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A tributação sobre riqueza em tempos de coronavírus


Por Mauro Silva
Mauro Silva. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Relevantes empresários, a imprensa e políticos brasileiros de centro festejaram a eleição de Joe Biden à presidência da República dos Estados Unidos como um sopro de alívio sobre o populismo tóxico de Donald Trump que não apenas contaminava a sociedade norte-americana, como contagiava outros lugares do mundo. As lideranças políticas e empresariais hegemônicas do Brasil, que gostam de se comparar aos vizinhos do Norte e enaltecer seus valores liberais, passaram a vê-lo como exemplo a ser reproduzido por aqui. No campo tributário, não é de todo mau tê-lo como referência. Biden teve a coragem de tocar abertamente num assunto envolto em mitos e que é tabu entre a turma do andar de cima: a taxação das grandes riquezas.

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Mas o tema acerca da tributação sobre riquezas não é central apenas nos Estados Unidos. Vem sendo tratado em âmbito mundial como alternativa sensata e eficiente para fazer frente aos efeitos catastróficos acarretados pela pandemia da Covid-19, que afetou não apenas a saúde, mas a economia dos países, aprofundando o fosso das desigualdades sociais.

Alguns modelos já foram aplicados ou estão sendo considerados em outros países, os quais podem ser ajustados para a realidade do Brasil. No Reino Unido, por exemplo, um extenso estudo publicado recentemente pela Wealth Tax Commission[1] trata da possibilidade de instituição desse imposto, cujo debate estava no limbo, por quase cinquenta anos, coincidentemente com o triunfo do neoliberalismo da ex-primeira-ministra Margaret Thatcher.

O estudo concluiu que o modelo one-off - que incide o tributo uma única vez -, é economicamente eficiente, visto que, por se basear na riqueza determinada em um período passado, não distorce o comportamento dos contribuintes. O mesmo não ocorre com o imposto sobre rendas do trabalho, por exemplo, que reduzem o incentivo ao emprego. Sobre a questão de possível evasão do contribuinte, sobretudo a emigração para evitar ser tributado, o estudo sugere estender a avaliação acerca da residência do contribuinte para sete anos antes do ano fiscal em que foi instituído o tributo.

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O modelo proposto para o Reino Unido tem como justificativa não apenas a necessidade de contenção das consequências acarretadas pela crise da pandemia, mas também o fato de haver um aumento na riqueza e na concentração desta riqueza no país nesse período e por causa dela[2]. Em que pese a desigualdade social, o texto combate o argumento de que seria mais fácil e prático apenas manejar os tributos já existentes, sejam os que incidem com o retorno da renda ou com a transferência da renda.

Além do Reino Unido, países da América Latina tornaram concreta a proposta de um novo tributo para os contribuintes com maior capacidade contributiva. A Argentina aprovou em novembro de 2020 o "Aporte Solidario y Extraordinario para Ayudar a Morigerar los Efectos de la Pandemia"[3], e a Bolívia promulgou em dezembro do ano passado a lei que institui um imposto anual sobre riquezas acima de 30 milhões de bolivianos.[4]

O tributo argentino incidirá com alíquotas progressivas uma única vez sobre patrimônios acima de 200 milhões de pesos argentinos - aproximadamente R$ 12,2 milhões - e terá sua arrecadação destinada a diversos setores (como saúde, educação e micro e pequenas empresas), como forma de atenuar os efeitos da pandemia nestas áreas. No caso boliviano, o imposto tem como principal objetivo a redistribuição de riqueza no país, concentrada nas mãos dos 152 contribuintes mais ricos do país.

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No cenário nacional brasileiro, temos a seguinte situação: 5,1 milhões de pessoas viviam na extrema pobreza antes da pandemia. De acordo com as Nações Unidas, estimou-se que o ano de 2021 começaria com 7,9 milhões de pessoas nesta condição[5]. Contraditoriamente, a fortuna dos bilionários brasileiros cresceu em US$ 34 bilhões entre março e junho de 2020[6].

Mostra-se, portanto, razoável que os contribuintes com maior capacidade contributiva - e que, em sua maioria, tiveram aumento patrimonial, enquanto a grande massa da população sofre com os efeitos perversos da crise sanitária e econômica - contribuam com o país neste momento de forte recessão. É necessário que seja aprovado um Projeto de Lei Complementar que institua nova contribuição, incidente uma única vez, sobre a riqueza, tendo como objetivo primordial arrecadar recursos para a Saúde nesse cenário de terra arrasada.

O tributo alcançaria aproximadamente 200 mil contribuintes pessoas físicas, com renda mensal total a partir de 80 salários-mínimos e que detêm 30% dos bens e direitos declarados no imposto sobre a renda. Este número representa apenas 0,1% da população brasileira. As alíquotas progressivas e o limite de isenção de R$ 4,67 milhões são propostos com fundamento em extenso estudo publicado pela Unafisco Nacional[7]. Com base neste estudo, projeta-se uma arrecadação da contribuição de R$ 53,4 bilhões; se consideramos a sonegação fiscal, na ordem 27%[8], este valor ficaria em torno de R$ 38,9 bilhões.

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Antecipando a argumentos comumente colocados nas discussões sobre aumento da tributação de renda e patrimônio, é importante destacar que tal imposto sobre a camada mais rica da população não acarreta fuga de capitais. No artigo intitulado "Tax Flight Is a Myth. Higher State Taxes Bring More Revenue, Not More Migration"[9], os autores demonstram não haver qualquer relação entre o aumento de impostos e a migração de pessoas mais ricas para outras localidades, sendo esta ocasionada por outros fatores como melhores oportunidades de emprego e moradia, melhores estruturas de serviços públicos, entre outros.

Outro "mito", o de que a redução na tributação para os mais ricos acarreta efeitos positivos para toda a economia, foi igualmente derrubado em estudo recente publicado pela London School of Economics and Political Science[10], que analisou dezoito países da OCDE pelo período de 50 anos (1965-2015). Segundo as conclusões dos autores, a redução na tributação dos mais ricos aumenta a desigualdade de renda de forma substancial e não gera nenhum benefício à economia: não se verificou alterações significativas no PIB per capita e na redução de desemprego.

Joe Biden, os governos da Argentina e Bolívia e a Wealth Tax Commission iluminaram o caminho mais óbvio e sensato a tomar no cenário atual: tributar a riqueza de grandes contribuintes que pouco ou nada fizeram até agora para aplacar o desastre humanitário que assola os mais vulneráveis. Não há mais espaços para tergiversações, atalhos ou para as contínuas e inúteis renúncias fiscais sem contrapartida para o Estado, como apontado pelo estudo Privilegiômetro[11] da Unafisco. Se era por falta de bons exemplos a seguir para combater com eficiência a aguda crise fiscal e sanitária que a pandemia agravou, esse já não é mais o problema.

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*Mauro Silva é auditor fiscal da Receita Federal e presidente da Unafisco Nacional - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil

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[10] HOPE, David; LIMBERG, Julian. The economic consequences of major tax cuts for the rich. London School of Economics and Political Science. Londes, dez. 2020. Disponível em: . Acesso em 30 dez. 2020.

[11] http://www.privilegiometrotributario.org.br

Mauro Silva. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Relevantes empresários, a imprensa e políticos brasileiros de centro festejaram a eleição de Joe Biden à presidência da República dos Estados Unidos como um sopro de alívio sobre o populismo tóxico de Donald Trump que não apenas contaminava a sociedade norte-americana, como contagiava outros lugares do mundo. As lideranças políticas e empresariais hegemônicas do Brasil, que gostam de se comparar aos vizinhos do Norte e enaltecer seus valores liberais, passaram a vê-lo como exemplo a ser reproduzido por aqui. No campo tributário, não é de todo mau tê-lo como referência. Biden teve a coragem de tocar abertamente num assunto envolto em mitos e que é tabu entre a turma do andar de cima: a taxação das grandes riquezas.

Mas o tema acerca da tributação sobre riquezas não é central apenas nos Estados Unidos. Vem sendo tratado em âmbito mundial como alternativa sensata e eficiente para fazer frente aos efeitos catastróficos acarretados pela pandemia da Covid-19, que afetou não apenas a saúde, mas a economia dos países, aprofundando o fosso das desigualdades sociais.

Alguns modelos já foram aplicados ou estão sendo considerados em outros países, os quais podem ser ajustados para a realidade do Brasil. No Reino Unido, por exemplo, um extenso estudo publicado recentemente pela Wealth Tax Commission[1] trata da possibilidade de instituição desse imposto, cujo debate estava no limbo, por quase cinquenta anos, coincidentemente com o triunfo do neoliberalismo da ex-primeira-ministra Margaret Thatcher.

O estudo concluiu que o modelo one-off - que incide o tributo uma única vez -, é economicamente eficiente, visto que, por se basear na riqueza determinada em um período passado, não distorce o comportamento dos contribuintes. O mesmo não ocorre com o imposto sobre rendas do trabalho, por exemplo, que reduzem o incentivo ao emprego. Sobre a questão de possível evasão do contribuinte, sobretudo a emigração para evitar ser tributado, o estudo sugere estender a avaliação acerca da residência do contribuinte para sete anos antes do ano fiscal em que foi instituído o tributo.

O modelo proposto para o Reino Unido tem como justificativa não apenas a necessidade de contenção das consequências acarretadas pela crise da pandemia, mas também o fato de haver um aumento na riqueza e na concentração desta riqueza no país nesse período e por causa dela[2]. Em que pese a desigualdade social, o texto combate o argumento de que seria mais fácil e prático apenas manejar os tributos já existentes, sejam os que incidem com o retorno da renda ou com a transferência da renda.

Além do Reino Unido, países da América Latina tornaram concreta a proposta de um novo tributo para os contribuintes com maior capacidade contributiva. A Argentina aprovou em novembro de 2020 o "Aporte Solidario y Extraordinario para Ayudar a Morigerar los Efectos de la Pandemia"[3], e a Bolívia promulgou em dezembro do ano passado a lei que institui um imposto anual sobre riquezas acima de 30 milhões de bolivianos.[4]

O tributo argentino incidirá com alíquotas progressivas uma única vez sobre patrimônios acima de 200 milhões de pesos argentinos - aproximadamente R$ 12,2 milhões - e terá sua arrecadação destinada a diversos setores (como saúde, educação e micro e pequenas empresas), como forma de atenuar os efeitos da pandemia nestas áreas. No caso boliviano, o imposto tem como principal objetivo a redistribuição de riqueza no país, concentrada nas mãos dos 152 contribuintes mais ricos do país.

No cenário nacional brasileiro, temos a seguinte situação: 5,1 milhões de pessoas viviam na extrema pobreza antes da pandemia. De acordo com as Nações Unidas, estimou-se que o ano de 2021 começaria com 7,9 milhões de pessoas nesta condição[5]. Contraditoriamente, a fortuna dos bilionários brasileiros cresceu em US$ 34 bilhões entre março e junho de 2020[6].

Mostra-se, portanto, razoável que os contribuintes com maior capacidade contributiva - e que, em sua maioria, tiveram aumento patrimonial, enquanto a grande massa da população sofre com os efeitos perversos da crise sanitária e econômica - contribuam com o país neste momento de forte recessão. É necessário que seja aprovado um Projeto de Lei Complementar que institua nova contribuição, incidente uma única vez, sobre a riqueza, tendo como objetivo primordial arrecadar recursos para a Saúde nesse cenário de terra arrasada.

O tributo alcançaria aproximadamente 200 mil contribuintes pessoas físicas, com renda mensal total a partir de 80 salários-mínimos e que detêm 30% dos bens e direitos declarados no imposto sobre a renda. Este número representa apenas 0,1% da população brasileira. As alíquotas progressivas e o limite de isenção de R$ 4,67 milhões são propostos com fundamento em extenso estudo publicado pela Unafisco Nacional[7]. Com base neste estudo, projeta-se uma arrecadação da contribuição de R$ 53,4 bilhões; se consideramos a sonegação fiscal, na ordem 27%[8], este valor ficaria em torno de R$ 38,9 bilhões.

Antecipando a argumentos comumente colocados nas discussões sobre aumento da tributação de renda e patrimônio, é importante destacar que tal imposto sobre a camada mais rica da população não acarreta fuga de capitais. No artigo intitulado "Tax Flight Is a Myth. Higher State Taxes Bring More Revenue, Not More Migration"[9], os autores demonstram não haver qualquer relação entre o aumento de impostos e a migração de pessoas mais ricas para outras localidades, sendo esta ocasionada por outros fatores como melhores oportunidades de emprego e moradia, melhores estruturas de serviços públicos, entre outros.

Outro "mito", o de que a redução na tributação para os mais ricos acarreta efeitos positivos para toda a economia, foi igualmente derrubado em estudo recente publicado pela London School of Economics and Political Science[10], que analisou dezoito países da OCDE pelo período de 50 anos (1965-2015). Segundo as conclusões dos autores, a redução na tributação dos mais ricos aumenta a desigualdade de renda de forma substancial e não gera nenhum benefício à economia: não se verificou alterações significativas no PIB per capita e na redução de desemprego.

Joe Biden, os governos da Argentina e Bolívia e a Wealth Tax Commission iluminaram o caminho mais óbvio e sensato a tomar no cenário atual: tributar a riqueza de grandes contribuintes que pouco ou nada fizeram até agora para aplacar o desastre humanitário que assola os mais vulneráveis. Não há mais espaços para tergiversações, atalhos ou para as contínuas e inúteis renúncias fiscais sem contrapartida para o Estado, como apontado pelo estudo Privilegiômetro[11] da Unafisco. Se era por falta de bons exemplos a seguir para combater com eficiência a aguda crise fiscal e sanitária que a pandemia agravou, esse já não é mais o problema.

*Mauro Silva é auditor fiscal da Receita Federal e presidente da Unafisco Nacional - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil

[10] HOPE, David; LIMBERG, Julian. The economic consequences of major tax cuts for the rich. London School of Economics and Political Science. Londes, dez. 2020. Disponível em: . Acesso em 30 dez. 2020.

[11] http://www.privilegiometrotributario.org.br

Mauro Silva. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Relevantes empresários, a imprensa e políticos brasileiros de centro festejaram a eleição de Joe Biden à presidência da República dos Estados Unidos como um sopro de alívio sobre o populismo tóxico de Donald Trump que não apenas contaminava a sociedade norte-americana, como contagiava outros lugares do mundo. As lideranças políticas e empresariais hegemônicas do Brasil, que gostam de se comparar aos vizinhos do Norte e enaltecer seus valores liberais, passaram a vê-lo como exemplo a ser reproduzido por aqui. No campo tributário, não é de todo mau tê-lo como referência. Biden teve a coragem de tocar abertamente num assunto envolto em mitos e que é tabu entre a turma do andar de cima: a taxação das grandes riquezas.

Mas o tema acerca da tributação sobre riquezas não é central apenas nos Estados Unidos. Vem sendo tratado em âmbito mundial como alternativa sensata e eficiente para fazer frente aos efeitos catastróficos acarretados pela pandemia da Covid-19, que afetou não apenas a saúde, mas a economia dos países, aprofundando o fosso das desigualdades sociais.

Alguns modelos já foram aplicados ou estão sendo considerados em outros países, os quais podem ser ajustados para a realidade do Brasil. No Reino Unido, por exemplo, um extenso estudo publicado recentemente pela Wealth Tax Commission[1] trata da possibilidade de instituição desse imposto, cujo debate estava no limbo, por quase cinquenta anos, coincidentemente com o triunfo do neoliberalismo da ex-primeira-ministra Margaret Thatcher.

O estudo concluiu que o modelo one-off - que incide o tributo uma única vez -, é economicamente eficiente, visto que, por se basear na riqueza determinada em um período passado, não distorce o comportamento dos contribuintes. O mesmo não ocorre com o imposto sobre rendas do trabalho, por exemplo, que reduzem o incentivo ao emprego. Sobre a questão de possível evasão do contribuinte, sobretudo a emigração para evitar ser tributado, o estudo sugere estender a avaliação acerca da residência do contribuinte para sete anos antes do ano fiscal em que foi instituído o tributo.

O modelo proposto para o Reino Unido tem como justificativa não apenas a necessidade de contenção das consequências acarretadas pela crise da pandemia, mas também o fato de haver um aumento na riqueza e na concentração desta riqueza no país nesse período e por causa dela[2]. Em que pese a desigualdade social, o texto combate o argumento de que seria mais fácil e prático apenas manejar os tributos já existentes, sejam os que incidem com o retorno da renda ou com a transferência da renda.

Além do Reino Unido, países da América Latina tornaram concreta a proposta de um novo tributo para os contribuintes com maior capacidade contributiva. A Argentina aprovou em novembro de 2020 o "Aporte Solidario y Extraordinario para Ayudar a Morigerar los Efectos de la Pandemia"[3], e a Bolívia promulgou em dezembro do ano passado a lei que institui um imposto anual sobre riquezas acima de 30 milhões de bolivianos.[4]

O tributo argentino incidirá com alíquotas progressivas uma única vez sobre patrimônios acima de 200 milhões de pesos argentinos - aproximadamente R$ 12,2 milhões - e terá sua arrecadação destinada a diversos setores (como saúde, educação e micro e pequenas empresas), como forma de atenuar os efeitos da pandemia nestas áreas. No caso boliviano, o imposto tem como principal objetivo a redistribuição de riqueza no país, concentrada nas mãos dos 152 contribuintes mais ricos do país.

No cenário nacional brasileiro, temos a seguinte situação: 5,1 milhões de pessoas viviam na extrema pobreza antes da pandemia. De acordo com as Nações Unidas, estimou-se que o ano de 2021 começaria com 7,9 milhões de pessoas nesta condição[5]. Contraditoriamente, a fortuna dos bilionários brasileiros cresceu em US$ 34 bilhões entre março e junho de 2020[6].

Mostra-se, portanto, razoável que os contribuintes com maior capacidade contributiva - e que, em sua maioria, tiveram aumento patrimonial, enquanto a grande massa da população sofre com os efeitos perversos da crise sanitária e econômica - contribuam com o país neste momento de forte recessão. É necessário que seja aprovado um Projeto de Lei Complementar que institua nova contribuição, incidente uma única vez, sobre a riqueza, tendo como objetivo primordial arrecadar recursos para a Saúde nesse cenário de terra arrasada.

O tributo alcançaria aproximadamente 200 mil contribuintes pessoas físicas, com renda mensal total a partir de 80 salários-mínimos e que detêm 30% dos bens e direitos declarados no imposto sobre a renda. Este número representa apenas 0,1% da população brasileira. As alíquotas progressivas e o limite de isenção de R$ 4,67 milhões são propostos com fundamento em extenso estudo publicado pela Unafisco Nacional[7]. Com base neste estudo, projeta-se uma arrecadação da contribuição de R$ 53,4 bilhões; se consideramos a sonegação fiscal, na ordem 27%[8], este valor ficaria em torno de R$ 38,9 bilhões.

Antecipando a argumentos comumente colocados nas discussões sobre aumento da tributação de renda e patrimônio, é importante destacar que tal imposto sobre a camada mais rica da população não acarreta fuga de capitais. No artigo intitulado "Tax Flight Is a Myth. Higher State Taxes Bring More Revenue, Not More Migration"[9], os autores demonstram não haver qualquer relação entre o aumento de impostos e a migração de pessoas mais ricas para outras localidades, sendo esta ocasionada por outros fatores como melhores oportunidades de emprego e moradia, melhores estruturas de serviços públicos, entre outros.

Outro "mito", o de que a redução na tributação para os mais ricos acarreta efeitos positivos para toda a economia, foi igualmente derrubado em estudo recente publicado pela London School of Economics and Political Science[10], que analisou dezoito países da OCDE pelo período de 50 anos (1965-2015). Segundo as conclusões dos autores, a redução na tributação dos mais ricos aumenta a desigualdade de renda de forma substancial e não gera nenhum benefício à economia: não se verificou alterações significativas no PIB per capita e na redução de desemprego.

Joe Biden, os governos da Argentina e Bolívia e a Wealth Tax Commission iluminaram o caminho mais óbvio e sensato a tomar no cenário atual: tributar a riqueza de grandes contribuintes que pouco ou nada fizeram até agora para aplacar o desastre humanitário que assola os mais vulneráveis. Não há mais espaços para tergiversações, atalhos ou para as contínuas e inúteis renúncias fiscais sem contrapartida para o Estado, como apontado pelo estudo Privilegiômetro[11] da Unafisco. Se era por falta de bons exemplos a seguir para combater com eficiência a aguda crise fiscal e sanitária que a pandemia agravou, esse já não é mais o problema.

*Mauro Silva é auditor fiscal da Receita Federal e presidente da Unafisco Nacional - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil

[10] HOPE, David; LIMBERG, Julian. The economic consequences of major tax cuts for the rich. London School of Economics and Political Science. Londes, dez. 2020. Disponível em: . Acesso em 30 dez. 2020.

[11] http://www.privilegiometrotributario.org.br

Mauro Silva. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Relevantes empresários, a imprensa e políticos brasileiros de centro festejaram a eleição de Joe Biden à presidência da República dos Estados Unidos como um sopro de alívio sobre o populismo tóxico de Donald Trump que não apenas contaminava a sociedade norte-americana, como contagiava outros lugares do mundo. As lideranças políticas e empresariais hegemônicas do Brasil, que gostam de se comparar aos vizinhos do Norte e enaltecer seus valores liberais, passaram a vê-lo como exemplo a ser reproduzido por aqui. No campo tributário, não é de todo mau tê-lo como referência. Biden teve a coragem de tocar abertamente num assunto envolto em mitos e que é tabu entre a turma do andar de cima: a taxação das grandes riquezas.

Mas o tema acerca da tributação sobre riquezas não é central apenas nos Estados Unidos. Vem sendo tratado em âmbito mundial como alternativa sensata e eficiente para fazer frente aos efeitos catastróficos acarretados pela pandemia da Covid-19, que afetou não apenas a saúde, mas a economia dos países, aprofundando o fosso das desigualdades sociais.

Alguns modelos já foram aplicados ou estão sendo considerados em outros países, os quais podem ser ajustados para a realidade do Brasil. No Reino Unido, por exemplo, um extenso estudo publicado recentemente pela Wealth Tax Commission[1] trata da possibilidade de instituição desse imposto, cujo debate estava no limbo, por quase cinquenta anos, coincidentemente com o triunfo do neoliberalismo da ex-primeira-ministra Margaret Thatcher.

O estudo concluiu que o modelo one-off - que incide o tributo uma única vez -, é economicamente eficiente, visto que, por se basear na riqueza determinada em um período passado, não distorce o comportamento dos contribuintes. O mesmo não ocorre com o imposto sobre rendas do trabalho, por exemplo, que reduzem o incentivo ao emprego. Sobre a questão de possível evasão do contribuinte, sobretudo a emigração para evitar ser tributado, o estudo sugere estender a avaliação acerca da residência do contribuinte para sete anos antes do ano fiscal em que foi instituído o tributo.

O modelo proposto para o Reino Unido tem como justificativa não apenas a necessidade de contenção das consequências acarretadas pela crise da pandemia, mas também o fato de haver um aumento na riqueza e na concentração desta riqueza no país nesse período e por causa dela[2]. Em que pese a desigualdade social, o texto combate o argumento de que seria mais fácil e prático apenas manejar os tributos já existentes, sejam os que incidem com o retorno da renda ou com a transferência da renda.

Além do Reino Unido, países da América Latina tornaram concreta a proposta de um novo tributo para os contribuintes com maior capacidade contributiva. A Argentina aprovou em novembro de 2020 o "Aporte Solidario y Extraordinario para Ayudar a Morigerar los Efectos de la Pandemia"[3], e a Bolívia promulgou em dezembro do ano passado a lei que institui um imposto anual sobre riquezas acima de 30 milhões de bolivianos.[4]

O tributo argentino incidirá com alíquotas progressivas uma única vez sobre patrimônios acima de 200 milhões de pesos argentinos - aproximadamente R$ 12,2 milhões - e terá sua arrecadação destinada a diversos setores (como saúde, educação e micro e pequenas empresas), como forma de atenuar os efeitos da pandemia nestas áreas. No caso boliviano, o imposto tem como principal objetivo a redistribuição de riqueza no país, concentrada nas mãos dos 152 contribuintes mais ricos do país.

No cenário nacional brasileiro, temos a seguinte situação: 5,1 milhões de pessoas viviam na extrema pobreza antes da pandemia. De acordo com as Nações Unidas, estimou-se que o ano de 2021 começaria com 7,9 milhões de pessoas nesta condição[5]. Contraditoriamente, a fortuna dos bilionários brasileiros cresceu em US$ 34 bilhões entre março e junho de 2020[6].

Mostra-se, portanto, razoável que os contribuintes com maior capacidade contributiva - e que, em sua maioria, tiveram aumento patrimonial, enquanto a grande massa da população sofre com os efeitos perversos da crise sanitária e econômica - contribuam com o país neste momento de forte recessão. É necessário que seja aprovado um Projeto de Lei Complementar que institua nova contribuição, incidente uma única vez, sobre a riqueza, tendo como objetivo primordial arrecadar recursos para a Saúde nesse cenário de terra arrasada.

O tributo alcançaria aproximadamente 200 mil contribuintes pessoas físicas, com renda mensal total a partir de 80 salários-mínimos e que detêm 30% dos bens e direitos declarados no imposto sobre a renda. Este número representa apenas 0,1% da população brasileira. As alíquotas progressivas e o limite de isenção de R$ 4,67 milhões são propostos com fundamento em extenso estudo publicado pela Unafisco Nacional[7]. Com base neste estudo, projeta-se uma arrecadação da contribuição de R$ 53,4 bilhões; se consideramos a sonegação fiscal, na ordem 27%[8], este valor ficaria em torno de R$ 38,9 bilhões.

Antecipando a argumentos comumente colocados nas discussões sobre aumento da tributação de renda e patrimônio, é importante destacar que tal imposto sobre a camada mais rica da população não acarreta fuga de capitais. No artigo intitulado "Tax Flight Is a Myth. Higher State Taxes Bring More Revenue, Not More Migration"[9], os autores demonstram não haver qualquer relação entre o aumento de impostos e a migração de pessoas mais ricas para outras localidades, sendo esta ocasionada por outros fatores como melhores oportunidades de emprego e moradia, melhores estruturas de serviços públicos, entre outros.

Outro "mito", o de que a redução na tributação para os mais ricos acarreta efeitos positivos para toda a economia, foi igualmente derrubado em estudo recente publicado pela London School of Economics and Political Science[10], que analisou dezoito países da OCDE pelo período de 50 anos (1965-2015). Segundo as conclusões dos autores, a redução na tributação dos mais ricos aumenta a desigualdade de renda de forma substancial e não gera nenhum benefício à economia: não se verificou alterações significativas no PIB per capita e na redução de desemprego.

Joe Biden, os governos da Argentina e Bolívia e a Wealth Tax Commission iluminaram o caminho mais óbvio e sensato a tomar no cenário atual: tributar a riqueza de grandes contribuintes que pouco ou nada fizeram até agora para aplacar o desastre humanitário que assola os mais vulneráveis. Não há mais espaços para tergiversações, atalhos ou para as contínuas e inúteis renúncias fiscais sem contrapartida para o Estado, como apontado pelo estudo Privilegiômetro[11] da Unafisco. Se era por falta de bons exemplos a seguir para combater com eficiência a aguda crise fiscal e sanitária que a pandemia agravou, esse já não é mais o problema.

*Mauro Silva é auditor fiscal da Receita Federal e presidente da Unafisco Nacional - Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil

[10] HOPE, David; LIMBERG, Julian. The economic consequences of major tax cuts for the rich. London School of Economics and Political Science. Londes, dez. 2020. Disponível em: . Acesso em 30 dez. 2020.

[11] http://www.privilegiometrotributario.org.br

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