrentou enchentes, concorrência, ameaças de demolição e anos de crise econômica.

Os problemas agora são isolados. Vendedores reclamam da queda nas compras, garçons caminham apressados para atender pedidos. Quase a metade dos visitantes do Mercadão é de turistas, e boa parte passa por lá para comer (o setor é o favorito de 63% dos consumidores, segundo dados da São Paulo Turismo), cada vez menos pessoas compram. Basta olhar os corredores. Muita comida na mão e poucas sacolas no braço. “Depois da construção do mezanino em 2004, num primeiro momento, houve um aumento no volume de vendas que se estabilizou. Quem continuou avançando eram os comerciantes que vendiam produtos prontos”, explica Leandro Chiappetta, proprietário do Empório Chiappetta, que pertenceu a seu pai desde a inauguração do Mercadão.

De principal centro de abastecimento da cidade a um dos mais importante pontos turísticos de São Paulo, ao longo da vida, o Mercadão precisou se reinventar. Ainda mantém a aura e a nostalgia dos tempos em que imperava no fornecimento de produtos importados (de outros países e de outros Estados), enquanto convive com o crescimento das lanchonetes e a fama de “lugar pra comer”. Se no passado era quase que totalmente formado por distribuidores e comerciantes (o Bar do Mané era um dos poucos comércios de comidas prontas e atendia basicamente aos feirantes), atualmente, abriga nos seus 12.600 metros quadrados mais de 46 lanchonetes e pontos de venda de comida pronta, num total de 272 estabelecimentos.

Hegemonia em risco. Até os anos 60 o Mercadão reinou sem concorrência à altura, enfrentando problemas que iam de enchentes ou dificuldade de importação de produtos europeus, devido à Segunda Guerra Mundial. Ainda assim era o lugar certo a visitar quando o jantar precisava fugir do feijão e do arroz, o primeiro espaço de globalização da gastronomia da cidade. Comerciantes portugueses, espanhóis e italianos vendiam produtos de seus países de origem e feirantes montavam barracas ao redor do prédio com produtos frescos. Era ali que os chefs de São Paulo projetavam desejos e receitas, e visitavam constantemente seus corredores em busca de novidades. Vendedores de gravata, de balcões de mármore de Carrara para tratar peixes, de carroças circulando nas ruas principais do prédio, dos sacos e tonéis com produtos trazidos de fora do país. “O Mercado era famoso pelo bom manuseio de comida e pela variedade e qualidade de produtos”, disse Chiappetta.

“A gente tinha o Mercadão como referência”, contou José Alencar de Souza, chef do Santo Colomba, frequentador assíduo nos anos 70. Cozinheiros se encontravam nas bancas em busca de produtos especiais. “Pinoli, açafrão italiano e funghi porcini até se encontrava em outros lugares, mas lá estava tudo junto”. Alencar, atualmente vai ao Mercadão “só em caso de emergência por causa do preço, mas é um ponto de apoio excelente para chefs”, completou.

A fuga de chefs aconteceu em parte pela inauguração da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), em 1969, junto de mudanças dos hábitos de compra dos restaurantes, que passaram a receber mercadorias diretamente nas suas cozinhas, de fornecedores específicos. “A Ceagesp se mostrou um instrumento mais moderno para os novos tempos de consumo dos restaurantes e preencheu uma lacuna no crescimento da cidade”, explica o cozinheiro. “Mas nunca compensou o gostoso que o Mercadão tem. Lá você ia com uma lista de compras e voltava com outra”.

Além da migração de chefs, o comércio assistiu também a saída do público do dia a dia. Antônio Amaro, filho de feirantes do Mercadão e diretor do Instituto de Economia Agrícola nos anos 90, acredita em pelo menos três fatores para o esvaziamento do espaço, até a construção do mezanino e dos restaurantes. O desenvolvimento da agroindústria melhorou a qualidade dos produtos e reduziu a importância do feirante que selecionava as frutas e verduras, tornando possível fazer boas compras em outros locais; carência de facilidades como estacionamento e o novo perfil do Mercadão, conhecido como lugar para turista.

“Para entender o que é o Mercadão, é preciso compreender seu contexto socioeconômico”, analisa. “Por exemplo, muita barraca fechou aqui porque os filhos dos feirantes não quiseram seguir com a profissão dos pais e, como tiveram condições econômicas de estudar, preferiram seguir outras carreiras”.

A pressão econômica estimulou mudanças, e como a grama do vizinho é quase sempre mais verde, o sucesso das lanchonetes fez crescer a intenção de comerciantes de mudar para o ramo de comida. Gabriela Vianna, administradora do Mercadão há cinco anos, disse que atualmente há permissões negadas para quem pretende vender sanduíches ou pastéis. “A gente está estudando casos de quem apresentou cardápios diferentes”, disse. “O Mercadão preza pela diversidade”.

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Pergunte ao espanhol  Para indicar uma de suas bancas favoritas, Leo Botto, da Casa Nero, diz que é “perto da padaria, uma banca das antigas que vende embutidos espanhóis”. A tal banca das antigas é a Jamoneria, pequeno empório com vinhos, chorizo, presunto pata negra, morcilla e temperos para paella. “Quando comecei a cozinhar ou me entender como cozinheiro o Mercadão foi uma vitrine importantíssima na minha vida. Acho que ele tem essa função social de colocar as pessoas em contato com ingredientes de qualidade”, disse. Rua F, box 19

Frios fininhos Se falta um ingrediente no Bar da Dona Onça, Janaína Rueda dá um pulo no Mercadão. “Eu tenho meus fornecedores que não são necessariamente de lá, mas todas as vezes que não tem um peixe ou alguma outra coisa, corro lá e às vezes, encontro produtos melhores que os nossos.” Frios, ela compra os fatiados pela Dona Janete, cortados numa máquina de mais de 40 anos. “Os pedaços de presunto de parma saem inteiros e fininhos”. Rua D, box 13

Ela “ouve” os ingredientes Era nas madrugadas que a chef Bel Coelho visitava o Mercadão, comprando ingredientes no atacado. Apesar da nostalgia, é do varejo que ela gosta atualmente. “Quem passa por lá consegue saber um pouco sobre novidades de ingredientes, um pouco das frutas que vêm do Norte, dos peixes”, explica. “Fora que ele é inspirador e dá a dimensão do que as pessoas estão comendo em casa.” A banca do Ramon é um de seus lugares preferidos no mercado. “Ele tem bons fornecedores e preços razoáveis.” Rua H, boxes 21 e 23

Fama chega a Ilhabela Primeiro, Renata Vanzetto conheceu o mercadão pelos correios. Em encomendas enviadas por uma tia, a jovem chef conheceu frutas, embutidos e queijos comprados no Mercadão. Em visita a São Paulo, foi conhecer a fonte daquilo que chegava em caixas a Ilhabela, gostou o bastante para levar todos os estrangeiros que ela acompanha pela cidade. E foi para amigos também que ela comprou um leitão inteiro no Porco Feliz para um jantar de final de ano. “Lá é ótimo para carnes, tem muita variedade de caças.” Rua E, box 26

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