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Antimonumento: passados sensíveis, memórias traumáticas


Por Ricardo Oriá
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Ainda não terminou este fatídico ano, mas já podemos dizer que nunca as disputas de memória estiveram tão presentes no debate público, nos meios de comunicação, nas diversas redes sociais e plataformas digitais. O vídeo, com as imagens da derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston pelos manifestantes, que protestavam contra o racismo, na cidade de Bristol, Inglaterra, "viralizou" na internet. A essa manifestação, seguiram-se outras em diversos países contestando a presença de monumentos que evocam personagens relacionadas ao colonialismo e à escravidão.

Sempre existiu, desde a mais remota Antiguidade, o interesse em edificar monumentos por parte das diferentes sociedades. No entanto, esse processo se intensifica a partir da segunda metade do século XIX, momento de afirmação do estado nacional. Neste sentido, a construção de monumentos cívicos e históricos foi uma constante no século XIX, na medida em que a construção da identidade nacional exigia a evocação do passado histórico, pautado nos feitos e fatos protagonizados pelos "heróis" e "filhos ilustres" da nação. Surgia, segundo o historiador Maurice Agulhon, o fenômeno social da estatuamania, ou seja, o desenvolvimento da escultura em praças públicas a serviço da cultura cívica.

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O século XIX na França foi marcado pela construção de inúmeros monumentos, cujo objetivo maior era o fortalecimento do Estado-nação através do culto cívico aos heróis da nacionalidade, seja na representação de uma estátua equestre, busto ou herma, seja na construção de obeliscos e arcos do triunfo em comemoração a efemérides. Tal postura também foi seguida por outros países ocidentais, a exemplo do Brasil que teve, em comemoração aos quarenta anos de sua independência (1862), a inauguração de nosso primeiro monumento histórico. Estamos nos referindo à estátua equestre do imperador D. Pedro I, no Rio de Janeiro. Pretendia-se, pois, através da edificação de estátuas e monumentos, construir a "memória da nação", onde eram selecionados os personagens e fatos dignos de registro à posteridade, que serviriam de instrumento de legitimação ao estado nacional e ao desenvolvimento de uma consciência cívico-patriótica da população.

O fim da 2ª Guerra Mundial (1939-1945) e a constatação do genocídio praticado pelo nazismo, perpetrado contra os judeus e outras minorias sociais, provocou uma mudança de paradigma na construção de monumentos e na escultura pública presente nas cidades. Eis que surge a ideia de antimonumento, para se contrapor aos monumentos celebrativos que exaltavam vultos, fatos e efemérides. O monumento enaltecedor da figura ao herói nacional é substituído por uma escultura que se pretende instrumento não mais de glória ou exaltação de personalidades, mas à denúncia a alguma arbitrariedade cometida pelo Estado a determinados segmentos da sociedade.

Segundo o crítico literário Márcio Seligmann, o antimonumento serve como instrumento de contestação à violência do Estado, perpetrada durante os regimes de exceção e em genocídios. Houve, também, segundo ele, uma mudança na representação dos monumentos e uma nova postura estética na apresentação da arte pública. Abandonou-se o uso de materiais pesados como pedra, granito, bronze ou mármore e optou-se por outros mais leves e menos nobres. O antimonumento aposta muito mais na força das palavras e dos gestos do que no poder das representações bélicas e monumentais, tais como estátuas equestres (geralmente militares e chefes de estado empunhando espadas ou ao lado de armas), arcos do triunfo, obeliscos, altar da pátria, etc.

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A renovação da historiografia que passou a analisar determinados fatos, considerados "passados sensíveis" tais como o genocídio indígena nas Américas, a escravidão negra, o holocausto, entre outros, contribuiu para essa mudança de paradigma na estatuária pública dos centros urbanos. Esses "passados sensíveis" trazem também a lembrança do trauma e da morte e, portanto, muitos antimonumentos acabam por ter um caráter fúnebre. Na verdade, o antimonumento corresponde à narrativa visual de passados sensíveis e memórias traumáticas. Além de serem "lugares de memória", na célebre acepção de Pierre Nora, eles expressam o desejo de recordar de modo ativo o passado doloroso e possuem um aspecto pedagógico, que pode ser sintetizado nas palavras de ordem: Lembrar para não esquecer! Para que nunca mais aconteça!

No Brasil, por conta do regime de exceção recente (1964-1985), iremos encontrar alguns exemplos de antimonumentos, que foram construídos como resposta às arbitrariedades e violações aos direitos humanos. Um dos primeiros deles foi erigido em Recife-PE, em 1993 e tem como título Monumento Tortura Nunca Mais. Retrata a imagem de um homem sendo violentado com um tipo de tortura muito praticado à época e conhecido como "pau-de-arara". Nas imediações dele, há placas no chão, que lembram lápides, com fotos, data de nascimento e falecimento de desaparecidos e mortos pelo regime civil-militar.

No tempo presente, em meio aos discursos de negacionismo histórico por parte do atual governo federal, os antimonumentos se revestem de uma importância capital. Eles servem para mostrar e denunciar que houve um período de nossa história, marcado pela censura, repressão, tortura, mortes e desaparecimentos políticos. Na verdade, o passado é sempre alvo de disputas simbólicas por parte de diferentes segmentos da sociedade. E essa questão se materializa na contestação e até mesmo na derrubada de monumentos e no que deve ou não ser preservado como "memória nacional".

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Como tão bem afirmou a historiadora Régine Robin, "O passado não é livre. Nenhuma sociedade deixa à mercê da própria sorte. Ele é regido, gerido, preservado, explicado, contado, comemorado ou odiado. Quer seja celebrado ou ocultado, permanece uma questão fundamental do presente".

*Ricardo Oriá, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), consultor legislativo da área de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados. É autor de artigos sobre patrimônio cultural e museus e do livro O Brasil contado às crianças: Viriato Corrêa e a literatura escolar brasileira (E. Annablume, 2011)

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Ainda não terminou este fatídico ano, mas já podemos dizer que nunca as disputas de memória estiveram tão presentes no debate público, nos meios de comunicação, nas diversas redes sociais e plataformas digitais. O vídeo, com as imagens da derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston pelos manifestantes, que protestavam contra o racismo, na cidade de Bristol, Inglaterra, "viralizou" na internet. A essa manifestação, seguiram-se outras em diversos países contestando a presença de monumentos que evocam personagens relacionadas ao colonialismo e à escravidão.

Sempre existiu, desde a mais remota Antiguidade, o interesse em edificar monumentos por parte das diferentes sociedades. No entanto, esse processo se intensifica a partir da segunda metade do século XIX, momento de afirmação do estado nacional. Neste sentido, a construção de monumentos cívicos e históricos foi uma constante no século XIX, na medida em que a construção da identidade nacional exigia a evocação do passado histórico, pautado nos feitos e fatos protagonizados pelos "heróis" e "filhos ilustres" da nação. Surgia, segundo o historiador Maurice Agulhon, o fenômeno social da estatuamania, ou seja, o desenvolvimento da escultura em praças públicas a serviço da cultura cívica.

O século XIX na França foi marcado pela construção de inúmeros monumentos, cujo objetivo maior era o fortalecimento do Estado-nação através do culto cívico aos heróis da nacionalidade, seja na representação de uma estátua equestre, busto ou herma, seja na construção de obeliscos e arcos do triunfo em comemoração a efemérides. Tal postura também foi seguida por outros países ocidentais, a exemplo do Brasil que teve, em comemoração aos quarenta anos de sua independência (1862), a inauguração de nosso primeiro monumento histórico. Estamos nos referindo à estátua equestre do imperador D. Pedro I, no Rio de Janeiro. Pretendia-se, pois, através da edificação de estátuas e monumentos, construir a "memória da nação", onde eram selecionados os personagens e fatos dignos de registro à posteridade, que serviriam de instrumento de legitimação ao estado nacional e ao desenvolvimento de uma consciência cívico-patriótica da população.

O fim da 2ª Guerra Mundial (1939-1945) e a constatação do genocídio praticado pelo nazismo, perpetrado contra os judeus e outras minorias sociais, provocou uma mudança de paradigma na construção de monumentos e na escultura pública presente nas cidades. Eis que surge a ideia de antimonumento, para se contrapor aos monumentos celebrativos que exaltavam vultos, fatos e efemérides. O monumento enaltecedor da figura ao herói nacional é substituído por uma escultura que se pretende instrumento não mais de glória ou exaltação de personalidades, mas à denúncia a alguma arbitrariedade cometida pelo Estado a determinados segmentos da sociedade.

Segundo o crítico literário Márcio Seligmann, o antimonumento serve como instrumento de contestação à violência do Estado, perpetrada durante os regimes de exceção e em genocídios. Houve, também, segundo ele, uma mudança na representação dos monumentos e uma nova postura estética na apresentação da arte pública. Abandonou-se o uso de materiais pesados como pedra, granito, bronze ou mármore e optou-se por outros mais leves e menos nobres. O antimonumento aposta muito mais na força das palavras e dos gestos do que no poder das representações bélicas e monumentais, tais como estátuas equestres (geralmente militares e chefes de estado empunhando espadas ou ao lado de armas), arcos do triunfo, obeliscos, altar da pátria, etc.

A renovação da historiografia que passou a analisar determinados fatos, considerados "passados sensíveis" tais como o genocídio indígena nas Américas, a escravidão negra, o holocausto, entre outros, contribuiu para essa mudança de paradigma na estatuária pública dos centros urbanos. Esses "passados sensíveis" trazem também a lembrança do trauma e da morte e, portanto, muitos antimonumentos acabam por ter um caráter fúnebre. Na verdade, o antimonumento corresponde à narrativa visual de passados sensíveis e memórias traumáticas. Além de serem "lugares de memória", na célebre acepção de Pierre Nora, eles expressam o desejo de recordar de modo ativo o passado doloroso e possuem um aspecto pedagógico, que pode ser sintetizado nas palavras de ordem: Lembrar para não esquecer! Para que nunca mais aconteça!

No Brasil, por conta do regime de exceção recente (1964-1985), iremos encontrar alguns exemplos de antimonumentos, que foram construídos como resposta às arbitrariedades e violações aos direitos humanos. Um dos primeiros deles foi erigido em Recife-PE, em 1993 e tem como título Monumento Tortura Nunca Mais. Retrata a imagem de um homem sendo violentado com um tipo de tortura muito praticado à época e conhecido como "pau-de-arara". Nas imediações dele, há placas no chão, que lembram lápides, com fotos, data de nascimento e falecimento de desaparecidos e mortos pelo regime civil-militar.

No tempo presente, em meio aos discursos de negacionismo histórico por parte do atual governo federal, os antimonumentos se revestem de uma importância capital. Eles servem para mostrar e denunciar que houve um período de nossa história, marcado pela censura, repressão, tortura, mortes e desaparecimentos políticos. Na verdade, o passado é sempre alvo de disputas simbólicas por parte de diferentes segmentos da sociedade. E essa questão se materializa na contestação e até mesmo na derrubada de monumentos e no que deve ou não ser preservado como "memória nacional".

Como tão bem afirmou a historiadora Régine Robin, "O passado não é livre. Nenhuma sociedade deixa à mercê da própria sorte. Ele é regido, gerido, preservado, explicado, contado, comemorado ou odiado. Quer seja celebrado ou ocultado, permanece uma questão fundamental do presente".

*Ricardo Oriá, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), consultor legislativo da área de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados. É autor de artigos sobre patrimônio cultural e museus e do livro O Brasil contado às crianças: Viriato Corrêa e a literatura escolar brasileira (E. Annablume, 2011)

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Ainda não terminou este fatídico ano, mas já podemos dizer que nunca as disputas de memória estiveram tão presentes no debate público, nos meios de comunicação, nas diversas redes sociais e plataformas digitais. O vídeo, com as imagens da derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston pelos manifestantes, que protestavam contra o racismo, na cidade de Bristol, Inglaterra, "viralizou" na internet. A essa manifestação, seguiram-se outras em diversos países contestando a presença de monumentos que evocam personagens relacionadas ao colonialismo e à escravidão.

Sempre existiu, desde a mais remota Antiguidade, o interesse em edificar monumentos por parte das diferentes sociedades. No entanto, esse processo se intensifica a partir da segunda metade do século XIX, momento de afirmação do estado nacional. Neste sentido, a construção de monumentos cívicos e históricos foi uma constante no século XIX, na medida em que a construção da identidade nacional exigia a evocação do passado histórico, pautado nos feitos e fatos protagonizados pelos "heróis" e "filhos ilustres" da nação. Surgia, segundo o historiador Maurice Agulhon, o fenômeno social da estatuamania, ou seja, o desenvolvimento da escultura em praças públicas a serviço da cultura cívica.

O século XIX na França foi marcado pela construção de inúmeros monumentos, cujo objetivo maior era o fortalecimento do Estado-nação através do culto cívico aos heróis da nacionalidade, seja na representação de uma estátua equestre, busto ou herma, seja na construção de obeliscos e arcos do triunfo em comemoração a efemérides. Tal postura também foi seguida por outros países ocidentais, a exemplo do Brasil que teve, em comemoração aos quarenta anos de sua independência (1862), a inauguração de nosso primeiro monumento histórico. Estamos nos referindo à estátua equestre do imperador D. Pedro I, no Rio de Janeiro. Pretendia-se, pois, através da edificação de estátuas e monumentos, construir a "memória da nação", onde eram selecionados os personagens e fatos dignos de registro à posteridade, que serviriam de instrumento de legitimação ao estado nacional e ao desenvolvimento de uma consciência cívico-patriótica da população.

O fim da 2ª Guerra Mundial (1939-1945) e a constatação do genocídio praticado pelo nazismo, perpetrado contra os judeus e outras minorias sociais, provocou uma mudança de paradigma na construção de monumentos e na escultura pública presente nas cidades. Eis que surge a ideia de antimonumento, para se contrapor aos monumentos celebrativos que exaltavam vultos, fatos e efemérides. O monumento enaltecedor da figura ao herói nacional é substituído por uma escultura que se pretende instrumento não mais de glória ou exaltação de personalidades, mas à denúncia a alguma arbitrariedade cometida pelo Estado a determinados segmentos da sociedade.

Segundo o crítico literário Márcio Seligmann, o antimonumento serve como instrumento de contestação à violência do Estado, perpetrada durante os regimes de exceção e em genocídios. Houve, também, segundo ele, uma mudança na representação dos monumentos e uma nova postura estética na apresentação da arte pública. Abandonou-se o uso de materiais pesados como pedra, granito, bronze ou mármore e optou-se por outros mais leves e menos nobres. O antimonumento aposta muito mais na força das palavras e dos gestos do que no poder das representações bélicas e monumentais, tais como estátuas equestres (geralmente militares e chefes de estado empunhando espadas ou ao lado de armas), arcos do triunfo, obeliscos, altar da pátria, etc.

A renovação da historiografia que passou a analisar determinados fatos, considerados "passados sensíveis" tais como o genocídio indígena nas Américas, a escravidão negra, o holocausto, entre outros, contribuiu para essa mudança de paradigma na estatuária pública dos centros urbanos. Esses "passados sensíveis" trazem também a lembrança do trauma e da morte e, portanto, muitos antimonumentos acabam por ter um caráter fúnebre. Na verdade, o antimonumento corresponde à narrativa visual de passados sensíveis e memórias traumáticas. Além de serem "lugares de memória", na célebre acepção de Pierre Nora, eles expressam o desejo de recordar de modo ativo o passado doloroso e possuem um aspecto pedagógico, que pode ser sintetizado nas palavras de ordem: Lembrar para não esquecer! Para que nunca mais aconteça!

No Brasil, por conta do regime de exceção recente (1964-1985), iremos encontrar alguns exemplos de antimonumentos, que foram construídos como resposta às arbitrariedades e violações aos direitos humanos. Um dos primeiros deles foi erigido em Recife-PE, em 1993 e tem como título Monumento Tortura Nunca Mais. Retrata a imagem de um homem sendo violentado com um tipo de tortura muito praticado à época e conhecido como "pau-de-arara". Nas imediações dele, há placas no chão, que lembram lápides, com fotos, data de nascimento e falecimento de desaparecidos e mortos pelo regime civil-militar.

No tempo presente, em meio aos discursos de negacionismo histórico por parte do atual governo federal, os antimonumentos se revestem de uma importância capital. Eles servem para mostrar e denunciar que houve um período de nossa história, marcado pela censura, repressão, tortura, mortes e desaparecimentos políticos. Na verdade, o passado é sempre alvo de disputas simbólicas por parte de diferentes segmentos da sociedade. E essa questão se materializa na contestação e até mesmo na derrubada de monumentos e no que deve ou não ser preservado como "memória nacional".

Como tão bem afirmou a historiadora Régine Robin, "O passado não é livre. Nenhuma sociedade deixa à mercê da própria sorte. Ele é regido, gerido, preservado, explicado, contado, comemorado ou odiado. Quer seja celebrado ou ocultado, permanece uma questão fundamental do presente".

*Ricardo Oriá, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), consultor legislativo da área de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados. É autor de artigos sobre patrimônio cultural e museus e do livro O Brasil contado às crianças: Viriato Corrêa e a literatura escolar brasileira (E. Annablume, 2011)

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Ainda não terminou este fatídico ano, mas já podemos dizer que nunca as disputas de memória estiveram tão presentes no debate público, nos meios de comunicação, nas diversas redes sociais e plataformas digitais. O vídeo, com as imagens da derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston pelos manifestantes, que protestavam contra o racismo, na cidade de Bristol, Inglaterra, "viralizou" na internet. A essa manifestação, seguiram-se outras em diversos países contestando a presença de monumentos que evocam personagens relacionadas ao colonialismo e à escravidão.

Sempre existiu, desde a mais remota Antiguidade, o interesse em edificar monumentos por parte das diferentes sociedades. No entanto, esse processo se intensifica a partir da segunda metade do século XIX, momento de afirmação do estado nacional. Neste sentido, a construção de monumentos cívicos e históricos foi uma constante no século XIX, na medida em que a construção da identidade nacional exigia a evocação do passado histórico, pautado nos feitos e fatos protagonizados pelos "heróis" e "filhos ilustres" da nação. Surgia, segundo o historiador Maurice Agulhon, o fenômeno social da estatuamania, ou seja, o desenvolvimento da escultura em praças públicas a serviço da cultura cívica.

O século XIX na França foi marcado pela construção de inúmeros monumentos, cujo objetivo maior era o fortalecimento do Estado-nação através do culto cívico aos heróis da nacionalidade, seja na representação de uma estátua equestre, busto ou herma, seja na construção de obeliscos e arcos do triunfo em comemoração a efemérides. Tal postura também foi seguida por outros países ocidentais, a exemplo do Brasil que teve, em comemoração aos quarenta anos de sua independência (1862), a inauguração de nosso primeiro monumento histórico. Estamos nos referindo à estátua equestre do imperador D. Pedro I, no Rio de Janeiro. Pretendia-se, pois, através da edificação de estátuas e monumentos, construir a "memória da nação", onde eram selecionados os personagens e fatos dignos de registro à posteridade, que serviriam de instrumento de legitimação ao estado nacional e ao desenvolvimento de uma consciência cívico-patriótica da população.

O fim da 2ª Guerra Mundial (1939-1945) e a constatação do genocídio praticado pelo nazismo, perpetrado contra os judeus e outras minorias sociais, provocou uma mudança de paradigma na construção de monumentos e na escultura pública presente nas cidades. Eis que surge a ideia de antimonumento, para se contrapor aos monumentos celebrativos que exaltavam vultos, fatos e efemérides. O monumento enaltecedor da figura ao herói nacional é substituído por uma escultura que se pretende instrumento não mais de glória ou exaltação de personalidades, mas à denúncia a alguma arbitrariedade cometida pelo Estado a determinados segmentos da sociedade.

Segundo o crítico literário Márcio Seligmann, o antimonumento serve como instrumento de contestação à violência do Estado, perpetrada durante os regimes de exceção e em genocídios. Houve, também, segundo ele, uma mudança na representação dos monumentos e uma nova postura estética na apresentação da arte pública. Abandonou-se o uso de materiais pesados como pedra, granito, bronze ou mármore e optou-se por outros mais leves e menos nobres. O antimonumento aposta muito mais na força das palavras e dos gestos do que no poder das representações bélicas e monumentais, tais como estátuas equestres (geralmente militares e chefes de estado empunhando espadas ou ao lado de armas), arcos do triunfo, obeliscos, altar da pátria, etc.

A renovação da historiografia que passou a analisar determinados fatos, considerados "passados sensíveis" tais como o genocídio indígena nas Américas, a escravidão negra, o holocausto, entre outros, contribuiu para essa mudança de paradigma na estatuária pública dos centros urbanos. Esses "passados sensíveis" trazem também a lembrança do trauma e da morte e, portanto, muitos antimonumentos acabam por ter um caráter fúnebre. Na verdade, o antimonumento corresponde à narrativa visual de passados sensíveis e memórias traumáticas. Além de serem "lugares de memória", na célebre acepção de Pierre Nora, eles expressam o desejo de recordar de modo ativo o passado doloroso e possuem um aspecto pedagógico, que pode ser sintetizado nas palavras de ordem: Lembrar para não esquecer! Para que nunca mais aconteça!

No Brasil, por conta do regime de exceção recente (1964-1985), iremos encontrar alguns exemplos de antimonumentos, que foram construídos como resposta às arbitrariedades e violações aos direitos humanos. Um dos primeiros deles foi erigido em Recife-PE, em 1993 e tem como título Monumento Tortura Nunca Mais. Retrata a imagem de um homem sendo violentado com um tipo de tortura muito praticado à época e conhecido como "pau-de-arara". Nas imediações dele, há placas no chão, que lembram lápides, com fotos, data de nascimento e falecimento de desaparecidos e mortos pelo regime civil-militar.

No tempo presente, em meio aos discursos de negacionismo histórico por parte do atual governo federal, os antimonumentos se revestem de uma importância capital. Eles servem para mostrar e denunciar que houve um período de nossa história, marcado pela censura, repressão, tortura, mortes e desaparecimentos políticos. Na verdade, o passado é sempre alvo de disputas simbólicas por parte de diferentes segmentos da sociedade. E essa questão se materializa na contestação e até mesmo na derrubada de monumentos e no que deve ou não ser preservado como "memória nacional".

Como tão bem afirmou a historiadora Régine Robin, "O passado não é livre. Nenhuma sociedade deixa à mercê da própria sorte. Ele é regido, gerido, preservado, explicado, contado, comemorado ou odiado. Quer seja celebrado ou ocultado, permanece uma questão fundamental do presente".

*Ricardo Oriá, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), consultor legislativo da área de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados. É autor de artigos sobre patrimônio cultural e museus e do livro O Brasil contado às crianças: Viriato Corrêa e a literatura escolar brasileira (E. Annablume, 2011)

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