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Inquérito das fake news: armadilha ou salvação ao estado de direito?


Por Karin Toscano Mielenhausen, Lívia Moscatelli, Luiza Oliver, Cláudia Bernasconi, Helena Regina Lobo da Costa, Danyelle Galvão, Daniella Meggiolaro e Maria Jamile José
Karin Toscano Mielenhausen, Lívia Moscatelli, Luiza Oliver, Cláudia Bernasconi, Helena Regina Lobo da Costa, Danyelle Galvão, Daniella Meggiolaro e Maria Jamile José. FOTOS: DIVULGAÇÃO E ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Em tempos de pandemia, o país vem enfrentando outra batalha igualmente importante e que parece não ter vacina em um curto período de tempo: a superação da crise política que se instalou no país.

Não há dúvidas de que a democracia está em risco. O (des)governo dá contínuos e acentuados sinais de desrespeito ao Estado de Direito, à autoridade do Judiciário e à autonomia do Legislativo. Isso é um fato. Cabe a nós definir como vamos lidar com esse gravíssimo cenário: acentuaremos o desrespeito ao Estado de Direito e, sob o pretexto de "salvar a democracia", vilipendiaremos a lei, ou nos pautaremos nela para exigir o respeito democrático?

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Esse é o dilema. Na verdade, é um falso dilema, pois Democracia e Estado de Direito são faces da mesma moeda, sendo o respeito à lei e às regras do jogo condições essenciais para a sobrevivência de ambos.

Nos últimos dias, após o cumprimento de diversas buscas e apreensões, reacendeu-se a discussão sobre a legalidade do sigiloso Inq 4781, o famigerado Inquérito das Fake News, em trâmite perante o STF.

De saída, é preciso deixar clara a gravidade dos fatos objeto de investigação. As hipóteses trazidas no inquérito, se comprovadas, ameaçam a nossa recente e cambaleante democracia. Em tempos de redes sociais e divulgação maciça de informações, a circulação proposital de Fake News que incitam o rompimento da ordem democrática e o boicote aos demais Poderes da República deve ser combatida com veemência. No mesmo sentido, os claros indícios autoritários que emanam do Poder Executivo Federal merecem respostas e ações firmes de todas as instituições da República. Mas, essa inegável gravidade dos fatos investigados justifica que se ultrapasse os limites legalidade? Parece-nos que não, sob pena de incorrermos no mesmo autoritarismo que pretendemos combater.

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O Inquérito das Fake News, em termos simples, nasceu torto. Primeiro, deu-se a sua heterodoxa instauração de ofício pelo Presidente da Corte Min. Dias Toffoli, numa interpretação bastante esgarçada do art. 43 do Regimento Interno. Isso sem falar que o Regimento Interno do STF foi criado em 1980, na constância do regime militar, devendo ser questionado se referido artigo, ou, ainda, a interpretação que foi dada a ele para fundamentar a instauração do Inquérito, encontraria guarida na Constituição. E a resposta é não, revelando esse inquérito um perigoso precedente para outras "investigações de ofício", sujeitas às paixões e discricionariedades humanas e sem a necessária supervisão externa.

Depois e mais grave, ignorando absolutamente as regras que garantem o direito de todo e qualquer cidadão ser julgado por um juiz imparcial, que não seja escolhido especialmente para um específico e determinado caso, literalmente nomeou-se o Ministro que seria responsável pela condução das investigações. Em flagrante desrespeito ao princípio constitucional do juiz natural, Código de Processo Penal e ao próprio Regimento interno do STF, foi arbitrariamente designado o Min. Alexandre de Moraes para relatoria do caso. Subtraiu-se do investigado o direito à livre distribuição do inquérito, o que se revela especialmente grave no caso, diante da divergência entre os próprios Ministros da Corte sobre a legalidade do inquérito.

Os vícios na origem parecem se perpetuar no desenvolvimento do Inquérito que é marcado pela violação ao sistema acusatório, confundindo numa só figura (STF) o papel do investigador, julgador e da vítima! Uma aberração jurídica.

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Não é demais lembrar que Constituição Federal de 1988 foi desenhada de forma a prezar o sistema acusatório[1], separando, em instituições distintas, cada uma das funções essenciais no desenvolvimento do processo penal. Não deve o juiz subtrair um papel que a ele não cabe, seja para, de ofício, instaurar o inquérito, seja para, também de ofício, determinar a realização de diligências, especialmente aquelas que interfiram diretamente em direitos fundamentais.

As alterações legislativas que se sucederam após a promulgação da Constituição foram no sentido de distanciar ainda mais o juiz da função acusatória, o que foi evidenciado pela adição do art. 3-A ao CPP pela Lei 13.964/19, que embora suspenso por liminar[2], declarou que "o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação".

É de se recordar que logo no seu nascedouro, em abril de 2019, a então Procuradora-Geral da República, Raquel Dogde, em atividade privativa do Ministério Público, promoveu o arquivamento das investigações evidenciando essas ilegalidades, promoção indeferida, em que pese a inexistência de previsão legal para tanto.  Outras ainda foram as manifestações da Procuradora-Geral alertando quanto à gravidade da simples existência desse inquérito. Em que pese essa postura mais rigorosa, com a troca do comando do Ministério Público Federal, o novo Procurador-Geral Augusto Aras apresentou parecer favorável ao prosseguimento das investigações, desde que houvesse participação do Parquet. Contudo, no momento em que a investigação atinge pessoas próximas ao Palácio do Planalto, surpreende com pedido de suspensão das investigações. Fundamental destacar, aliás, que a investigação de tais graves fatos deveriam exatamente estar ocorrendo por impulso do Ministério Público, cuja omissão não deve ser ignorada.

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Além disto, preocupam as seguidas manifestações das defesas dos investigados sobre a ausência de acesso ao conteúdo da investigação. Isto ensejou a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio do seu Conselho Federal e Seccional do Distrito Federal, a impetrar habeas corpus visando garantir o respeito à súmula vinculante n. 14 do próprio Supremo Tribunal Federal, que estabelece que "é  direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa".

O critério de dois pesos e duas medidas e de pouco apego à legalidade parece imperar para todos os lados. Sustentamos que, sejam quem forem os investigados e independentemente da nobreza e importância dos fins da investigação, em prol desses mesmos fins, temos que nos manter fiéis à lei e às regras do jogo.

Caso contrário, o risco que corremos é, a pretexto de salvaguardarmos a Democracia, atropelarmos seus valores fundantes, tornando-nos aquilo que tanto tentamos combater. E, pragmaticamente, não se pode esquecer que pau que bate em Chico, bate em Francisco e não se sabe amanhã quem será o próximo investigado.

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*Karin Toscano Mielenhausen, advogada criminalista,  especialista em direito penal e processual penal pela PUC/SP, mestranda em direito processual pela USP

*Lívia Moscatelli, advogada criminalista, mestranda em direito processual pela USP

*Luiza Oliver, advogada criminalista, mestre em direito penal pela New York University (NYU)

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*Cláudia Bernasconi, advogada criminalista

*Helena Regina Lobo da Costa, advogada criminalista, professora de direito penal da USP

*Danyelle Galvão, advogada criminalista, mestre e doutora em direito processual pela USP, conselheira da OAB/SP

*Daniella Meggiolaro, advogada criminalista, conselheira da OAB/SP, presidente da Comissão de Direito Penal da OAB/SP

*Maria Jamile José, advogada criminalista, mestre em direito processual pela USP

[1] GRINOVER, Ada Pellegrini. Influe?ncia do Co?digo de Processo Penal para Ibero-Ame?rica na legislac?a?o latino-americana. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Sa?o Paulo, v. 1, p. 542-574, 1993. p. 560.

[2] Medida Cautelar de 22.01.2020 do Min. Luiz Fux na ADI 6.299, STF.

Karin Toscano Mielenhausen, Lívia Moscatelli, Luiza Oliver, Cláudia Bernasconi, Helena Regina Lobo da Costa, Danyelle Galvão, Daniella Meggiolaro e Maria Jamile José. FOTOS: DIVULGAÇÃO E ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Em tempos de pandemia, o país vem enfrentando outra batalha igualmente importante e que parece não ter vacina em um curto período de tempo: a superação da crise política que se instalou no país.

Não há dúvidas de que a democracia está em risco. O (des)governo dá contínuos e acentuados sinais de desrespeito ao Estado de Direito, à autoridade do Judiciário e à autonomia do Legislativo. Isso é um fato. Cabe a nós definir como vamos lidar com esse gravíssimo cenário: acentuaremos o desrespeito ao Estado de Direito e, sob o pretexto de "salvar a democracia", vilipendiaremos a lei, ou nos pautaremos nela para exigir o respeito democrático?

Esse é o dilema. Na verdade, é um falso dilema, pois Democracia e Estado de Direito são faces da mesma moeda, sendo o respeito à lei e às regras do jogo condições essenciais para a sobrevivência de ambos.

Nos últimos dias, após o cumprimento de diversas buscas e apreensões, reacendeu-se a discussão sobre a legalidade do sigiloso Inq 4781, o famigerado Inquérito das Fake News, em trâmite perante o STF.

De saída, é preciso deixar clara a gravidade dos fatos objeto de investigação. As hipóteses trazidas no inquérito, se comprovadas, ameaçam a nossa recente e cambaleante democracia. Em tempos de redes sociais e divulgação maciça de informações, a circulação proposital de Fake News que incitam o rompimento da ordem democrática e o boicote aos demais Poderes da República deve ser combatida com veemência. No mesmo sentido, os claros indícios autoritários que emanam do Poder Executivo Federal merecem respostas e ações firmes de todas as instituições da República. Mas, essa inegável gravidade dos fatos investigados justifica que se ultrapasse os limites legalidade? Parece-nos que não, sob pena de incorrermos no mesmo autoritarismo que pretendemos combater.

O Inquérito das Fake News, em termos simples, nasceu torto. Primeiro, deu-se a sua heterodoxa instauração de ofício pelo Presidente da Corte Min. Dias Toffoli, numa interpretação bastante esgarçada do art. 43 do Regimento Interno. Isso sem falar que o Regimento Interno do STF foi criado em 1980, na constância do regime militar, devendo ser questionado se referido artigo, ou, ainda, a interpretação que foi dada a ele para fundamentar a instauração do Inquérito, encontraria guarida na Constituição. E a resposta é não, revelando esse inquérito um perigoso precedente para outras "investigações de ofício", sujeitas às paixões e discricionariedades humanas e sem a necessária supervisão externa.

Depois e mais grave, ignorando absolutamente as regras que garantem o direito de todo e qualquer cidadão ser julgado por um juiz imparcial, que não seja escolhido especialmente para um específico e determinado caso, literalmente nomeou-se o Ministro que seria responsável pela condução das investigações. Em flagrante desrespeito ao princípio constitucional do juiz natural, Código de Processo Penal e ao próprio Regimento interno do STF, foi arbitrariamente designado o Min. Alexandre de Moraes para relatoria do caso. Subtraiu-se do investigado o direito à livre distribuição do inquérito, o que se revela especialmente grave no caso, diante da divergência entre os próprios Ministros da Corte sobre a legalidade do inquérito.

Os vícios na origem parecem se perpetuar no desenvolvimento do Inquérito que é marcado pela violação ao sistema acusatório, confundindo numa só figura (STF) o papel do investigador, julgador e da vítima! Uma aberração jurídica.

Não é demais lembrar que Constituição Federal de 1988 foi desenhada de forma a prezar o sistema acusatório[1], separando, em instituições distintas, cada uma das funções essenciais no desenvolvimento do processo penal. Não deve o juiz subtrair um papel que a ele não cabe, seja para, de ofício, instaurar o inquérito, seja para, também de ofício, determinar a realização de diligências, especialmente aquelas que interfiram diretamente em direitos fundamentais.

As alterações legislativas que se sucederam após a promulgação da Constituição foram no sentido de distanciar ainda mais o juiz da função acusatória, o que foi evidenciado pela adição do art. 3-A ao CPP pela Lei 13.964/19, que embora suspenso por liminar[2], declarou que "o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação".

É de se recordar que logo no seu nascedouro, em abril de 2019, a então Procuradora-Geral da República, Raquel Dogde, em atividade privativa do Ministério Público, promoveu o arquivamento das investigações evidenciando essas ilegalidades, promoção indeferida, em que pese a inexistência de previsão legal para tanto.  Outras ainda foram as manifestações da Procuradora-Geral alertando quanto à gravidade da simples existência desse inquérito. Em que pese essa postura mais rigorosa, com a troca do comando do Ministério Público Federal, o novo Procurador-Geral Augusto Aras apresentou parecer favorável ao prosseguimento das investigações, desde que houvesse participação do Parquet. Contudo, no momento em que a investigação atinge pessoas próximas ao Palácio do Planalto, surpreende com pedido de suspensão das investigações. Fundamental destacar, aliás, que a investigação de tais graves fatos deveriam exatamente estar ocorrendo por impulso do Ministério Público, cuja omissão não deve ser ignorada.

Além disto, preocupam as seguidas manifestações das defesas dos investigados sobre a ausência de acesso ao conteúdo da investigação. Isto ensejou a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio do seu Conselho Federal e Seccional do Distrito Federal, a impetrar habeas corpus visando garantir o respeito à súmula vinculante n. 14 do próprio Supremo Tribunal Federal, que estabelece que "é  direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa".

O critério de dois pesos e duas medidas e de pouco apego à legalidade parece imperar para todos os lados. Sustentamos que, sejam quem forem os investigados e independentemente da nobreza e importância dos fins da investigação, em prol desses mesmos fins, temos que nos manter fiéis à lei e às regras do jogo.

Caso contrário, o risco que corremos é, a pretexto de salvaguardarmos a Democracia, atropelarmos seus valores fundantes, tornando-nos aquilo que tanto tentamos combater. E, pragmaticamente, não se pode esquecer que pau que bate em Chico, bate em Francisco e não se sabe amanhã quem será o próximo investigado.

*Karin Toscano Mielenhausen, advogada criminalista,  especialista em direito penal e processual penal pela PUC/SP, mestranda em direito processual pela USP

*Lívia Moscatelli, advogada criminalista, mestranda em direito processual pela USP

*Luiza Oliver, advogada criminalista, mestre em direito penal pela New York University (NYU)

*Cláudia Bernasconi, advogada criminalista

*Helena Regina Lobo da Costa, advogada criminalista, professora de direito penal da USP

*Danyelle Galvão, advogada criminalista, mestre e doutora em direito processual pela USP, conselheira da OAB/SP

*Daniella Meggiolaro, advogada criminalista, conselheira da OAB/SP, presidente da Comissão de Direito Penal da OAB/SP

*Maria Jamile José, advogada criminalista, mestre em direito processual pela USP

[1] GRINOVER, Ada Pellegrini. Influe?ncia do Co?digo de Processo Penal para Ibero-Ame?rica na legislac?a?o latino-americana. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Sa?o Paulo, v. 1, p. 542-574, 1993. p. 560.

[2] Medida Cautelar de 22.01.2020 do Min. Luiz Fux na ADI 6.299, STF.

Karin Toscano Mielenhausen, Lívia Moscatelli, Luiza Oliver, Cláudia Bernasconi, Helena Regina Lobo da Costa, Danyelle Galvão, Daniella Meggiolaro e Maria Jamile José. FOTOS: DIVULGAÇÃO E ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Em tempos de pandemia, o país vem enfrentando outra batalha igualmente importante e que parece não ter vacina em um curto período de tempo: a superação da crise política que se instalou no país.

Não há dúvidas de que a democracia está em risco. O (des)governo dá contínuos e acentuados sinais de desrespeito ao Estado de Direito, à autoridade do Judiciário e à autonomia do Legislativo. Isso é um fato. Cabe a nós definir como vamos lidar com esse gravíssimo cenário: acentuaremos o desrespeito ao Estado de Direito e, sob o pretexto de "salvar a democracia", vilipendiaremos a lei, ou nos pautaremos nela para exigir o respeito democrático?

Esse é o dilema. Na verdade, é um falso dilema, pois Democracia e Estado de Direito são faces da mesma moeda, sendo o respeito à lei e às regras do jogo condições essenciais para a sobrevivência de ambos.

Nos últimos dias, após o cumprimento de diversas buscas e apreensões, reacendeu-se a discussão sobre a legalidade do sigiloso Inq 4781, o famigerado Inquérito das Fake News, em trâmite perante o STF.

De saída, é preciso deixar clara a gravidade dos fatos objeto de investigação. As hipóteses trazidas no inquérito, se comprovadas, ameaçam a nossa recente e cambaleante democracia. Em tempos de redes sociais e divulgação maciça de informações, a circulação proposital de Fake News que incitam o rompimento da ordem democrática e o boicote aos demais Poderes da República deve ser combatida com veemência. No mesmo sentido, os claros indícios autoritários que emanam do Poder Executivo Federal merecem respostas e ações firmes de todas as instituições da República. Mas, essa inegável gravidade dos fatos investigados justifica que se ultrapasse os limites legalidade? Parece-nos que não, sob pena de incorrermos no mesmo autoritarismo que pretendemos combater.

O Inquérito das Fake News, em termos simples, nasceu torto. Primeiro, deu-se a sua heterodoxa instauração de ofício pelo Presidente da Corte Min. Dias Toffoli, numa interpretação bastante esgarçada do art. 43 do Regimento Interno. Isso sem falar que o Regimento Interno do STF foi criado em 1980, na constância do regime militar, devendo ser questionado se referido artigo, ou, ainda, a interpretação que foi dada a ele para fundamentar a instauração do Inquérito, encontraria guarida na Constituição. E a resposta é não, revelando esse inquérito um perigoso precedente para outras "investigações de ofício", sujeitas às paixões e discricionariedades humanas e sem a necessária supervisão externa.

Depois e mais grave, ignorando absolutamente as regras que garantem o direito de todo e qualquer cidadão ser julgado por um juiz imparcial, que não seja escolhido especialmente para um específico e determinado caso, literalmente nomeou-se o Ministro que seria responsável pela condução das investigações. Em flagrante desrespeito ao princípio constitucional do juiz natural, Código de Processo Penal e ao próprio Regimento interno do STF, foi arbitrariamente designado o Min. Alexandre de Moraes para relatoria do caso. Subtraiu-se do investigado o direito à livre distribuição do inquérito, o que se revela especialmente grave no caso, diante da divergência entre os próprios Ministros da Corte sobre a legalidade do inquérito.

Os vícios na origem parecem se perpetuar no desenvolvimento do Inquérito que é marcado pela violação ao sistema acusatório, confundindo numa só figura (STF) o papel do investigador, julgador e da vítima! Uma aberração jurídica.

Não é demais lembrar que Constituição Federal de 1988 foi desenhada de forma a prezar o sistema acusatório[1], separando, em instituições distintas, cada uma das funções essenciais no desenvolvimento do processo penal. Não deve o juiz subtrair um papel que a ele não cabe, seja para, de ofício, instaurar o inquérito, seja para, também de ofício, determinar a realização de diligências, especialmente aquelas que interfiram diretamente em direitos fundamentais.

As alterações legislativas que se sucederam após a promulgação da Constituição foram no sentido de distanciar ainda mais o juiz da função acusatória, o que foi evidenciado pela adição do art. 3-A ao CPP pela Lei 13.964/19, que embora suspenso por liminar[2], declarou que "o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação".

É de se recordar que logo no seu nascedouro, em abril de 2019, a então Procuradora-Geral da República, Raquel Dogde, em atividade privativa do Ministério Público, promoveu o arquivamento das investigações evidenciando essas ilegalidades, promoção indeferida, em que pese a inexistência de previsão legal para tanto.  Outras ainda foram as manifestações da Procuradora-Geral alertando quanto à gravidade da simples existência desse inquérito. Em que pese essa postura mais rigorosa, com a troca do comando do Ministério Público Federal, o novo Procurador-Geral Augusto Aras apresentou parecer favorável ao prosseguimento das investigações, desde que houvesse participação do Parquet. Contudo, no momento em que a investigação atinge pessoas próximas ao Palácio do Planalto, surpreende com pedido de suspensão das investigações. Fundamental destacar, aliás, que a investigação de tais graves fatos deveriam exatamente estar ocorrendo por impulso do Ministério Público, cuja omissão não deve ser ignorada.

Além disto, preocupam as seguidas manifestações das defesas dos investigados sobre a ausência de acesso ao conteúdo da investigação. Isto ensejou a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio do seu Conselho Federal e Seccional do Distrito Federal, a impetrar habeas corpus visando garantir o respeito à súmula vinculante n. 14 do próprio Supremo Tribunal Federal, que estabelece que "é  direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa".

O critério de dois pesos e duas medidas e de pouco apego à legalidade parece imperar para todos os lados. Sustentamos que, sejam quem forem os investigados e independentemente da nobreza e importância dos fins da investigação, em prol desses mesmos fins, temos que nos manter fiéis à lei e às regras do jogo.

Caso contrário, o risco que corremos é, a pretexto de salvaguardarmos a Democracia, atropelarmos seus valores fundantes, tornando-nos aquilo que tanto tentamos combater. E, pragmaticamente, não se pode esquecer que pau que bate em Chico, bate em Francisco e não se sabe amanhã quem será o próximo investigado.

*Karin Toscano Mielenhausen, advogada criminalista,  especialista em direito penal e processual penal pela PUC/SP, mestranda em direito processual pela USP

*Lívia Moscatelli, advogada criminalista, mestranda em direito processual pela USP

*Luiza Oliver, advogada criminalista, mestre em direito penal pela New York University (NYU)

*Cláudia Bernasconi, advogada criminalista

*Helena Regina Lobo da Costa, advogada criminalista, professora de direito penal da USP

*Danyelle Galvão, advogada criminalista, mestre e doutora em direito processual pela USP, conselheira da OAB/SP

*Daniella Meggiolaro, advogada criminalista, conselheira da OAB/SP, presidente da Comissão de Direito Penal da OAB/SP

*Maria Jamile José, advogada criminalista, mestre em direito processual pela USP

[1] GRINOVER, Ada Pellegrini. Influe?ncia do Co?digo de Processo Penal para Ibero-Ame?rica na legislac?a?o latino-americana. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Sa?o Paulo, v. 1, p. 542-574, 1993. p. 560.

[2] Medida Cautelar de 22.01.2020 do Min. Luiz Fux na ADI 6.299, STF.

Karin Toscano Mielenhausen, Lívia Moscatelli, Luiza Oliver, Cláudia Bernasconi, Helena Regina Lobo da Costa, Danyelle Galvão, Daniella Meggiolaro e Maria Jamile José. FOTOS: DIVULGAÇÃO E ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Em tempos de pandemia, o país vem enfrentando outra batalha igualmente importante e que parece não ter vacina em um curto período de tempo: a superação da crise política que se instalou no país.

Não há dúvidas de que a democracia está em risco. O (des)governo dá contínuos e acentuados sinais de desrespeito ao Estado de Direito, à autoridade do Judiciário e à autonomia do Legislativo. Isso é um fato. Cabe a nós definir como vamos lidar com esse gravíssimo cenário: acentuaremos o desrespeito ao Estado de Direito e, sob o pretexto de "salvar a democracia", vilipendiaremos a lei, ou nos pautaremos nela para exigir o respeito democrático?

Esse é o dilema. Na verdade, é um falso dilema, pois Democracia e Estado de Direito são faces da mesma moeda, sendo o respeito à lei e às regras do jogo condições essenciais para a sobrevivência de ambos.

Nos últimos dias, após o cumprimento de diversas buscas e apreensões, reacendeu-se a discussão sobre a legalidade do sigiloso Inq 4781, o famigerado Inquérito das Fake News, em trâmite perante o STF.

De saída, é preciso deixar clara a gravidade dos fatos objeto de investigação. As hipóteses trazidas no inquérito, se comprovadas, ameaçam a nossa recente e cambaleante democracia. Em tempos de redes sociais e divulgação maciça de informações, a circulação proposital de Fake News que incitam o rompimento da ordem democrática e o boicote aos demais Poderes da República deve ser combatida com veemência. No mesmo sentido, os claros indícios autoritários que emanam do Poder Executivo Federal merecem respostas e ações firmes de todas as instituições da República. Mas, essa inegável gravidade dos fatos investigados justifica que se ultrapasse os limites legalidade? Parece-nos que não, sob pena de incorrermos no mesmo autoritarismo que pretendemos combater.

O Inquérito das Fake News, em termos simples, nasceu torto. Primeiro, deu-se a sua heterodoxa instauração de ofício pelo Presidente da Corte Min. Dias Toffoli, numa interpretação bastante esgarçada do art. 43 do Regimento Interno. Isso sem falar que o Regimento Interno do STF foi criado em 1980, na constância do regime militar, devendo ser questionado se referido artigo, ou, ainda, a interpretação que foi dada a ele para fundamentar a instauração do Inquérito, encontraria guarida na Constituição. E a resposta é não, revelando esse inquérito um perigoso precedente para outras "investigações de ofício", sujeitas às paixões e discricionariedades humanas e sem a necessária supervisão externa.

Depois e mais grave, ignorando absolutamente as regras que garantem o direito de todo e qualquer cidadão ser julgado por um juiz imparcial, que não seja escolhido especialmente para um específico e determinado caso, literalmente nomeou-se o Ministro que seria responsável pela condução das investigações. Em flagrante desrespeito ao princípio constitucional do juiz natural, Código de Processo Penal e ao próprio Regimento interno do STF, foi arbitrariamente designado o Min. Alexandre de Moraes para relatoria do caso. Subtraiu-se do investigado o direito à livre distribuição do inquérito, o que se revela especialmente grave no caso, diante da divergência entre os próprios Ministros da Corte sobre a legalidade do inquérito.

Os vícios na origem parecem se perpetuar no desenvolvimento do Inquérito que é marcado pela violação ao sistema acusatório, confundindo numa só figura (STF) o papel do investigador, julgador e da vítima! Uma aberração jurídica.

Não é demais lembrar que Constituição Federal de 1988 foi desenhada de forma a prezar o sistema acusatório[1], separando, em instituições distintas, cada uma das funções essenciais no desenvolvimento do processo penal. Não deve o juiz subtrair um papel que a ele não cabe, seja para, de ofício, instaurar o inquérito, seja para, também de ofício, determinar a realização de diligências, especialmente aquelas que interfiram diretamente em direitos fundamentais.

As alterações legislativas que se sucederam após a promulgação da Constituição foram no sentido de distanciar ainda mais o juiz da função acusatória, o que foi evidenciado pela adição do art. 3-A ao CPP pela Lei 13.964/19, que embora suspenso por liminar[2], declarou que "o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação".

É de se recordar que logo no seu nascedouro, em abril de 2019, a então Procuradora-Geral da República, Raquel Dogde, em atividade privativa do Ministério Público, promoveu o arquivamento das investigações evidenciando essas ilegalidades, promoção indeferida, em que pese a inexistência de previsão legal para tanto.  Outras ainda foram as manifestações da Procuradora-Geral alertando quanto à gravidade da simples existência desse inquérito. Em que pese essa postura mais rigorosa, com a troca do comando do Ministério Público Federal, o novo Procurador-Geral Augusto Aras apresentou parecer favorável ao prosseguimento das investigações, desde que houvesse participação do Parquet. Contudo, no momento em que a investigação atinge pessoas próximas ao Palácio do Planalto, surpreende com pedido de suspensão das investigações. Fundamental destacar, aliás, que a investigação de tais graves fatos deveriam exatamente estar ocorrendo por impulso do Ministério Público, cuja omissão não deve ser ignorada.

Além disto, preocupam as seguidas manifestações das defesas dos investigados sobre a ausência de acesso ao conteúdo da investigação. Isto ensejou a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio do seu Conselho Federal e Seccional do Distrito Federal, a impetrar habeas corpus visando garantir o respeito à súmula vinculante n. 14 do próprio Supremo Tribunal Federal, que estabelece que "é  direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa".

O critério de dois pesos e duas medidas e de pouco apego à legalidade parece imperar para todos os lados. Sustentamos que, sejam quem forem os investigados e independentemente da nobreza e importância dos fins da investigação, em prol desses mesmos fins, temos que nos manter fiéis à lei e às regras do jogo.

Caso contrário, o risco que corremos é, a pretexto de salvaguardarmos a Democracia, atropelarmos seus valores fundantes, tornando-nos aquilo que tanto tentamos combater. E, pragmaticamente, não se pode esquecer que pau que bate em Chico, bate em Francisco e não se sabe amanhã quem será o próximo investigado.

*Karin Toscano Mielenhausen, advogada criminalista,  especialista em direito penal e processual penal pela PUC/SP, mestranda em direito processual pela USP

*Lívia Moscatelli, advogada criminalista, mestranda em direito processual pela USP

*Luiza Oliver, advogada criminalista, mestre em direito penal pela New York University (NYU)

*Cláudia Bernasconi, advogada criminalista

*Helena Regina Lobo da Costa, advogada criminalista, professora de direito penal da USP

*Danyelle Galvão, advogada criminalista, mestre e doutora em direito processual pela USP, conselheira da OAB/SP

*Daniella Meggiolaro, advogada criminalista, conselheira da OAB/SP, presidente da Comissão de Direito Penal da OAB/SP

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[1] GRINOVER, Ada Pellegrini. Influe?ncia do Co?digo de Processo Penal para Ibero-Ame?rica na legislac?a?o latino-americana. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Sa?o Paulo, v. 1, p. 542-574, 1993. p. 560.

[2] Medida Cautelar de 22.01.2020 do Min. Luiz Fux na ADI 6.299, STF.

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