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Fim da tese da legítima defesa da honra e o martelo das feiticeiras


Por Santamaria N. Silveira
Santamaria N. Silveira. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Um livro escrito em 1484, "O Martelo das Feiticeiras" (Malleus Maleficarum), considerado um guia para caçadores de bruxas na Idade Média, nos permite fazer um paralelo com a tese jurídica da legítima defesa da honra, guardadas as devidas proporções e contextos históricos. Esse livro sombrio - escrito por Heinrich Kraemer e James Sprenger, membros da Santa Inquisição, que condenou à morte por bruxaria aproximadamente   100 mil mulheres na Europa- era considerado pela escritora feminista Rose Marie Muraro o mais importante já escrito sobre a condição da mulher . Ensinava mais do que  reconhecer e arrancar uma confissão  sobre feitiçaria  (prática exercida exclusivamente por mulheres) por meio de tortura. Ensinava que a transgressão da fé era uma transgressão política e  sexual e era necessário punir as mulheres por isso. As vítimas de feminicídio no Brasil vem sendo punidas por uma espécie de "transgressão de gênero",  vivendo à sombra de uma tese jurídica que não lhes permite exercer seus  direitos constitucionais à vida, à não discriminação de gênero e ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Agora, mais de 40 anos depois do feminicídio de Ângela Diniz, caso paradigmático,a tese jurídica da legítima defesa da honra se torna finalmente inconstitucional dentro do ordenamento jurídico nacional por decisão monocrática do Ministro Dias Toffoli , do Supremo Tribunal Federal, emresposta à ação interposta pelo PDT  (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental -DPF 779),  ad referendum dos demais Ministros da Corte. Oquestionamento do PDTfaz todo sentido, porque ainda hoje há tribunais que aceitam essa tese jurídica e absolvem  assassinos e agressores de mulheres, com a mesma  ênfase  na opressão feminina que tinha a Santa Inquisição.

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Em seu voto, Toffoli aponta que a tese da legítima defesa da honra não encontra amparo ou ressonância na legislação brasileira, por ser um "recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres" no Brasil.Para Toffoli, quem pratica o feminicídio, não está se defendo sua honra, mas atacando de forma covarde e criminosa.

Quando na década de 1970, o advogado Evandro Lins e Silva aceitou defender Doca Street pelo feminicídio de Ângela Diniz,  motivado pelo final do relacionamento - ainda hoje tão comum na justificativa dos maridos e companheiros que praticam  feminicídio no país  - o Movimento Feminista  organizado estava nascendo propriamente no Brasil, em sua segunda onda . No livro imperdível  de Rose Marie Muraro,  " Memórias de uma Mulher Impossível", está registrada a criação do Centro da Mulher Brasileira, em 1975, o primeiro grupo feminista daquela época. Mas, antes disso,  segundo Rose, o  Brasil era "o único país do mundo em que o feminismo caminhou sem ter sequer um grupo feminista, só com esse movimento de opinião pública, graças à ajuda anônima dos homens e mulheres que realmente queriam transformar a sociedade Foi uma coisa fantasticamente comovente na ditatura militar. Os militares não podiam lutar contra isso".  ²

Atualmente, muita gente não tem a dimensão do  papel do Movimento Feminista Brasileiro  no enfrentamento à tese da legítima defesa da honra durante o julgamento de Doca Street. A defesa era composta por  Evandro Lins e Silva, considerado -  e reconhecido  -como o "o maior penalista e tribuno  brasileiro", um mestre da advocacia com uma folha de serviços invejável prestada ao país. Em seu livro  de trajetória, igualmente imperdível, " O Salão dos Passos Perdidos", ele explica a tese da legítima defesa da honra como sendo " a maneira que se tinha por que a lei não permitia o que havia na legislação anterior, a perturbação dos sentidos e da inteligência com um fator diretamente de responsabilidade". Dessa forma, ele  defendia que a dignidade de Doca Street tinha sido ofendida por vários atos praticado por Ângela: infidelidade, insultos, declarações , etc., mesmo tendo o casal vivido apenas quatro meses de relacionamento. ²

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O Movimento Feminista enfrentou o primeiro julgamento de Doca Street em 1979, no Tribunal do Júri de Cabo Frio, mobilizando a opinião pública, que se dividia entre os favoráveis ao assassino e os que viam a vítima como   vítima, emboraapresentada como uma socialite "devassa" e que , portanto, "merecia" morrer . Com o resultado do julgamento:  pena de dois anos com direito a sursis, todas as mulheres se sentiram injustiçadas e  munidas do slogan " quem ama não mata" -  partiram para o segundo round -  o novo  julgamento de Doca Street,  designado em 1981  - desta vez sem Evandro Lins e Silva na defesa. Finalmente, a justiça foi feita  e  Doca foi condenado a 15 anos de reclusão, mas a tese da legítima defesa da honra continuou prosperando no Judiciário brasileiro.

Por tudo isso, o voto de Toffoli é um divisor de águas, sendo importante tambémpor outros dois motivos. O primeiro porque a violência de gênero no Brasil  não para de crescer . Foram  631 feminicídios  no primeiro semestre de 2020 e 119.546 casos de lesão corporal dolosa por violência doméstica, que  vem se agravando com  a continuidade da quarentena decorrente da pandemia da covid-19, porque muitas mulheres ficam confinadas em casa com seus agressores. O país registra um feminicídio a  cada 7 horas, ou seja , 3 mulheres são assassinadas diariamente por serem mulheres no país.

O segundo motivo está relacionado à recente decisão da   1ª Turma do  Supremo Tribunal Federal , que estabeleceu  que o Tribunal do Júri é soberano epode decidir de forma contrária às provas dos autos, mesmo que inocente feminicidas. O caso concreto analisado pelo STF foi de um acusado que matou a mulher a golpes de faca, por achar que estava sendo traído pela ela, em Minas Gerais, um dos estados com mais altos índices de feminicídio, segundo o Monitor da Violência. O assassino confessou o crime, mas foi absolvido pelo Tribunal do Júri, cuja sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais por ser contrária ao conjunto probatório, mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, e derrubada no STF.

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A  tese da legítima defesa da honra é tão sinistra quanto o livro Malleus Maleficarum, porque condenam a vítima de antemão. Muraro conclui que depois de três séculos do Malleus, houve uma grande transformação da condição feminina para pior: o " saber feminino popular  [sobre a natureza] cai na clandestinidade, quando não é assimilado como próprio pelo poder médico masculino já solidificado. As mulheres não têm mais acesso ao estudo como na Idade Média e passam a transmitir voluntariamente a seus filhos valores patriarcais já então totalmente introjetados por elas". ³

Se confirmado pelo plenário do STF, o fim da tese jurídica da legítima defesa da honra,  volta às mãos das mulheres o " Martelo das Feiticeiras", empoderando a cidadania feminina, porque  segundo os inquisidores, só elas podiam suportar o ferro incandescente do martelo em suas  mãos.

¹ MURARO, Rose Marie . Memórias de uma Mulher Impossível. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999, p.74

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² LINS E SILVA, Evandro. O Salão dos Passos Perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.432.

³ Disponível em http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/feiticeira/introducao.html

*Santamaria N. Silveira  é jornalista, doutora em Comunicação Social pela ECA-SP e  foi editora do jornal feminista Mulherio

Santamaria N. Silveira. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Um livro escrito em 1484, "O Martelo das Feiticeiras" (Malleus Maleficarum), considerado um guia para caçadores de bruxas na Idade Média, nos permite fazer um paralelo com a tese jurídica da legítima defesa da honra, guardadas as devidas proporções e contextos históricos. Esse livro sombrio - escrito por Heinrich Kraemer e James Sprenger, membros da Santa Inquisição, que condenou à morte por bruxaria aproximadamente   100 mil mulheres na Europa- era considerado pela escritora feminista Rose Marie Muraro o mais importante já escrito sobre a condição da mulher . Ensinava mais do que  reconhecer e arrancar uma confissão  sobre feitiçaria  (prática exercida exclusivamente por mulheres) por meio de tortura. Ensinava que a transgressão da fé era uma transgressão política e  sexual e era necessário punir as mulheres por isso. As vítimas de feminicídio no Brasil vem sendo punidas por uma espécie de "transgressão de gênero",  vivendo à sombra de uma tese jurídica que não lhes permite exercer seus  direitos constitucionais à vida, à não discriminação de gênero e ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Agora, mais de 40 anos depois do feminicídio de Ângela Diniz, caso paradigmático,a tese jurídica da legítima defesa da honra se torna finalmente inconstitucional dentro do ordenamento jurídico nacional por decisão monocrática do Ministro Dias Toffoli , do Supremo Tribunal Federal, emresposta à ação interposta pelo PDT  (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental -DPF 779),  ad referendum dos demais Ministros da Corte. Oquestionamento do PDTfaz todo sentido, porque ainda hoje há tribunais que aceitam essa tese jurídica e absolvem  assassinos e agressores de mulheres, com a mesma  ênfase  na opressão feminina que tinha a Santa Inquisição.

Em seu voto, Toffoli aponta que a tese da legítima defesa da honra não encontra amparo ou ressonância na legislação brasileira, por ser um "recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres" no Brasil.Para Toffoli, quem pratica o feminicídio, não está se defendo sua honra, mas atacando de forma covarde e criminosa.

Quando na década de 1970, o advogado Evandro Lins e Silva aceitou defender Doca Street pelo feminicídio de Ângela Diniz,  motivado pelo final do relacionamento - ainda hoje tão comum na justificativa dos maridos e companheiros que praticam  feminicídio no país  - o Movimento Feminista  organizado estava nascendo propriamente no Brasil, em sua segunda onda . No livro imperdível  de Rose Marie Muraro,  " Memórias de uma Mulher Impossível", está registrada a criação do Centro da Mulher Brasileira, em 1975, o primeiro grupo feminista daquela época. Mas, antes disso,  segundo Rose, o  Brasil era "o único país do mundo em que o feminismo caminhou sem ter sequer um grupo feminista, só com esse movimento de opinião pública, graças à ajuda anônima dos homens e mulheres que realmente queriam transformar a sociedade Foi uma coisa fantasticamente comovente na ditatura militar. Os militares não podiam lutar contra isso".  ²

Atualmente, muita gente não tem a dimensão do  papel do Movimento Feminista Brasileiro  no enfrentamento à tese da legítima defesa da honra durante o julgamento de Doca Street. A defesa era composta por  Evandro Lins e Silva, considerado -  e reconhecido  -como o "o maior penalista e tribuno  brasileiro", um mestre da advocacia com uma folha de serviços invejável prestada ao país. Em seu livro  de trajetória, igualmente imperdível, " O Salão dos Passos Perdidos", ele explica a tese da legítima defesa da honra como sendo " a maneira que se tinha por que a lei não permitia o que havia na legislação anterior, a perturbação dos sentidos e da inteligência com um fator diretamente de responsabilidade". Dessa forma, ele  defendia que a dignidade de Doca Street tinha sido ofendida por vários atos praticado por Ângela: infidelidade, insultos, declarações , etc., mesmo tendo o casal vivido apenas quatro meses de relacionamento. ²

O Movimento Feminista enfrentou o primeiro julgamento de Doca Street em 1979, no Tribunal do Júri de Cabo Frio, mobilizando a opinião pública, que se dividia entre os favoráveis ao assassino e os que viam a vítima como   vítima, emboraapresentada como uma socialite "devassa" e que , portanto, "merecia" morrer . Com o resultado do julgamento:  pena de dois anos com direito a sursis, todas as mulheres se sentiram injustiçadas e  munidas do slogan " quem ama não mata" -  partiram para o segundo round -  o novo  julgamento de Doca Street,  designado em 1981  - desta vez sem Evandro Lins e Silva na defesa. Finalmente, a justiça foi feita  e  Doca foi condenado a 15 anos de reclusão, mas a tese da legítima defesa da honra continuou prosperando no Judiciário brasileiro.

Por tudo isso, o voto de Toffoli é um divisor de águas, sendo importante tambémpor outros dois motivos. O primeiro porque a violência de gênero no Brasil  não para de crescer . Foram  631 feminicídios  no primeiro semestre de 2020 e 119.546 casos de lesão corporal dolosa por violência doméstica, que  vem se agravando com  a continuidade da quarentena decorrente da pandemia da covid-19, porque muitas mulheres ficam confinadas em casa com seus agressores. O país registra um feminicídio a  cada 7 horas, ou seja , 3 mulheres são assassinadas diariamente por serem mulheres no país.

O segundo motivo está relacionado à recente decisão da   1ª Turma do  Supremo Tribunal Federal , que estabeleceu  que o Tribunal do Júri é soberano epode decidir de forma contrária às provas dos autos, mesmo que inocente feminicidas. O caso concreto analisado pelo STF foi de um acusado que matou a mulher a golpes de faca, por achar que estava sendo traído pela ela, em Minas Gerais, um dos estados com mais altos índices de feminicídio, segundo o Monitor da Violência. O assassino confessou o crime, mas foi absolvido pelo Tribunal do Júri, cuja sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais por ser contrária ao conjunto probatório, mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, e derrubada no STF.

A  tese da legítima defesa da honra é tão sinistra quanto o livro Malleus Maleficarum, porque condenam a vítima de antemão. Muraro conclui que depois de três séculos do Malleus, houve uma grande transformação da condição feminina para pior: o " saber feminino popular  [sobre a natureza] cai na clandestinidade, quando não é assimilado como próprio pelo poder médico masculino já solidificado. As mulheres não têm mais acesso ao estudo como na Idade Média e passam a transmitir voluntariamente a seus filhos valores patriarcais já então totalmente introjetados por elas". ³

Se confirmado pelo plenário do STF, o fim da tese jurídica da legítima defesa da honra,  volta às mãos das mulheres o " Martelo das Feiticeiras", empoderando a cidadania feminina, porque  segundo os inquisidores, só elas podiam suportar o ferro incandescente do martelo em suas  mãos.

¹ MURARO, Rose Marie . Memórias de uma Mulher Impossível. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999, p.74

² LINS E SILVA, Evandro. O Salão dos Passos Perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.432.

³ Disponível em http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/feiticeira/introducao.html

*Santamaria N. Silveira  é jornalista, doutora em Comunicação Social pela ECA-SP e  foi editora do jornal feminista Mulherio

Santamaria N. Silveira. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Um livro escrito em 1484, "O Martelo das Feiticeiras" (Malleus Maleficarum), considerado um guia para caçadores de bruxas na Idade Média, nos permite fazer um paralelo com a tese jurídica da legítima defesa da honra, guardadas as devidas proporções e contextos históricos. Esse livro sombrio - escrito por Heinrich Kraemer e James Sprenger, membros da Santa Inquisição, que condenou à morte por bruxaria aproximadamente   100 mil mulheres na Europa- era considerado pela escritora feminista Rose Marie Muraro o mais importante já escrito sobre a condição da mulher . Ensinava mais do que  reconhecer e arrancar uma confissão  sobre feitiçaria  (prática exercida exclusivamente por mulheres) por meio de tortura. Ensinava que a transgressão da fé era uma transgressão política e  sexual e era necessário punir as mulheres por isso. As vítimas de feminicídio no Brasil vem sendo punidas por uma espécie de "transgressão de gênero",  vivendo à sombra de uma tese jurídica que não lhes permite exercer seus  direitos constitucionais à vida, à não discriminação de gênero e ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Agora, mais de 40 anos depois do feminicídio de Ângela Diniz, caso paradigmático,a tese jurídica da legítima defesa da honra se torna finalmente inconstitucional dentro do ordenamento jurídico nacional por decisão monocrática do Ministro Dias Toffoli , do Supremo Tribunal Federal, emresposta à ação interposta pelo PDT  (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental -DPF 779),  ad referendum dos demais Ministros da Corte. Oquestionamento do PDTfaz todo sentido, porque ainda hoje há tribunais que aceitam essa tese jurídica e absolvem  assassinos e agressores de mulheres, com a mesma  ênfase  na opressão feminina que tinha a Santa Inquisição.

Em seu voto, Toffoli aponta que a tese da legítima defesa da honra não encontra amparo ou ressonância na legislação brasileira, por ser um "recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres" no Brasil.Para Toffoli, quem pratica o feminicídio, não está se defendo sua honra, mas atacando de forma covarde e criminosa.

Quando na década de 1970, o advogado Evandro Lins e Silva aceitou defender Doca Street pelo feminicídio de Ângela Diniz,  motivado pelo final do relacionamento - ainda hoje tão comum na justificativa dos maridos e companheiros que praticam  feminicídio no país  - o Movimento Feminista  organizado estava nascendo propriamente no Brasil, em sua segunda onda . No livro imperdível  de Rose Marie Muraro,  " Memórias de uma Mulher Impossível", está registrada a criação do Centro da Mulher Brasileira, em 1975, o primeiro grupo feminista daquela época. Mas, antes disso,  segundo Rose, o  Brasil era "o único país do mundo em que o feminismo caminhou sem ter sequer um grupo feminista, só com esse movimento de opinião pública, graças à ajuda anônima dos homens e mulheres que realmente queriam transformar a sociedade Foi uma coisa fantasticamente comovente na ditatura militar. Os militares não podiam lutar contra isso".  ²

Atualmente, muita gente não tem a dimensão do  papel do Movimento Feminista Brasileiro  no enfrentamento à tese da legítima defesa da honra durante o julgamento de Doca Street. A defesa era composta por  Evandro Lins e Silva, considerado -  e reconhecido  -como o "o maior penalista e tribuno  brasileiro", um mestre da advocacia com uma folha de serviços invejável prestada ao país. Em seu livro  de trajetória, igualmente imperdível, " O Salão dos Passos Perdidos", ele explica a tese da legítima defesa da honra como sendo " a maneira que se tinha por que a lei não permitia o que havia na legislação anterior, a perturbação dos sentidos e da inteligência com um fator diretamente de responsabilidade". Dessa forma, ele  defendia que a dignidade de Doca Street tinha sido ofendida por vários atos praticado por Ângela: infidelidade, insultos, declarações , etc., mesmo tendo o casal vivido apenas quatro meses de relacionamento. ²

O Movimento Feminista enfrentou o primeiro julgamento de Doca Street em 1979, no Tribunal do Júri de Cabo Frio, mobilizando a opinião pública, que se dividia entre os favoráveis ao assassino e os que viam a vítima como   vítima, emboraapresentada como uma socialite "devassa" e que , portanto, "merecia" morrer . Com o resultado do julgamento:  pena de dois anos com direito a sursis, todas as mulheres se sentiram injustiçadas e  munidas do slogan " quem ama não mata" -  partiram para o segundo round -  o novo  julgamento de Doca Street,  designado em 1981  - desta vez sem Evandro Lins e Silva na defesa. Finalmente, a justiça foi feita  e  Doca foi condenado a 15 anos de reclusão, mas a tese da legítima defesa da honra continuou prosperando no Judiciário brasileiro.

Por tudo isso, o voto de Toffoli é um divisor de águas, sendo importante tambémpor outros dois motivos. O primeiro porque a violência de gênero no Brasil  não para de crescer . Foram  631 feminicídios  no primeiro semestre de 2020 e 119.546 casos de lesão corporal dolosa por violência doméstica, que  vem se agravando com  a continuidade da quarentena decorrente da pandemia da covid-19, porque muitas mulheres ficam confinadas em casa com seus agressores. O país registra um feminicídio a  cada 7 horas, ou seja , 3 mulheres são assassinadas diariamente por serem mulheres no país.

O segundo motivo está relacionado à recente decisão da   1ª Turma do  Supremo Tribunal Federal , que estabeleceu  que o Tribunal do Júri é soberano epode decidir de forma contrária às provas dos autos, mesmo que inocente feminicidas. O caso concreto analisado pelo STF foi de um acusado que matou a mulher a golpes de faca, por achar que estava sendo traído pela ela, em Minas Gerais, um dos estados com mais altos índices de feminicídio, segundo o Monitor da Violência. O assassino confessou o crime, mas foi absolvido pelo Tribunal do Júri, cuja sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais por ser contrária ao conjunto probatório, mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, e derrubada no STF.

A  tese da legítima defesa da honra é tão sinistra quanto o livro Malleus Maleficarum, porque condenam a vítima de antemão. Muraro conclui que depois de três séculos do Malleus, houve uma grande transformação da condição feminina para pior: o " saber feminino popular  [sobre a natureza] cai na clandestinidade, quando não é assimilado como próprio pelo poder médico masculino já solidificado. As mulheres não têm mais acesso ao estudo como na Idade Média e passam a transmitir voluntariamente a seus filhos valores patriarcais já então totalmente introjetados por elas". ³

Se confirmado pelo plenário do STF, o fim da tese jurídica da legítima defesa da honra,  volta às mãos das mulheres o " Martelo das Feiticeiras", empoderando a cidadania feminina, porque  segundo os inquisidores, só elas podiam suportar o ferro incandescente do martelo em suas  mãos.

¹ MURARO, Rose Marie . Memórias de uma Mulher Impossível. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999, p.74

² LINS E SILVA, Evandro. O Salão dos Passos Perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.432.

³ Disponível em http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/feiticeira/introducao.html

*Santamaria N. Silveira  é jornalista, doutora em Comunicação Social pela ECA-SP e  foi editora do jornal feminista Mulherio

Santamaria N. Silveira. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Um livro escrito em 1484, "O Martelo das Feiticeiras" (Malleus Maleficarum), considerado um guia para caçadores de bruxas na Idade Média, nos permite fazer um paralelo com a tese jurídica da legítima defesa da honra, guardadas as devidas proporções e contextos históricos. Esse livro sombrio - escrito por Heinrich Kraemer e James Sprenger, membros da Santa Inquisição, que condenou à morte por bruxaria aproximadamente   100 mil mulheres na Europa- era considerado pela escritora feminista Rose Marie Muraro o mais importante já escrito sobre a condição da mulher . Ensinava mais do que  reconhecer e arrancar uma confissão  sobre feitiçaria  (prática exercida exclusivamente por mulheres) por meio de tortura. Ensinava que a transgressão da fé era uma transgressão política e  sexual e era necessário punir as mulheres por isso. As vítimas de feminicídio no Brasil vem sendo punidas por uma espécie de "transgressão de gênero",  vivendo à sombra de uma tese jurídica que não lhes permite exercer seus  direitos constitucionais à vida, à não discriminação de gênero e ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Agora, mais de 40 anos depois do feminicídio de Ângela Diniz, caso paradigmático,a tese jurídica da legítima defesa da honra se torna finalmente inconstitucional dentro do ordenamento jurídico nacional por decisão monocrática do Ministro Dias Toffoli , do Supremo Tribunal Federal, emresposta à ação interposta pelo PDT  (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental -DPF 779),  ad referendum dos demais Ministros da Corte. Oquestionamento do PDTfaz todo sentido, porque ainda hoje há tribunais que aceitam essa tese jurídica e absolvem  assassinos e agressores de mulheres, com a mesma  ênfase  na opressão feminina que tinha a Santa Inquisição.

Em seu voto, Toffoli aponta que a tese da legítima defesa da honra não encontra amparo ou ressonância na legislação brasileira, por ser um "recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres" no Brasil.Para Toffoli, quem pratica o feminicídio, não está se defendo sua honra, mas atacando de forma covarde e criminosa.

Quando na década de 1970, o advogado Evandro Lins e Silva aceitou defender Doca Street pelo feminicídio de Ângela Diniz,  motivado pelo final do relacionamento - ainda hoje tão comum na justificativa dos maridos e companheiros que praticam  feminicídio no país  - o Movimento Feminista  organizado estava nascendo propriamente no Brasil, em sua segunda onda . No livro imperdível  de Rose Marie Muraro,  " Memórias de uma Mulher Impossível", está registrada a criação do Centro da Mulher Brasileira, em 1975, o primeiro grupo feminista daquela época. Mas, antes disso,  segundo Rose, o  Brasil era "o único país do mundo em que o feminismo caminhou sem ter sequer um grupo feminista, só com esse movimento de opinião pública, graças à ajuda anônima dos homens e mulheres que realmente queriam transformar a sociedade Foi uma coisa fantasticamente comovente na ditatura militar. Os militares não podiam lutar contra isso".  ²

Atualmente, muita gente não tem a dimensão do  papel do Movimento Feminista Brasileiro  no enfrentamento à tese da legítima defesa da honra durante o julgamento de Doca Street. A defesa era composta por  Evandro Lins e Silva, considerado -  e reconhecido  -como o "o maior penalista e tribuno  brasileiro", um mestre da advocacia com uma folha de serviços invejável prestada ao país. Em seu livro  de trajetória, igualmente imperdível, " O Salão dos Passos Perdidos", ele explica a tese da legítima defesa da honra como sendo " a maneira que se tinha por que a lei não permitia o que havia na legislação anterior, a perturbação dos sentidos e da inteligência com um fator diretamente de responsabilidade". Dessa forma, ele  defendia que a dignidade de Doca Street tinha sido ofendida por vários atos praticado por Ângela: infidelidade, insultos, declarações , etc., mesmo tendo o casal vivido apenas quatro meses de relacionamento. ²

O Movimento Feminista enfrentou o primeiro julgamento de Doca Street em 1979, no Tribunal do Júri de Cabo Frio, mobilizando a opinião pública, que se dividia entre os favoráveis ao assassino e os que viam a vítima como   vítima, emboraapresentada como uma socialite "devassa" e que , portanto, "merecia" morrer . Com o resultado do julgamento:  pena de dois anos com direito a sursis, todas as mulheres se sentiram injustiçadas e  munidas do slogan " quem ama não mata" -  partiram para o segundo round -  o novo  julgamento de Doca Street,  designado em 1981  - desta vez sem Evandro Lins e Silva na defesa. Finalmente, a justiça foi feita  e  Doca foi condenado a 15 anos de reclusão, mas a tese da legítima defesa da honra continuou prosperando no Judiciário brasileiro.

Por tudo isso, o voto de Toffoli é um divisor de águas, sendo importante tambémpor outros dois motivos. O primeiro porque a violência de gênero no Brasil  não para de crescer . Foram  631 feminicídios  no primeiro semestre de 2020 e 119.546 casos de lesão corporal dolosa por violência doméstica, que  vem se agravando com  a continuidade da quarentena decorrente da pandemia da covid-19, porque muitas mulheres ficam confinadas em casa com seus agressores. O país registra um feminicídio a  cada 7 horas, ou seja , 3 mulheres são assassinadas diariamente por serem mulheres no país.

O segundo motivo está relacionado à recente decisão da   1ª Turma do  Supremo Tribunal Federal , que estabeleceu  que o Tribunal do Júri é soberano epode decidir de forma contrária às provas dos autos, mesmo que inocente feminicidas. O caso concreto analisado pelo STF foi de um acusado que matou a mulher a golpes de faca, por achar que estava sendo traído pela ela, em Minas Gerais, um dos estados com mais altos índices de feminicídio, segundo o Monitor da Violência. O assassino confessou o crime, mas foi absolvido pelo Tribunal do Júri, cuja sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais por ser contrária ao conjunto probatório, mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, e derrubada no STF.

A  tese da legítima defesa da honra é tão sinistra quanto o livro Malleus Maleficarum, porque condenam a vítima de antemão. Muraro conclui que depois de três séculos do Malleus, houve uma grande transformação da condição feminina para pior: o " saber feminino popular  [sobre a natureza] cai na clandestinidade, quando não é assimilado como próprio pelo poder médico masculino já solidificado. As mulheres não têm mais acesso ao estudo como na Idade Média e passam a transmitir voluntariamente a seus filhos valores patriarcais já então totalmente introjetados por elas". ³

Se confirmado pelo plenário do STF, o fim da tese jurídica da legítima defesa da honra,  volta às mãos das mulheres o " Martelo das Feiticeiras", empoderando a cidadania feminina, porque  segundo os inquisidores, só elas podiam suportar o ferro incandescente do martelo em suas  mãos.

¹ MURARO, Rose Marie . Memórias de uma Mulher Impossível. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999, p.74

² LINS E SILVA, Evandro. O Salão dos Passos Perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.432.

³ Disponível em http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/feiticeira/introducao.html

*Santamaria N. Silveira  é jornalista, doutora em Comunicação Social pela ECA-SP e  foi editora do jornal feminista Mulherio

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